As sociedades da orla mediterrânica sempre foram sujeitas a mudanças ambientais, sociais, políticas e culturais e sempre estiveram em adaptação constante. Mas neste século, o ritmo das mudanças acelerou e a sua direção é nova, obrigando a um pensamento estratégico diferente para preservar o património cultural e imaterial de base alimentar. Estaremos preparados para esta necessidade e comprometidos com esta mudança que necessita de ser mais sistémica, tanto ao nível da governação como dos cidadãos? Neste curtíssimo ensaio, que resulta de uma conferência realizada no Seminário “Saúde, Alimentação e Dieta Mediterrânica” organizado pela DRAPA, CCDR Algarve e CM Tavira, olhamos para cinco obstáculos à proteção do modelo alimentar mediterrânico, em particular no Algarve. Esperamos alargar e estimular o debate sobre este tema dando continuidade ao nosso anterior “Manifesto Pela Preservação da Dieta Mediterrânica”.

Preâmbulo

O contexto climático e a história coletiva no mediterrâneo caracteriza-se pelos ciclos de escassez e pela incapacidade de prever o futuro, nomeadamente a ausência de água. Todo o modelo alimentar do Sul foi assim construído. Um modelo de adaptação constante e, ao mesmo tempo, inteligente ao longo dos últimos séculos. Essa aprendizagem constante, progressiva, passada de geração em geração no seio das diferentes comunidades meridionais levou-nos a supor, erradamente, que era possível, continuar a adaptar o modelo indefinidamente. E esta suposição ainda parecia mais plausível quando os desafios de hoje são muito semelhantes aos do passado. Estamos de novo a viver secas dramáticas como as que marcaram a história dos hebreus, os dilúvios retratados em diversos documentos das civilizações mediterrânicas pré-cristãs ou ainda os avisos de fim do mundo e das pragas antes do apocalipse que marcaram a nossa idade média cristã. Contudo, as soluções ensaiadas no passado podem, no nosso entendimento, não ser passíveis de resolver os problemas atuais ou, mais ainda, de serem adotadas no presente, mesmo que refrescadas para a atualidade. O desafio inicial para quem quer discutir seriamente a preservação da Dieta Mediterrânica é assumir que é necessário pensar e agir diferente, mesmo que baseado nas lições do passado, porque o ritmo e direção das mudanças são claramente diferentes das que foram no passado. Por outro lado, é necessário admitir que o modelo alimentar do mediterrâneo sempre esteve em contínua evolução e adaptação. Tentar preservar um modelo que está em contínua evolução pode parecer um paradoxo. Contudo, podemos admitir que a fotografia alimentar tirada nos anos 50 e 60 por Ancel Keys e colaboradores, a qual passamos a designar desde então por “Dieta Mediterrânica”, é sinónimo de promoção da saúde e bem-estar e é nesse quadro alimentar e nutricional que nos podemos enquadrar.

Primeiro Desafio – O desafio demográfico

A tradição alimentar nas regiões da bacia do mediterrâneo nos últimos 2000 anos baseou-se na adaptação progressiva dos movimentos migratórios a um espaço geográfico muito amplo com características climáticas especificas e uma fauna e flora predominantes. Ou seja, deu-se uma adaptação das comunidades residentes e dos poucos migrantes que chegavam ao que o meio ambiente permitia produzir e, dessa interação, se fez a evolução do padrão alimentar mediterrâneo. As populações que chegavam adaptavam-se, mantendo apenas uma pequena componente da sua singularidade cultural ou religiosa, expressa em alguns alimentos ou momentos do ano. Mas o clima e as características dos solos impunham as suas leis e o que se comia. Por outro lado, quem chegava, distribuía-se geralmente pelos espaços onde existia produção alimentar e disponibilidade de alimentos e água. Atualmente, as populações que chegam não se distribuem necessariamente pelos locais de produção alimentar e a adaptação dos hábitos alimentares já não é moldada pelo que se produz localmente. Hoje, é possível manter hábitos alimentares pré-existentes devido à disponibilidade e variedade da oferta alimentar, pela manutenção diária das ligações culturais aos locais de origem via meios digitais e o próprio ambiente social é mais favorável e até promotor da diversidade. Aliás, o ambiente social e cultural estimula a diversidade das culinárias de origem dos nossos migrantes, desde as asiáticas às sul americanas. Entretanto, aqui a norte do mediterrâneo observa-se um fenómeno praticamente irreversível de envelhecimento populacional com redução da população ativa, enquanto no sul do mediterrâneo e em outras partes do hemisfério sul, existe uma grande oferta de mão-de-obra e um mercado que não a consegue absorver, agravado pela incapacidade destes países reagirem às alterações climáticas e adquirirem alguma estabilidade política e económica, o que transforma uma parte significativa da população destas regiões em potenciais migrantes. O primeiro desafio é tentar preservar um modelo alimentar ancestral numa população nova e em crescimento que o desconhece ou que não o recorda como da sua tradição cultural. No caso do Algarve, no ano de 2021, através dos censos, o Algarve tinha registado 467.495 habitantes, tendo sido a NUTS II com maior crescimento populacional a nível nacional e onde, em 2018, os residentes estrangeiros representavam quase 18% da população (77.489 pessoas). De acordo com os dados do INE e da CCDR Algarve, entre 2011 e 2018 os bebés filhos de mães estrangeiras com autorização de residência representaram quase 20% das 33.024 crianças nascidas nesse período, sendo que, “entre as 20 nacionalidades com maior número de residentes, os chineses, moldavos, russos, guineenses, romenos e brasileiros são os que apresentam uma proporção mais elevada de crianças e jovens”. Preservar um modelo alimentar que já não tem por base o que se produz na região e onde as práticas alimentares de origem de um quarto da sua população e de um quarto dos encarregados de educação dos seus mais jovens são diferentes das preconizadas na Dieta Mediterrânica é um desafio enorme. E muito diferente do anterior que era essencialmente o de fazer com que os conhecimentos dos mais antigos passassem para os mais jovens e não se perdessem no fosso intergeracional.

