O estudo da fome e de todos os graus de insegurança alimentar deveria fazer parte do curriculum básico de todos os estudantes de Ciências da Nutrição. Não ter acesso aos alimentos que necessitamos para mantermos a nossa saúde e bem-estar, quando é possível produzir alimentos para todos, pode ser considerada a maior falha da nossa sociedade em pleno Séc. XXI.

Introdução

Infelizmente, 1 em cada 10 seres humanos não têm acesso a alimentos suficientes para garantir a sua saúde e muitos destes morrem à fome. Apesar de tudo isto são ainda muitos os que não consideram este tema central. Martin Caparrós abordou na introdução da sua obra seminal “A Fome” (2014) este assunto de forma impossível de esquecer: “Em cada ano que passa, a destruição de dezenas de milhões de homens, mulheres e de crianças pela fome constitui o escândalo do nosso tempo. De cinco em cinco segundos, uma criança com menos de dez anos morre de fome num planeta que, no entanto, transborda de riquezas. Na verdade, no seu estado atual, a agricultura poderia alimentar sem qualquer problema 12 mil milhões de seres humanos, isto é, quase o dobro da população do planeta nos dias de hoje. Não estamos, por isso, perante uma fatalidade. No mundo – neste mundo – morrem por dia 25 000 pessoas por causas relacionadas com a fome. Se o leitor ou a leitora se der ao trabalho de ler este livro, se se entusiasmar e o ler em – digamos – oito horas, nesse intervalo terão morrido de fome 8000 pessoas. 8000 são muitas pessoas. Se não se der ao trabalho, essas pessoas terão morrido na mesma, mas terá a sorte de não ter sabido. (Mas se leu este breve parágrafo em meio minuto, fique a saber que, nesse tempo, só morreram de fome entre oito e dez pessoas no mundo e respire de alívio).”

Para além de ser um problema ético, a fome é também um assunto científico complexo que não se resume apenas a produzir e distribuir alimentos a quem necessita. Compreender e debater a sua complexidade é a melhor forma de fazer interessar a nossa comunidade de nutricionistas pelo tema e motivar para a sua resolução. Este é um assunto que interessa particularmente a quem gosta dos temas da Política Alimentar e Nutricional e por isso o estudamos há bastante tempo. Esperamos que este texto, agora publicado no “Pensar Nutrição” e que segue a linha de pensamento e transcreve parte de dois textos publicados anteriormente na Revista “Visão” e no Jornal “Público”, possa contribuir para densificar e alargar esta discussão a mais pessoas.

As fomes ou uma população a passar fome sempre foram um embaraço político

A primeira questão que surge quando se debate estes assuntos é a aparente invisibilidade do tema no nosso dia-a-dia. Geralmente, a fome associa-se a um número de atingidos demasiadamente grande, num país distante e o tema raramente é discutido quanto às suas causas. As fomes raramente são discutidas publicamente porque a última coisa que um governante quer assumir é que fracassou na sua responsabilidade de dar o bem mais precioso, que é o alimento, à sua população. Daí que as desculpas para a fome, ou os culpados ou nomeados como responsáveis pela fome, sejam quase tão antigos como a fome. Mencius, um dos mais famosos discípulos de Confúcio e que viveu entre 372 e 289 antes de Cristo, escreve numa das suas mais importantes obras, dirigindo-se ao Imperador: “Os seus cães e porcos comem a comida dos homens, e o Senhor não os impede. Há pessoas morrendo de fome e o Senhor não lhes entrega as reservas dos seus celeiros. Quando as pessoas morrem, o Senhor diz: “Não é por minha culpa, estava escrito no calendário”. De que forma isso difere de esfaquear um homem e matá-lo e dizer – “Não fui eu; foi a faca”. Deixe Vossa Majestade de culpar o calendário e, instantaneamente, o povo e toda a nação estará ao seu lado.”

Apesar deste tipo de respostas fazer parte da história da humanidade, e de muitas das crises alimentares da história terem uma origem natural, depois misturada com a incúria humana, foram raros os momentos em que os responsáveis políticos assumiram a sua parte da responsabilidade. Isto tornou difícil o estudo da fome, a compreensão das suas causas e a tentativa de encontrar soluções para a sua prevenção. De um modo geral, já muito tempo depois dos acontecimentos terrem ocorrido, são os historiadores que de forma mais ou menos incompleta, tentam descrever muitos destes problemas. Dois exemplos e algumas exceções recentes ilustram esta realidade.

As fomes em Cabo Verde

Apesar de a fome ser recorrente em Cabo Verde (praticamente desde o século XVI até meados do século XX) e os registos administrativos das ilhas registarem pelo menos 27 fomes e epidemias até ao século XIX, pouco se tem escrito sobre o assunto. Na primeira metade do século XX ocorreram mais seis destas fomes, sendo as mais dramáticas as que ocorreram na década de 40. No meio do silêncio, existe um notável documento da autoria do capitão-tenente da armada portuguesa, o cabo-verdiano Christiano José de Senna Barcellos, membro da Academia de Ciências de Lisboa, publicado em 1904 pela Tipografia da Cooperativa Militar, intitulado “As fomes em Cabo Verde desde 1719 a 1904”. Nele se descreve o enorme desinteresse da metrópole pela sorte das gentes de Cabo Verde. Citamos um excerto deste livro duro de ler na atualidade: “Em 1903, o governo provocou uma crise na ilha de S. Thiago por falta de pequenas e bem dirigidas providências a tempo; a mortalidade subiu a mais de 20 mil almas; em julho, começo da estação pluviosa, não se cuidou da distribuição de sementes para garantir a colheita de 1904 aos poucos que sobreviveram. (…) No ministério da marinha, desde 1900 manifestou-se a opinião de não se acudir aos que sofressem com as estiagens, porque d’essa opinião eram os governadores de então.” Apesar desta descrição pormenorizada, são pouco os relatos e quase nula a documentação sobre as fomes anteriores a 1700, como se descreve no livro: “Das crises alimentícias em Cabo Verde, que se tornaram notáveis pela grande mortalidade do povo, apontam-se as de 1748 a 1750; 1773 a 1775; 1831 a 1833; 1864 a 1866 que duraram mais de 3 anos. Com a duração de 1 anno há uma infinidade d’ellas, a contar de 1719; anteriores a este, era natural que as houvesse, mas nos archivos públicos não se encontraram documentos a tal respeito. Em 1719 apenas se sabe que houve fome em S. Thiago, e é provável que sofressem as demais ilhas; mas cousa alguma encontramos em documentos officiaes, sobre as providencias tomadas pelo governo.” Esta imensa tragédia teve pouco relevo noticioso em Portugal e internacional e passou despercebida à maioria da população portuguesa. Mais tarde, literatura retoma o tema e os historiadores identificam-no para estudo, mas já no séc. XX.

