Ao longo das últimas semanas refletimos com os nossos estudantes do Mestrado em Ciências do Consumo Alimentar e Nutrição sobre como será a evolução do consumo alimentar e do setor após este primeiro surto de SARS-CoV-2. Não se trata, contudo, de uma análise de tendências alimentares. Uma tendência pode ser definida como o resultado de uma mudança de comportamento, ou uma sequência de eventos que corre num determinado sentido e que se perspetiva que tenha durabilidade e um impacto significativo. Existem metodologias específicas para o estudo de tendências, que assentam na observação das atitudes e comportamentos dos consumidores, com o objetivo de identificar e analisar tendências atuais e futuras. Porém, sublinhamos que para a análise que fazemos neste texto, não foi utilizado nenhum método científico para analisar as tendências no sistema alimentar durante o período de isolamento social no contexto da COVID-19. Apenas juntámos opiniões, analisámos o que se publicou até ao momento e identificámos alguns dos dados já disponíveis. Resume-se neste texto e de forma minimamente ordenada alguns dos principais pontos de vista debatidos. Reflexões necessariamente datadas e desatualizadas mal as acabemos de publicar, mas que irão servir para memória futura, mais não seja, para retratar o que pensamos atualmente.

Três aspetos macro parecem ter alguma unanimidade quando se observa a situação. A imprevisibilidade desta crise, afetando a procura e a oferta alimentar à escala global nunca vista até hoje. A possibilidade de desde já se anteverem mudanças estruturais a médio prazo. As mudanças na sociedade não serão imediatas, sendo que as mudanças estruturais na cadeia alimentar irão ocorrer certamente mais tarde, tal como aconteceu por exemplo com as crises alimentares dos anos 90 (“BSE – Vacas loucas”, Dioxinas nos frangos…) as quais levaram à criação da EFSA na União Europeia e da ASAE em Portugal ou, mais tarde, à implementação de sistemas de rastreabilidade sobre a carne bovina. Por fim, o facto de as mudanças do comportamento no consumidor de produtos alimentares serem adaptativas. Ou seja, a resposta numa situação de confinamento será, por exemplo, a mudança na quantidade e regularidade do consumo. Contudo, as verdadeiras mudanças poderão ocorrer após este isolamento, através da necessidade de adaptação a uma doença que não irá desaparecer de um momento para o outro.

Inbreeding

O aumento da individualização do consumo e da tentativa de promover a produção alimentar de cada país, ou seja, de modelos de autossuficiência, definindo-se esta como sendo a capacidade de cada país satisfazer as necessidades de consumo de bens alimentares da sua população, através da respetiva produção interna e/ou da importação de bens alimentares financiados pelas correspondentes exportações. Esta individualização do consumo significa também comprar bens alimentares cada vez mais em e-commerce ou através de delivery – entrega em casa.
Para além desta questão tecnológica existe outra questão política, na medida em que os setores que melhor protejam os cidadãos irão recolher os seus dividendos. Neste aspeto o aparecimento das epidemias poderá favorecer regimes mais securitários ou aqueles que investiram ou que irão investir fortemente no setor público (que será difícil em tempos de economias frágeis).

Automação crescente

A cadeia alimentar percebeu que parte das sua fragilidade reside no fator humano e tentará cada vez mais automatizar todos os seus processos. Desde a produção agrícola, passando pela indústria, distribuição e entrega ao domicílio do consumidor. Esta racionalização industrial do sistema alimentar também poderá afetar o setor da saúde, tentando encontrar modelos e prestação de cuidados de saúde cada vez mais individualizados e personalizados que possam inclusive ser feitos à distância e em casa. O papel do ser humano nestas duas áreas tenderá a ser reformulado, embora vá aumentar a atenção para a robustez do sistema em situações de crise, uma vez que esta problemática deixou bem vincada a importância crucial destes dois setores – o alimentar e da saúde e, em particular, da existência de um setor da saúde pública, robusto em Portugal.

Um novo olhar para a dicotomia doenças crónicas/doenças agudas infeciosas

Se no passado estas categorias de doenças eram vistas como opostas, a COVID-19 veio demonstrar que patologias como a obesidade a diabetes ou a hipertensão podem ser agravantes no aparecimento e tratamento da doença infeciosa. Ou seja, quem as tem está em maior risco de ter um pior prognóstico durante o tratamento, o que implica que as doenças crónicas e as doenças agudas infeciosas, cada vez mais, se vão exprimir conjuntamente. Isto obrigará a uma abordagem diferente da habitual, em termos de prevenção e de intervenção em tempos de crise.