Segundo desafio – O desafio social

Associada à mudança demográfica podemos incluir a mudança social. Em poucos anos, a sociedade patriarcal mediterrânica onde a mulher detinha o conhecimento culinário e o passava às filhas, de geração em geração, foi interrompido com a entrada da mulher no mundo do trabalho e com a ida das mulheres mais jovens para o litoral, afastando-as da família e da produção agrícola. Esta separação das mulheres mais jovens das suas fontes de conhecimento ancestral marca um ponto de viragem importante na preservação da dieta mediterrânica, particularmente nos anos 60, 70 e 80 no Algarve. No início de 2022, e pela primeira vez, o número de mulheres disponíveis para trabalhar ultrapassou o dos homens. No litoral algarvio, nos últimos 30 anos, ocorreu um crescimento populacional significativo, onde reside agora mais de 2/3 da população e onde 70 % da população habita em áreas predominantemente urbanas. Somos de facto, um grande e quase única região urbana junto ao litoral, afastada física e socialmente dos locais onde antes acontecia a produção alimentar mediterrânica. A vivência com este conhecimento foi quebrada com o afastamento das mulheres mais jovens deste espaço e com a sua concentração em centros urbanos, onde agora querem pertencer e viver, aproximando-as do conhecimento, do emprego, da segurança, da comodidade e de uma vida cosmopolita que ambicionam. Se a maioria destas mulheres já não quer regressar ao trabalho no campo, já não quer passar a sua vida na cozinha e já perdeu a sua ligação às fontes ancestrais de conhecimento culinário e alimentar como as mandatar para defender este modelo tradicional?

Terceiro desafio – O desafio económico

O padrão alimentar mediterrânico tinha por base uma premissa central de que os alimentos produzidos localmente, frescos, sazonais e minimamente processados, estavam mais disponíveis fisicamente e eram mais acessíveis economicamente. Estas premissas mudaram substancialmente nestes últimos 100 anos na Europa central e, um pouco mais tarde, na Europa meridional. As mudanças no sistema alimentar foram substanciais pois o custo da mão de obra tornou-se um grande obstáculo à produção barata de alimentos, a produção em escala passou a ser determinante com a chegada e concentração dos grandes grupos de produção e distribuição e, o preço do petróleo e da energia, passaram a ser os principais fatores de produção da nova agricultura. Uma agricultura baseada na tecnologia e na mecanização, onde o processamento e o frio são agora centrais para o transporte e manutenção dos produtos alimentares com maior durabilidade. Fruto destas alterações complexas na cadeia alimentar, o alimento ultraprocessado, muitas vezes adicionado de sal, açúcar e outros conservantes, consegue hoje ser mais barato e disponível que o fresco (enquanto o impacto ambiental não for devidamente considerado no preço final dos alimentos). Para agravar este desafio, as populações mais desfavorecidas economicamente são mais sensíveis ao marketing alimentar agressivo, estão mais dependentes do preço para tomarem decisões de compra e são as mais afetadas pelas doenças que a Dieta Mediterrânica deveria proteger. Ou seja, o desafio económico é fazer com que o padrão alimentar mediterrânico continue a ser verdadeiramente popular e acessível a todos. E que não passe a ser maioritariamente gourmet e diferenciado para um determinado nicho da população ou visto essencialmente como um produto turístico que apenas acrescenta valor à oferta alimentar na região.