Mais tarde discutiremos as razões para esta e outras fomes, mas aqui manifestam-se já duas características comuns, uma mistura entre as condições climáticas (neste caso pelo défice hídrico e pela irregularidade da precipitação, o que combinado com o pequeno tamanho das propriedades e os elevados declives das parcelas, produzem elevadas taxas de erosão, no que constitui a principal ameaça ao sector agrícola) e a má gestão humana (concretamente, a desatenção dada pelas autoridades coloniais e a própria estrutura de produção colonial, como bem explica Jacinto Augusto Lourenço na sua obra “Secas e Fomes em Cabo Verde no Alvorecer do Século XX – A crise de 1901-1904. Causas e consequências”).

Somente na década de 1940, as fomes foram responsáveis pela morte de quase 50% da população cabo-verdiana. Na Ilha de Santiago, a população diminuiu 65% na crise de 1947-1948 (parte morreu, parte foi transportada para outros lugares do então império português, nomeadamente São Tomé e Príncipe e Angola) (António Carreira. Revista de História Económica e Social. N.º 15 (1985), p. 135-150). Sobre estas tragédias pouco se soube ou discutiu publicamente na altura.

As fomes na China de Mao

O “Grande Salto Adiante” ou o “Grande Salto para Frente” foi uma campanha lançada por Mao Tsé-Tung entre 1958 e 1960, que pretendia tornar a República Popular da China uma nação desenvolvida. Fruto de uma série de erros administrativos e científicos, aliado a anos muito chuvosos e a uma repressão brutal, uma situação de fome generalizada ocorreu entre os anos 1959 e 1961. A “Grande Fome Chinesa”, como é habitualmente chamada, é amplamente considerada como a fome mais mortal e um dos maiores desastres provocados pelo homem na história da humanidade, com um número estimado de mortes que varia entre 15 e 55 milhões.

Além de tentar estatizar a produção agrícola e coletivizar todas as parcelas de terrenos e meios de produção, governo central decretou várias mudanças nas técnicas agrárias baseadas nas ideias do pseudocientista russo Trofim Lysenko. Uma dessas ideias era o plantio denso, onde a densidade das plantações era inicialmente triplicada e subsequente, duplicada novamente. A teoria era que plantas da mesma espécie não competem entre si, uma ideia factualmente incorreta e que causou um péssimo crescimento da lavoura e baixas colheitas. Estas e outras experiências agrícolas fracassadas originaram grandes perdas humanas, muito pouco relatadas na altura. A historiografia do Partido Comunista Chinês excluiu o sofrimento e a fome dos camponeses nos seus discursos oficiais e atribuiu, mais tarde, uma parte substancial da culpa ao meio ambiente e às inundações. Só muito posteriormente se percebeu terem efetivamente ocorrido alterações nos percursos dos rios, mas com culpas “administrativas” e não “ambientais”.

Como se explicam as fomes?

Segundo alguns autores, até 1710 os principais “clusters” de fome ocorreram em períodos de densidade populacional historicamente elevada com uma causa natural próxima, muitas vezes meteorológica. A maioria das fomes pré-industriais resultavam da falta de produção, não de problemas de distribuição. Por exemplo, a “Grande Fome de 1315-1317”, considerada a pior crise alimentar do final da Idade Média, foi desencadeada por chuvas persistentes e baixas temperaturas durante o verão de 1315, tendo causado um declínio populacional de cerca de 10% em diversos países europeus. Esta relação parece desaparecer depois de 1710, quando fomes causadas por mão humana se tornaram prevalentes. Entre esta corrente de pensamento, podemos encontrar investigadores como Guido Alfani  e Cormac Ó Gráda. Para eles, a correlação entre pressão populacional e fome tende a desaparecer do continente europeu por volta de 1710, embora em algumas áreas isso tenha acontecido mais tarde (na Itália, por volta de 1770), enquanto na Inglaterra, muito antes (por volta de 1630). Só a partir deste período, as elites e a ação política passam a desempenhar um papel mais importante no aparecimento de episódios de fome e de mortalidade associada.

Outros pensadores, como Amartya Sen, colocam a ação humana no centro do problema, sublinhando que “não existem problemas alimentares apolíticos”. Para este Prémio Nobel da Economia, que estudou aprofundadamente o problema da carência alimentar “enquanto a seca e outros eventos que ocorrem naturalmente podem provocar condições de fome, é a acção ou inacção do governo que determina a sua gravidade e, frequentemente, determina se a fome vai ocorrer ou não.” Nesta corrente de pensamento, é frequente incluir-se como fatores-chave na eclosão de episódios de fome as estruturas socioeconómicas e políticas, dado que definem a resistência e resiliência de uma dada sociedade à adversidade.

No futuro, acreditamos que a pressão da natureza e em particular das alterações climáticas sobre as estruturas produtivas voltará a ganhar maior influência como determinante dos episódios de insegurança alimentar grave. E esta pressão climática terá maior influência nas regiões menos preparadas tecnológica e politicamente. Aliás, o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, criado no âmbito das Nações Unidas sobre mitigação das alterações climáticas (grupo de trabalho III) publicado a 4 de abril de 2022, revela a dimensão do colapso climático e a necessidade de uma urgente cooperação internacional. Como consequência, serão mais frequentes as perdas nas culturas agrícolas, os incêndios florestais serão mais intensos e frequentes e poderá ocorrer a perda progressiva dos solos agrícolas. A escassez de água e a perda de solos forçarão as migrações de sul para norte, que estão já a ocorrer. Ou seja, tal como acontecia antes de 1710, as variações atmosféricas e a sua influência na produção alimentar voltarão a ter um papel cada vez mais relevante no aparecimento de fenómenos de fome.