O aumento das desigualdades sociais

A progressiva automação da cadeia alimentar e do acesso facilitado aos alimentos por parte dos consumidores que melhor conhecem e mais acesso têm à tecnologia aumentará as desigualdades no acesso à alimentação, entre gerações e entre diferentes níveis económicos e sociais. O aumento do risco infecioso será também combatido pelo acesso a uma tecnologia dispendiosa (veja-se o caso dos ventiladores) e à capacidade de proteção de cada um, que se reduz quando as condições de salubridade diminuem. Para além destes fatores, as doenças crónicas, como a diabetes ou hipertensão, serão mais prevalentes nas classes sociais mais desfavorecidas, o que irá agravar o impacto da doença infeciosa. A esta situação, poderemos acrescentar a enorme massa de desempregados que virá desta crise e, ainda, redução generalizada do poder de compra.

Um olhar novo para o setor da comunicação/informação

Esta crise de saúde global tornou a comunicação de qualidade sobre o tema da saúde como uma área sensível e a merecer mais atenção dos governos pois pode determinar o curso de uma epidemia. Um investimento que muitos países farão no futuro será certamente a atenção para a criação de redes fiáveis de informação em saúde.

A procura da imunização pelos alimentos

As sociedades organizaram-se nos últimos anos para se protegerem das doenças crónicas estimulando a promoção da alimentação saudável, o exercício físico e/ou o combate ao stress. Para além dos alimentos protetores contra esta patologia, a área da alimentação e imunidade terá uma nova atenção. Durante esta crise houve um aumento da procura de frutos cítricos e certamente a de outros alimentos ou suplementos considerados importantes para combater a doença. Uma breve pesquisa utilizando o termo “Vitamin” no GoogleTrends mostra que o interesse pelo assunto era mediano até ao começo da crise do coronavírus, no final de dezembro. Contudo, a procura pelo termo “Vitamin” chegou ao nível máximo de interesse por parte das pessoas (rating máximo da plataforma), atingindo este pico a partir do dia 15 de março, e mantendo-se desde aí até pelo menos ao início de abril de 2020. Este poderá ser um modelo de pensamento cada vez mais presente nos consumidores.

Um novo papel para os profissionais da saúde ligados à alimentação

Sendo a alimentação equilibrada fundamental para combater esta dupla categoria de doenças(crónica/aguda) e existindo uma previsível rutura do sistema alimentar ao nível da disrupção nas escolas, lares, apoio a famílias carenciadas… novas funções e competências com acrescidas responsabilidades na área da gestão de emergências terão de ser pensadas na formação dos nutricionistas.

Esperamos que tenham gostado deste exercício. Terminamos citando Daniel Innerarity (2011):

No reino dos seres vivos, o ser humano é o único que sabe que há futuro. Se os humanos se preocupam e esperam é porque sabem que o futuro existe, que ele pode ser melhor ou pior e que isso depende, em certa medida, deles próprios. Mas saber isso não significa que eles saibam também o que devem fazer com esse saber. E reprimem-no com frequência, porque pensar no futuro distorce a comodidade do agora, que costuma ser mais poderoso do que o futuro porque é presente e porque é certo (…) Dar-se bem com o futuro não é tarefa fácil. Boa parte dos nossos mal-estares e da nossa pouca racionalidade coletiva provém de que as sociedades democráticas não mantêm boas relações com o futuro.

São autores deste texto:

Alexandra Monteiro, Ana Beatriz Alves, Ana Catarina Pinto, Ana Gabriela Cabilhas, Ana Teresa Rebelo, Andreia Ferreira, Bárbara Monteiro, Bruna Barbosa, Fernando Nogueira, Fernando Fonseca, Inês Mota, Jorge Boabaid, Laura Pinto, Maria Eduarda de Melo, Maria João Gregório, Nathália Godoy, Pedro Graça, Sofia Coimbra.

P.S. – Acabámos de falar do futuro mas não podemos esquecer o presente. A equipa editorial e todos os que fazemos o Pensar Nutrição  deixamos um abraço solidário às muitas centenas de  nutricionistas que por estes dias passam tempos difíceis. Em particular aos mais jovens. Um abraço para todos aqueles que estão desempregados, que trabalham a recibos verde ou em situações de trabalho precário e que neste momento têm tão pouca esperança no futuro. Não nós não vos esquecemos. Melhores dias virão e tudo faremos para isso. Mantemos viva a esperança e desejamos saúde a todos.

Escrito por

Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

Pedro Graça Diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto

Nutricionista, Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website