Quarto desafio – O desafio da saúde

O padrão alimentar mediterrânico remete habitualmente para uma ideia de passado distante onde se vivia até mais tarde, com mais saúde e com um determinado consumo alimentar e práticas culinárias ancestrais. Infelizmente, esta ideia de um passado edílico não é validada pelo conhecimento científico que temos hoje. Há 200 anos e em Portugal, a estatura média estimada (que é um indicador do estado nutricional) seria 1,66 metros e a esperança média de vida há 102 anos, ou seja, em 1920 (o primeiro ano para o qual há dados para Portugal) era de 35,6 anos. Em 2000 já era de 76,9 anos. Quem esperava viver em média até aos 36 anos e morria de doenças infeciosas não necessitava de preservar com tanto cuidado o seu fígado, as suas artérias ou o seu pâncreas. Um jovem de hoje que aspira a viver até aos 80 anos de idade sabe que para isso necessita de consumir menos alimentos conservados em sal e fumo, menos açúcar e menos gordura de origem animal. Isto quer dizer que muito do que é tradicional não é necessariamente adequado às expetativas de saúde nos tempos em que vivemos. Como promover um padrão alimentar que remete para um certo tempo histórico quando a tradição alimentar pode não ajudar? O que exista na tradição mediterrânica que nos protege e o que exista na tradição mediterrânica que nos mata precocemente? Um desafio importante, que é necessário assumir com coragem política face a alguns interesses económicos poderosos instalados e antes de dizer que tudo o que é tradicional é bom.

Quinto desafio – O desafio ambiental

Os dados mais recentes sugerem que a alimentação de base vegetal, como é o caso da Dieta Mediterrânica, é uma das que causa menor impacto no meio ambiente, menor consumo de água e menores emissões de gases com efeitos de estufa. Contudo, a Dieta Mediterrânica não é exclusivamente ovolactovegetariana pois inclui pequenas porções de peixe e carne ao longo da semana (3 a 4 refeições) que permitem o equilíbrio nutricional com pouco esforço económico, em especial se se optar por carne de aves e peixe da costa. Como manter este consumo com reduzido impacto ambiental e o que dizer se as opções da produção de proteína animal com reduzido impacto ambiental passarem pela produção de carne proveniente de culturas celulares? Mas o maior desafio na promoção do padrão alimentar mediterrânico para se atingir uma maior eficiência ambiental é a dificuldade em seguir o primeiro princípio da Dieta Mediterrânica que é o da frugalidade. A palavra frugalidade aparece, desde o início, relacionada com a dieta mediterrânica e era natural que aparecesse. Se identificarmos Dieta com “estilo de vida” ou “forma de viver” verificamos que muito do pensamento ocidental que enforma uma visão idealizada do mediterrâneo sublinha as questões da simplicidade e da vida frugal. Parece-nos natural que quando o norte-americano Ancel Keys cunha o termo dieta mediterrânica como um certo retorno à vida simples e a formatos não industrializadas de comer, as palavras simplicidade e frugalidade pudessem estar presentes. Frugalidade significa também, neste contexto, comer apenas o necessário. Nunca saberemos se por escassez ou por respeito com a escassez. O que sabemos hoje, e a evidência científica é robusta nesse domínio, é que ingerir calorias não necessárias é o maior detonador da epidemia do excesso de peso e doenças associadas como a doença oncológica, diabetes e doença cardiovascular e, ao mesmo tempo, o maior incentivador da utilização abusiva dos nossos recursos naturais. Mas como fazer o discurso da circularidade e em particular da redução do consumo e da frugalidade na sociedade atual? Quem apoiaria a Dieta Mediterrânica se a sua tónica fosse a redução do consumo, mesmo que por razões ambientais. Já não tem a Dieta Mediterrânica inimigos suficientes? E como apoiaria a população do mediterrâneo que sempre lutou contra a escassez, este discurso? Em particular se vier dos poderes públicos considerados privilegiados? Este é talvez um dos mais difíceis desafios destes cinco.

Epílogo

É sempre mais útil e interessante propor soluções do que ficar pela identificação dos problemas. Mas hoje abrimos uma exceção. Por vezes, procuramos soluções sem identificar com clareza os problemas. Ou então, procuramos identificar problemas para os quais já sabemos parte das soluções. Creio que este não é o caso. O que torna esta discussão bem mais estimulante.

Escrito por