Como medir a fome nas populações – O conceito de segurança alimentar

O aparecimento do conceito de insegurança alimentar marca um importante avanço no estudo da carência alimentar apesar de não ser isento de críticas. Este avanço deve-se essencialmente à abrangência da definição, que vai muito além de situações de fome, bem como à possibilidade de categorizar a insegurança alimentar em diferentes níveis de gravidade.

O conceito de insegurança alimentar é multidimensional e a sua definição tem evoluído ao longo do tempo e à medida que se vão identificando os seus principais determinantes. O termo “segurança alimentar” (food security) surge durante a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) e começa a ser conceptualizado após a Segunda Guerra Mundial (1945), em particular aquando da constituição da Organização das Nações Unidas (ONU). Neste período inicial, a segurança alimentar encontrava-se intimamente associada à disponibilidade de alimentos em quantidades suficientes para alimentar toda a população e a sua garantia implicava a existência de políticas agrícolas direcionadas para o aumento da produtividade. A primeira definição oficial de segurança alimentar proposta pela FAO que é a organização criada pela ONU para as questões da agricultura e alimentação aparece apenas na década de 70. Nesta primeira definição oficial, destaca-se a disponibilidade associada à existência de uma política de armazenamento estratégico de alimentos, como o fator chave para a garantia da segurança alimentar – “disponibilidade permanente de adequado abastecimento mundial de alimentos básicos para manter uma expansão regular do consumo de alimentos e compensar as flutuações da produção e preços”. Durante a década de 80, assistiu-se a uma mudança de paradigma no conceito de segurança alimentar. Os ganhos de produtividade alcançados durante as décadas de 70 e 80 demonstraram que a segurança alimentar não dependia apenas da disponibilidade de alimentos em quantidades suficientes e de forma permanente, mas dependiam também das condições de acesso físico e económico aos alimentos por parte das populações, em particular as mais carenciadas. Assim, em 1983, a FAO apresenta uma nova definição para o conceito de segurança alimentar que incorpora a dimensão do acesso – “assegurar que todas as pessoas tenham acesso físico e económico aos alimentos básicos de que necessitam”. A dimensão do acesso surge assim associada à pobreza enquanto um importante determinante da segurança alimentar e para esta redefinição do conceito muito contribuíram os trabalhos sobre pobreza e fome de Amartya Sen. Nos anos 90, a preocupação com a adequação nutricional é integrada na definição de segurança alimentar, e assim, em 1996, a segurança alimentar constitui-se como “o acesso a alimentos suficientes, seguros e nutricionalmente adequados de modo a satisfazerem as necessidades nutricionais e preferências para uma vida ativa e saudável”. Por último, em 2001, o conceito de segurança alimentar é novamente redefinido, entendendo-se agora como – “uma situação que existe quando todas as pessoas, em qualquer momento, têm acesso físico, social e económico a alimentos suficientes, seguros e nutricionalmente adequados, que permitam satisfazer as suas necessidades nutricionais e as preferências alimentares para uma vida ativa e saudável”. Esta evolução multidimensional do conceito e o facto de integrar as dimensões da qualidade nutricional e da aceitabilidade social e cultural dos alimentos tornam a avaliação da segurança alimentar mais exigente, mas ao mesmo tempo vão permitir intervenções mais qualificadas e eficientes por parte das instituições e dos responsáveis pelas políticas públicas. As novas definições de segurança alimentar colocam o ser humano com as suas necessidades biológicas, mas também sociais e culturais, no centro da intervenção ultrapassando os anteriores conceitos dicotómicos associados à fome, que era e é uma consequência extrema de situações de insegurança alimentar grave. Por outro lado, em muitos locais do mundo, apesar da insegurança alimentar grave não existir, persistem diferentes situações de insegurança alimentar nas suas formas mais ligeiras com consequências mais relevantes pois atingem proporções mais elevadas da população mundial.

Apesar da abrangência do conceito de segurança alimentar ter colocado inúmeros desafios à sua avaliação e mediação, na década de 90 o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), desenvolveu um instrumento para a avaliação da insegurança alimentar que é atualmente utilizado amplamente a nível internacional. Este instrumento – escala de insegurança alimentar – permite medir a perceção dos indivíduos face à situação de segurança alimentar do seu agregado familiar e avaliar desde à preocupação face à possível falta de acesso aos alimentos no futuro até situações em que se verifica uma efetiva restrição do consumo de alimentos.

A insegurança alimentar em Portugal

Em Portugal, estão descritos fenómenos esporádicos de carência alimentar em algumas bolsas populacionais nos últimos séculos, mas o mais frequente é a descrição da pobreza extrema e da carência alimentar associada, essa sim, recorrente em diversas partes do país. Apenas para revisitar o séc. XX, viviam em Lisboa, mais de 431 738 pessoas em 1911. Destas pessoas, 138 742 recorriam ao “assistencialismo alimentar” através de senhas alimentares para “um jantar completo” na Sociedade Protectora das Cozinhas Económicas de Lisboa criada em 1893, por Maria Luísa de Sousa Holstein Beck – Duquesa de Palmela – com o intuito de ajudar a população carenciada, especialmente os operários, com refeições a preços módicos. Ou seja, 32% da população lisboeta recorria a este apoio alimentar que pode ser um indicador para medir a pobreza, sendo que uma percentagem adicional da população ainda mais carente não adquiria sequer uma refeição completa, mas apenas uma parte desta, como pão ou sopa. Mais tarde, em 1917, o jornal O Século cria a “Sopa para os Pobres”, com a ajuda das paróquias e angaria fundos através de espetáculos de beneficência, como festas e touradas.

Este facto devia-se certamente às más condições de vida da população, com uma “alimentação deficiente” (o pão era caro, e, o peixe, carne, manteiga, entre outros, detinham preços elevados devido aos impostos e taxas alfandegárias) e à má qualidade do alojamento, sobretudo nos “grandes” centros urbanos. Para termos a noção do preço dos alimentos, podemos mencionar que um litro de leite correspondia a 18% do salário de um operário e, uma dúzia de ovos era o equivalente a 60%. O salário médio, diário, em 1917, era de 60 reis e, em 1924, era de 8$50. Uma família operária, em 1910, despendia 80% do seu salário em alimentação, 10% na renda da casa e igual percentagem (5%) para vestuário e outras despesas do agregado familiar.

Em 1951, António Augusto Mendes Corrêa, antropólogo e Diretor do Instituto de Antropologia da Universidade do Porto e uma das primeiras pessoas a tentar identificar e tipificar, através de inquéritos, os consumos alimentares em Portugal, publica a magistral obra – “A Alimentação do Povo Português” (A Alimentação do povo português. Revista do Centro de Estudos Demográficos. Vol 6. INE, 1949). Nesta obra, reúne uma grande parte dos trabalhos de avaliação da ingestão alimentar produzidos até à altura e remete-se a uma descrição prudente da situação alimentar nacional devido à má qualidade dos dados e aos eventuais enviesamentos dos autores que anteriormente tinha avaliado a situação. Em todo o caso, Mendes Corrêa define assim a situação que se vivia: “O que é incontestável é que, desde sempre e um pouco por toda a parte, para alguns que comem de mais, há muitos que comem de menos.” Entre os trabalhos descritos na sua obra salienta-se o do agrónomo Quartin Graça sobre a alimentação da população rural: “Em Portugal, quer quantitativa, quer em especial, quantitativamente, o rural alimenta-se mal, caracterizando-se a sua alimentação pela monotonia proveniente do emprego de um número limitado de alimentos, exceto nos locais onde cultiva a horta para consumo próprio, o que faculta uma maior diversidade na dieta. Razões de ordem económica motivam em grande parte a referida monotonia, pois, procurando alimentar-se dos produtos da terra, mais baratos e abundantes, recorre de preferência aos cereais, seguindo-se-lhe os legumes, batata e feijão, e eventualmente, de outros produtos hortícolas (…). Os ovos, o leite, a manteiga e o queijo são considerados pelas populações rurais artigos de luxo que só excecionalmente os consomem, destinando-os em geral aos mercados. Resultado: fraca percentagem, na ração, de proteínas de origem animal; e certo número de doenças de carência provenientes de avitaminoses, tais como o raquitismo, espalhado por todo o país; a cárie dentária, igualmente, e muito em especial no Douro; a pelagra, no Minho e outras regiões onde predomina o consumo de broa. Tal deficiência do regime alimentar de grande parte dos rurais portugueses, patenteiam-na claramente os registos das inspeções militares.” (Quartin Graça. Problemas da vida rural, Capítulo VIII – A defesa da saúde e da alimentação dos rurais, Biblioteca rural n.º 5, Lisboa, 1945).

Esta alimentação de sobrevivência, muito característica de uma agricultura de subsistência no mediterrâneo, que tinha por base os produtos vegetais de proximidade, os cereais quando as condições atmosféricas o permitiam, (geralmente escasso em trigo) e com pequenas quantidades de proteína animal, mantêm-se praticamente em Portugal até aos anos 60 do séc. XX. Era um padrão alimentar de resiliência às secas periódicas e outras alterações atmosféricas que privavam a população, que vivia essencialmente da agricultura, a adaptar-se. A seca, em particular quando se prolongava por mais de um ano, originava escassez de pastos, de cereais e de muitas outras culturas temporárias. As estratégias alimentares e sociais adotadas nestas situações de crise alimentar estão bem descritas na literatura europeia. A redução da natalidade, o adiamento de casamentos ou as migrações eram frequentes nesses momentos. Os agricultores tentavam diversificar as produções agrícolas tentando escolher culturas mais adaptadas à escassez de água, às baixas temperaturas ou ao excesso de água. Do ponto de vista alimentar e nesses momentos, as populações voltavam a consumir partes de alimentos outrora rejeitados como talos de plantas ou vísceras de animais. Ou ainda a produzir alimentos e refeições a partir de produtos alimentares alternativos como ervas selvagens ou cascas de alimentos, resultando daí refeições com menor valor nutricional e com menor digestibilidade. A diversidade do padrão alimentar mediterrânico aliava ainda a tradição da recolha silvestre (tudo o que vinha à mão era bem-vindo em alturas de carência) desde os bivalves das zonas costeiras às urtigas, cogumelos ou beldroegas que cresciam espontaneamente fora das hortas até ao recurso às fontes proteicas como as leguminosas geralmente secas, como as lentilhas, grão, feijão, e às fontes energéticas como os frutos secos e gordos, onde destacamos o figo ou a amêndoa. A diversidade das fontes alimentares foi uma aprendizagem importante na luta contra a carência alimentar, o que infelizmente não aconteceu na fome irlandesa nos anos de 1840, população que era dependente da monocultura da batata, ou na população francesa e na grande fome de 1708, dependente do trigo. Como iremos ver adiante, a diversidade reduziu-se em vez de aumentar nos anos seguintes, podendo estar na origem das fomes do Sec. XXI.

Se a nossa história alimentar foi moldada até aos anos 60 por fatores ancestrais de base natural (clima e solos), social, cultural e política, que demoraram séculos a estabelecer-se, a partir desta década, e em particular dos anos 70, assiste-se a um acelerar progressivo da mudança dos hábitos de consumo alimentar na população portuguesa, aproximando-nos cada vez mais da Europa industrializada e do modo de comer ocidental.

Em 1960, os portugueses tinham um padrão alimentar com algumas semelhanças a outros países do Sul da Europa, aquilo a que poderemos chamar um padrão alimentar de características mediterrânicas, de base vegetal, em que a carne não tinha grande expressão e o azeite era a principal e praticamente a única gordura vegetal consumida. Entre 1960 e 1980, a disponibilidade de leite passa de 71,9 g para 202,3 g por habitante por dia, ou seja, sofre um aumento de 181%; o mesmo se passa com o queijo, que quase duplica a sua disponibilidade diária, passando de 6,3 g para 12,3 g por habitante por dia. Os dados relativos às evoluções das quantidades de carne disponíveis diariamente para os residentes nacionais demonstram bem esta aproximação ao padrão de consumo ocidental. A disponibilidade de carne de bovino para consumo aumenta de 51,4 g para 129,2 g por habitante por dia, ou seja, um aumento de 151%. O mesmo acontece com a carne de porco, que sofre um aumento de 60%, e as aves de criação, de 1379%, ou seja, aumentam de 3,69 g para 50,9 g por habitante por dia. Este modelo de consumo de aproximação ao que se consumia no Centro da Europa, curiosamente, não nega totalmente os produtos da nossa tradição mediterrânica. Com exceção do azeite, que, entre os anos 60 e 80, sofre uma variação negativa de 39% na sua disponibilidade e uma pequena baixa na disponibilidade de fruta (−15%), o que se deteta é um aumento de tudo o que é de elevado valor energético, como se os portugueses estivessem todos interessados em aumentar de peso e de aderir à desregulação metabólica que, anos mais tarde, fará de Portugal um caso de estudo no aumento da prevalência de casos de diabetes, obesidade infantil ou hipertensão. Nestas duas décadas, a disponibilidade de produtos alimentares associados ao desenvolvimento e à modernidade aumenta bastante. Por exemplo, a margarina aumenta 590%, os óleos 441%, a manteiga 33%, os refrigerantes 748%, o açúcar 63% e a cerveja 788%. Esta aproximação ao modo de consumo alimentar dito ocidental não acontece apenas em Portugal, mas repete-se um pouco por toda a Europa Meridional.”

Esta mudança acelerada dos padrões da disponibilidade vai tornar determinados alimentos mais acessíveis, tanto física como economicamente. Em particular, porque o processamento alimentar vai incorporar conservantes e aromatizantes como o sal, açúcar e gordura de baixo custo na cadeia alimentar. Estes alimentos de baixo preço, longa conservação, elevada conveniência e sabor apetecível vão integrar-se com facilidade crescente na alimentação das populações mais desfavorecidas. A estas preferências não será alheia a forte capacidade de investimento em publicidade nos grupos de alimentos processados e ultra processados, o qual não é possível nos alimentos frescos com menores rentabilidades e sem marcas próprias. Esta alteração no sistema alimentar vai refletir-se nos modelos de carência alimentar e nas populações afetadas que muda bastante nas últimas décadas. Das populações rurais com avitaminoses, carência proteica e energética descritas nos anos 40 e 50 do século passado e que representavam uma parte significativa da população nacional passamos para as populações periurbanas que hoje são grupos maioritários. Nestes grupos da população, a alimentação é um dos bens com maior elasticidade no orçamento familiar e recorrem com frequência às categorias de mais baixo custo tentando não prescindir de refeições completas e de uma organização social e cultural em torno da refeição, que é apanágio da cultura mediterrânica. Ou seja, passa-se do paradigma rural, com acesso facilitado a alimentos frescos, sazonais, de base vegetal, por vezes insuficiente em energia e alguns nutrientes, para um modelo alimentar não fresco, processado, muitas vezes ultraprocessado, tendo por base a trilogia sal-açúcar-gordura e proteína barata, quase sempre hipercalórico mas igualmente pobre em muitos nutrientes.

Se entendermos o conceito de segurança alimentar, de acordo com a FAO, reconhecido como “uma situação que existe quando todas as pessoas, em qualquer momento, têm acesso físico, social e económico a alimentos suficientes, seguros e nutricionalmente adequados, que permitam satisfazer as suas necessidades nutricionais e as preferências alimentares para uma vida ativa e saudável” conseguimos perceber que atualmente a insegurança alimentar na Europa e em Portugal já não está relacionada maioritariamente com a escassez de alimentos mas passou a estar, cada vez mais, relacionada com a má qualidade nutricional. Ou seja, deixa de ser uma carência maioritariamente quantitativa e passa a ser maioritariamente qualitativa, com um efeito pernicioso a longo prazo, perpetuando a doença, a incapacidade para o trabalho e a pobreza nas classes mais desfavorecidas.

A medição da Insegurança Alimentar em Portugal

Ao longo do séc. XX a situação alimentar da população muda progressivamente, como o indicam as balanças alimentares nacionais e, no final do século, começa-se a mediar efetivamente o nível de insegurança alimentar com maior precisão e detalhe através de ferramentas regulares e comparáveis, utilizando escalas validadas que permitem mediar a insegurança alimentar dos agregados familiares.

Em Portugal, o primeiro estudo exploratório sobre a situação de Insegurança Alimentar, utilizando questões estandardizadas foi realizado em 2003 pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) – “Uma Observação sobre “Insegurança Alimentar” e a partir de 2005-2006, o Inquérito Nacional de Saúde (INS) passou a incluir a recolha de dados relativos à situação de Insegurança Alimentar da população portuguesa. Estes estudos, em particular o INS, apesar de abrangerem grandes grupos da população, utilizaram versões reduzidas das escalas internacionais pois as perguntas sobre Insegurança Alimentar estavam integradas em inquéritos mais abrangentes sobre outros aspetos da saúde dos inquiridos.

Entre 2011 e 2014, é lançado pela DGS com o apoio do PNPAS, o inquérito Infofamília que vai ter como objetivo central contribuir para o conhecimento da situação de segurança alimentar dos agregados familiares em Portugal Continental que eram ao mesmo tempo utentes dos cuidados de saúde primários do Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante um período de crise económica e social particularmente intenso. Durante este período, foram realizados um total de 4872 questionários (1178, 1208, 1382 e 1104 questionários nos anos de 2011,2012, 2013 e 2014 respetivamente) o que permitiu ter pela primeira vez uma avaliação, em anos consecutivos, da situação de insegurança alimentar numa amostra substancial da população residente em Portugal, utilizando uma escala de insegurança alimentar adaptada da escala brasileira de insegurança alimentar, originalmente desenvolvida pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA).

Mais tarde, no período 2015-2016, é lançado o Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física que incorpora a avaliação nos níveis de insegurança alimentar da população residente em Portugal, não institucionalizada, com idades compreendidas entre os 3 meses e os 84 anos. A insegurança alimentar é avaliada através da aplicação do questionário desenvolvido por Cornell/ Radimer adaptado para Portugal. Este questionário fornece estimativas de insegurança alimentar, para agregados familiares com e sem menores de 18 anos, recolhendo informação sobre quatro dimensões subjacentes e à experiência da insegurança alimentar: disponibilidade, acesso, utilização e estabilidade/resiliência.

Entre 2015-2016 foi realizada a terceira vaga de avaliação do Epidemiology of Chronic Diseases Cohort Study (EpiDoC 3). A coorte EpiDoC foi projetada para estudar determinantes e resultados de saúde, doenças crónicas não transmissíveis e seu impacto no consumo de recursos de saúde. A coorte do EpiDoC incluiu 10.661 adultos (maiores de 18 anos) não institucionalizados e a residir em agregados familiares privados no continente e ilhas (Açores e Madeira) de Portugal (9). O objetivo deste último estudo (EpiDoc 3) foi investigar a prevalência da insegurança alimentar, a associação da insegurança alimentar com determinantes sociodemográficos e económicos e o impacto no estado de saúde e no consumo de outros recursos de saúde. A insegurança alimentar foi avaliada através de uma escala adaptada e validada para a população portuguesa a partir da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, que foi adaptada do US Household Food Security Survey Module (USDA).

Mais tarde, e já em pleno período pandémico da COVID-19, foi realizado o estudo REACT-COVID. O estudo, conduzido pela Direção-Geral da Saúde, teve como objetivo conhecer os comportamentos alimentares e de atividade física em contexto de contenção social, para combate à pandemia da COVID-19. Este estudo contemplou 2 momentos distintos de recolha de dados. O primeiro período decorreu em abril e maio de 2020, durante o primeiro período de contenção social decorrente do estado de Emergência Nacional e o segundo período de recolha de dados (REACT-COVID 2.0) decorreu entre maio e junho de 2021. A amostra em estudo foi composta por 4930 participantes (com 18 ou mais anos) e integrou questões sobre a Insegurança alimentar através de uma escala reduzida.

Estes grandes estudos de âmbito nacional foram complementados com outros de âmbito mais restrito a nível regional, mas demonstram bem a capacidade instalada em Portugal para avaliar com regularidade a insegurança alimentar, permitindo ter hoje uma boa “fotografia” da situação nacional e das suas especificidades e influências.

A resolução da fome

As tentativas de resolução das situações de carência alimentar aguda foram geralmente tardias e iniciaram-se quase sempre quando uma parte importante das populações já estava em insegurança alimentar grave. A prevenção destas situações, tendo por base modelos matemáticos de previsão meteorológica combinados com a situação da produção alimentar local ou outras é muito recente e apareceu apenas nos últimos anos, sendo ainda muito pouco aplicada.

A procura da autossuficiência alimentar no séc. XX e XXI e erros políticos associados

As tentativas de garantir alimentação suficiente, em quantidade e qualidade, para a generalidade população como desígnio das políticas públicas aparecem na segunda metade do séc. XX, embora nas primeiras décadas desse século tenham surgido, diversos projetos políticos de base totalitária que tinham como objetivo a autarcia alimentar e que terminaram de forma mais ou menos trágica para as populações. Tal como nos explicou magistralmente o Prof. Francisco Avillez no “Ciclo de Conferências Gulbenkian/Público – “O Futuro da Alimentação, Ambiente, Saúde e Economia” em 14 de junho de 2012: “A auto-suficiência alimentar de um dado país é a capacidade para satisfazer as necessidades de consumo de bens alimentares da sua população, através da respectiva produção interna e/ou da importação de bens alimentares financiados pelas correspondentes exportações.” Nestes casos do início do séc. XX, o que se tentou atingir foi algo diferente ou seja, tentou-se produzir internamente tudo o era necessário para tentar satisfazer primariamente todas as necessidades alimentares do país e eventualmente exportar caso fosse possível como objetivo secundário – A isto chama-se autarcia.

O caso mais conhecido ocorreu na Ucrânia deu origem à Grande Fome na Ucrânia (1932-1933). A Ucrânia, celeiro do mundo, sempre foi muito cobiçada. Em 1929, Estaline impôs a nacionalização de todas as propriedades agrícolas ucranianas que na altura integravam o império soviético. A apropriação pelo Estado soviético das férteis terras ucranianas, colheitas, gado e toda a maquinaria permitiria ao Estado abastecer as cidades e as forças armadas soviéticas, bem como exportar para o estrangeiro. As pequenas quintas e seus proprietários resistiram. Segundo alguns autores, mais de 50 000 agricultores e suas famílias terão sido deportados para a Sibéria. O objetivo de Estaline era fazer da Ucrânia um enorme produtor coletivo de cereais para todo o império, mas em 1932 percebeu que esse objetivo ia falhar largamente. Para castigar a aparente ineficiência dos agricultores ucranianos confiscou-lhes toda a comida e impediu a ajuda alimentar do exterior. Assim, começou a punir todos os “sabotadores” e aproveitou para suprimir milhares de intelectuais ucranianos, livros e até proibiu a própria língua. Milhões de agricultores fugiram e tentaram refugiar-se nas cidades. Em vários pontos da Ucrânia foram montadas barreiras policiais nas estações ferroviárias e nas estradas que levavam às cidades. Só em fevereiro de 1933 são detidas 220 000 pessoas, a maioria camponeses à procura de comida. Destes, 190 000 são obrigados a regressar às aldeias para aí morrer de fome. Estima-se que 3,9 milhões de ucranianos morreram diretamente em consequência da fome. Com falta de mão de obra, o regime faz deslocar milhares de agricultores russos para a região, mas o mal já estava feito. Muitos historiadores consideraram que esta restrição ao acesso de alimentos foi intencional e específica sobre um grupo da população com o objetivo do extermínio deliberado motivado por diferenças étnicas e nacionais e assim pode considerar-se um “genocídio”. Em 2018, uma Comissão do Senado norte-americano considerou este período, ou “Holodomor” – uma combinação das palavras ucranianas para “fome” e “infligir a morte”- como um genocídio.

Em Portugal, a insuficiência da produção cerealífera para satisfazer as necessidades de consumo é histórica. Ao contrário da Ucrânia, os nossos terrenos são de pior qualidade e a área capaz de produzir trigo é muito reduzida. Compramos trigo ao exterior praticamente desde os tempos de Afonso III. A nossa tradição de fazer pão sempre incorporou os cereais de terrenos menos férteis como o centeio, a cevada, e só depois o milho ou o trigo em menor quantidade, originando os nossos pães de mistura cujo expoente máximo é a broa de milho e centeio. Para fazer face a este défice persistente de trigo, Salazar lançou através do Ministério da Agricultura, em 1929, a “Campanha do trigo” que tinha como objetivo atingir a autarcia alimentar, ou seja, aumentar a capacidade de produzir trigo que fosse suficiente para abastecer o consumo da população nacional. Para aumentar a área arável e melhorar a capacidade produtiva por hectare foram destruídos montados e suprimidas largas manchas de sobreiros, criando-se paisagem agrícolas abertas sem árvores e de cerealicultura intensiva. O alastramento da lavra para a mecanização da cultura do trigo também destrói azinheiras e acelera a fragilização dos solos. Como resultado desta intervenção modifica-se todo o sistema ambiental em torno do montado com a redução ou eliminação da pastorícia, dos sistemas de pousio e da população que vivia deste modelo agrícola. Aumenta a erosão hídrica, a utilização de herbicidas e fertilizantes com a consequente redução da biodiversidade. Para além da tentativa de intensificar a produção de trigo em terrenos pouco adaptados para a produção de cereais, a “Campanha do trigo” tenta captar agricultores e essencialmente jornaleiros sazonais de outras regiões para o interior do Alentejo alterando a estrutura social até aí existente, mas não reduzindo as profundas desigualdades sociais já existentes. Curiosamente, devido à maior produção das colheitas de 1931 e 1936, o preço do trigo sofre uma forte desvalorização contribuindo a médio prazo para a desmobilização em torno desta iniciativa. Com o posterior insucesso e abandono desta estratégia agrícola, aumenta o despovoamento, o envelhecimento e a migração das populações rurais. De facto, transformar terrenos capazes de produzir vinho, amêndoa ou azeite de qualidade mundial em zonas de produção de trigo, em quantidade e qualidade não competitiva, não foi o mais desejável para aproveitar os nossos recursos naturais, humanos e financeiros de forma economicamente e ambientalmente sustentável.

Hoje, a história repete-se na Ucrânia com a tentativa russa de subjugar a população e capturar as planícies mais férteis do mundo, que se encontram precisamente a leste da Ucrânia, nomeadamente nas províncias de Kharkiv, Dnipropetrovsk e Zaporizhzhya. Nestas regiões, o perfil do solo é uniforme, profundo, fértil, muito escuro e rico em matéria orgânica na superfície e com elevada capacidade de retenção de humidade, o que faz da Ucrânia o país com a décima maior área arável do mundo. São mais de 339 mil quilómetros quadrados de área, principalmente composto por solos ultras férteis. Assim se explica que este país esteja entre os dez maiores produtores mundiais de trigo, milho, cevada, centeio, batata, e seja ainda o maior exportador global de óleo de girassol. Para obter esta enorme riqueza agrícola e energética, Putin vai utilizar estratégias muito semelhantes a Estaline. O combate aos “sabotadores” e “nacionalistas”, a utilização de deportações, o extermínio pela fome e aniquilação dos opositores com a destruição do setor produtivo e industrial. Já não nas aldeias como no passado, mas agora nas cidades onde se concentra a maior parte da população.

Para além da autossuficiência

Para além do aumento da produtividade agrícola, o combate à insegurança alimentar, tal como entendemos o conceito atualmente, reside na capacidade de dotar a sociedade e todos os cidadãos de soluções e oferta alimentar de adequada quantidade e qualidade alimentar e nutricional a um custo adequado (monetário e de acesso) e ao mesmo tempo fazendo com que esta oferta seja procurada e desejada. Adicionaríamos ainda a esta equação as novas questões da sustentabilidade ambiental. Ou seja, um modelo de segurança que permita combater as fomes do futuro já não combaterá apenas as fomes tradicionais por carência de alimentos e calorias, mas cada vez mais as fomes proporcionadas maioritariamente por inadequação nutricional provocadas por alimentos de má qualidade nutricional mas baratos que passaram a ser a fonte alimentar privilegiada dos mais carenciados social e economicamente.

Este modelo permitiria ainda combater a obesidade e doenças associadas (diabetes, hipertensão, cancro…) que hoje estão fortemente associadas ao gradiente social, sendo mais prevalentes nas populações mais desfavorecidas do ponto de vista educativo e económico. Em Portugal, por exemplo, a obesidade, a diabetes e a hipertensão deixaram de ser doenças crónicas que afetavam principalmente as classes mais elevadas e passaram a ser doenças com maior proporção de afetados nas classes com menos escolaridade e provavelmente com menos rendimentos. Face a estas alterações, necessitamos de um modelo que ultrapasse o círculo vicioso provocado pelas mudanças climáticas, conflitos e migrações relacionadas que vão originar mais pobreza e insegurança alimentar e que, por sua vez, vão originar mais doença aguda e crónica nestas populações tornando-as menos independentes e alimentando este círculo de pobreza.

Este modelo deverá tentar ultrapassar os fenómenos sindémicos já explicados por nós anteriormente, ou seja, a sinergia existente entre as epidemias da malnutrição (obesidade e desnutrição) e as alterações climáticas. Dois problemas à escala global, de natureza complexa, com causas e determinantes sociais comuns e com consequências para a saúde humana e do planeta. “Os sistemas alimentares, devido à sua configuração atual, em que se promove a agricultura intensiva, a produção de proteína animal ou o transporte maciço de alimentos através dos sistemas rodoviários, acabam por favorecer a existência de alimentos processados com elevada densidade energética e de baixo valor nutricional a baixo custo que impulsionam as pandemias de obesidade e desnutrição, mas também geram de 25-30% das emissões de gases do efeito estufa (GEEs). Se este modelo de produção, consumo e transporte alimentar acelera as mudanças climáticas, por sua vez, estas mudanças, a ocorreram, acabarão por aumentar o risco de desnutrição das populações mais vulneráveis e com menor capacidade de resiliência a eventos climáticos extremos como secas, cheias ou mudanças súbitas nos preços dos produtos alimentares básicos.”

Poderíamos ainda incluir nesta equação dois fenómenos, um mais recente e outro que tem vindo a crescer. O primeiro é a adição das doenças infeciosas às doenças crónicas como uma nova forma de aumentar o círculo de doença-alterações climáticas-malnutrição. O surgimento da Covid-19 veio colocar em evidência, nas nossas sociedades densamente povoadas, a importância da doença infeciosa que ainda por cima (no caso da Covid19 sim, mas não apenas) é sinérgica com as doenças crónicas. A alimentação inadequada, favorecedora de inflamação e em última instância de obesidade, parece ser um fator determinante para a gravidade na infeção por SARS-CoV-2. De facto, a COVID-19 atinge mais severamente obesos, diabéticos e hipertensos, doenças crónicas onde os processos inflamatórios estão aumentados. Doenças crónicas onde a alimentação pode ter um papel central, não só na prevenção da doença como no controlo metabólico das mesmas. Se estas pessoas, com estas doenças crónicas, forem também as mais desfavorecidas economicamente e mais frágeis face ao preço dos alimentos, aumentando os seus consumos de produtos alimentares pró-inflamatórios ricos em açúcar, sal, gordura que serão os mais baratos em momentos de crise, poderemos ter uma (infeliz) tempestade perfeita em termos de saúde publica nos próximos anos.

Algumas soluções no meio de um grande problema

A fome e os diferentes níveis de insegurança alimentar a nível planetário, para serem resolvidos, necessitam de uma mudança global nos modelos de produção agrícola, governação e de distribuição de riqueza. Não sendo este o objetivo central deste texto, falaremos apenas do panorama europeu e daquilo que podemos fazer localmente face à situação que vivemos e que descrevemos acima.

Os problemas da fome e da insegurança alimentar podem ter diferentes abordagens. Umas serão mais adequadas ao sistema alimentar que é global, e outras mais adequadas ao cidadão, mais a nível individual e local. Os conceitos de diversidade e racionalidade, dois conceitos centrais no glossário dos nutricionistas desde os anos 70 em Portugal e em particular da Escola de Nutrição do Porto podem, de novo, voltar a ser apresentados e utilizados neste contexto.

A diversidade é a base dos padrões alimentares tradicionais mais resilientes à carência alimentar, nomeadamente o mediterrânico. Por razões biológicas, necessitamos de uma enorme diversidade de nutrientes presentes nas mais diversas fontes animais e vegetais. Por outro lado, a variedade da proveniência dos alimentos, permite a biodiversidade e a sobrevivência quando um dos fornecedores não consegue responder à procura. As monoculturas sempre originaram fomes e dependência na Europa nos últimos séculos. Neste momento, voltamos a concentrar muita da produção alimentar em poucos “players” o que pode comportar um risco para o sistema alimentar global, tanto na oferta como na biodiversidade. Segundo um relatório recente da Oxfam “atualmente apenas sete países, mais a União Europeia, são responsáveis por 90% das exportações de trigo do mundo e apenas quatro países por 87% das exportações de milho”. Mais: são apenas quatro as empresas que controlam entre 80 e 90% do comércio global de cereais (Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus, conhecidas como o grupo ABCD). Na indústria alimentar a concentração é cada vez maior e na distribuição, acontece o mesmo em alguns países europeus. Necessitamos de um sistema alimentar diversificado, sempre que possível de proximidade, mas ao mesmo tempo eficiente, tanto na capacidade produtiva como na proteção do ambiente. Para que isso aconteça será fundamental a cooperação internacional, procurando que as zonas agrícolas mais capazes produzam aquilo que fazem melhor e tentando transportar os alimentos com menos impacto sobre o ambiente, preservando ao mesmo tempo a diversidade da produção local e o apoio aos seus produtores. Este é o maior desafio dos sistemas alimentares europeus impondo-se a racionalidade na produção e a gestão eficiente dos recursos naturais que por vezes não são possíveis em modelos de autossuficiência.

Mas a preservação da diversidade também necessita do contributo dos cidadãos. O papel dos cidadãos e a capacidade de produzir refeições a partir de uma verdadeira diversidade na origem dos produtos alimentares é determinante. Para isso, será necessário o domínio de técnicas e conhecimentos culinários que permitem cozinhar de maneira diversificada ao longo da semana e a baixo custo, ter acesso e reconhecer criticamente a proveniência dos alimentos, em particular de vegetais frescos, e que este consumo seja acessível do ponto de vista económico e do tempo das famílias. Um enorme desafio para a educação alimentar nos diferentes sistemas educativos europeus e para os legisladores na área do trabalho a nível europeu, de forma a permitirem que o “tempo para comprar, confecionar e comer” volte a ganhar espaço no dia a dia do trabalhador.

Outro conceito importante neste modelo é a racionalidade, ou alimentação racional, necessária para que não se desperdice tanto e não se gaste tanto, de forma desnecessária. A racionalidade que na dieta mediterrânica toma o nome de “frugalidade” começa no combate ao consumo excessivo de uma série de produtos alimentares, completamente desnecessários na alimentação humana do ponto de vista nutricional, como refrigerantes, certos doces e guloseimas, aperitivos salgados e diversos alimentos ultraprocessados (e respetivas embalagens), geralmente com elevado teor de calorias, gordura, açúcar e sal e baixo fornecimento de nutrientes. A racionalidade obriga também a pensar no desperdício alimentar, quando sabemos que 40% do que produzimos na UE nunca chega a ser consumido e que mais de 67% dos cereais que produzimos ou compramos no exterior da UE destina-se à alimentação dos animais, ao mesmo tempo que o consumo médio de alimentos do grupo da carne, pescado e ovos em Portugal é mais do dobro do recomendado pela nossa Roda dos Alimentos. Temos de combater esta esquizofrenia alimentar com maior racionalidade.

Como dissemos no início, o problema é complexo, e assenta num equilíbrio entre o apoio imediato e sem demora aos que mais necessitam e, ao mesmo tempo, na preparação de soluções para que estes problemas sejam minimizados no futuro, num sistema alimentar que se alterou profundamente nos últimos anos e onde a obesidade e a fome coexistem agora e cada vez mais nos grupos populacionais mais carenciados. Para problemas complexos como este, necessitamos de uma força de trabalho bem preparada tecnicamente, com sentido ético e consciente da força da sua voz na tomada de decisões. Esperamos ter contribuído para esta discussão.

Escrito por

Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

Pedro Graça Diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto

Nutricionista, Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website