O nutricionista municipal, uma reflexão sobre o seu passado, presente e futuro

Em 2001, escrevemos o artigo “Nutricionista municipal como fator de desenvolvimento local em Portugal” (1). Entretanto, muita coisa se alterou. Alterou-se o quadro legal e muitas autarquias investiram nas questões da alimentação e nutrição em prol da saúde dos seus munícipes. Passados quase 20 anos deste texto inaugural, é tempo de voltar a refletir sobre o papel e o futuro dos Nutricionistas nas autarquias e o seu enquadramento na atual política alimentar nacional.

Desde 1976, ficou previsto na Constituição da República Portuguesa, considerar as autarquias locais como órgãos próprios para a prossecução de interesses comuns e específicos das respetivas populações. A organização do poder local está assim estipulada por lei, sendo que a Constituição define os órgãos que compõem os municípios, ou seja, a Assembleia municipal, na qualidade de órgão deliberativo e a Câmara municipal, o órgão executivo. A autarquia ou Câmara municipal é o órgão executivo colegial de cada município. O termo “Câmara municipal” também se refere ao conjunto dos departamentos e serviços da administração municipal.

A descentralização do Estado consagrada na Constituição de 1976, vai permitir a produção de legislação que concede novas atribuições e competências às autarquias locais. Entre 1976 e 1999, são produzidos diversos diplomas legais neste sentido, mas é em 1999, através das Leis n.ºs 159/99 de 14.09 e 169/99 de 18.09, alterada e republicada pela Lei n.º 5-A/2002 de 11.01, que se estabelece o quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais, bem como a delimitação da intervenção da administração central e da administração local, concretizando os princípios da descentralização administrativa e da autonomia do poder local.
Os municípios passam a dispor, entre outras, de atribuições nos domínios da Educação; Tempos livres e desporto; Saúde; Ação social; Ambiente e saneamento básico; Defesa do consumidor; Ordenamento do território e urbanismo, áreas essenciais ao desenho de políticas alimentares e nutricionais e onde o Nutricionista pode participar ativamente introduzindo a alimentação em todas as políticas e dando corpo a uma estratégia que poderemos denominar de “Nutrition in all policies”. A Lei n.º 159/99 veio permitir aos Nutricionistas, dotados de uma visão interdisciplinar e agregadora de vários saberes, identificar as áreas onde se podem produzir mais ganhos em saúde e aí intervir. Não apenas na área da saúde e educação, onde as autarquias passaram a ter a capacidade de construir e gerir equipamentos e a participar na definição das respetivas políticas locais de saúde e educação, por exemplo, mas a poder participar ativamente em outras áreas como a ação social ou a defesa do consumidor, onde existia um enorme trabalho por fazer.

Os primeiros nutricionistas nas autarquias

Abria-se assim uma área nova com um grande potencial de intervenção e mudança na sociedade, onde os nutricionistas podiam fazer a diferença. Neste sentido, são algumas as autarquias que inovam e recrutam nutricionistas nessa época, sendo que a área primordial de atuação começa por ser, quase sempre, o Ensino Básico do 1º Ciclo e Jardins de Infância e a gestão das cantinas escolares. Precisamente a área que vai ser trabalhada a partir de setembro de 1999 na Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia quando passa a integrar uma Nutricionista no seu corpo de colaboradores.
Será na gestão dos refeitórios escolares, desde a elaboração das cláusulas técnicas dos cadernos de encargos e acompanhamento do seu cumprimento até à verificação de requisitos higio-sanitários, bem como no domínio da educação alimentar que se constroem a maior parte das intervenções dos primeiros nutricionistas municipais. Mas progressivamente as áreas de intervenção passam a diversificar-se, à medida que se consolidam as equipas e o papel do nutricionista é reconhecido como agente de mudança, bem como se começa a perceber com mais clareza o poder das políticas alimentares e nutricionais sobre a alimentação inadequada.

A progressiva intervenção e consolidação dos nutricionistas na ação diária das autarquias em Portugal tem sido visível nos projetos e trabalhos apresentados desde 2006, quando iniciamos a organização via FCNAUP do I Congresso Português de Alimentação e Autarquias no Auditório da Misericórdia da Figueira da Foz. Desde então, e desde que começamos a acompanhar mais de perto o trabalho local dos Nutricionistas Autárquicos, a diversidade e qualidade das intervenções tem crescido muito. No último congresso dedicado a este tema (VI Congresso Português de Alimentação e Autarquias), realizado já em 2019 em Vila Nova de Gaia, foram apresentadas mais de 50 boas práticas de Norte a Sul que refletem bem este panorama inovador, de qualidade e de grande fervilhar intelectual na área. Desde Alcochete a Vila Real, podemos identificar uma crescente procura por projetos que interligam as disponibilidades locais (quer sejam de recursos humanos, naturais e de produção local ou até históricos) com a procura da melhoria do bem-estar alimentar e nutricional das populações gerando uma enorme diversidade de intervenções que agora começam também, e já, a ser avaliadas quanto à sua real valia para a melhoria do bem-estar de quem é atingido por elas.

No presente, uma área de inovação e multidisciplinar

Nestas intervenções mais recentes dos nutricionistas nas autarquias, é possível observar diferentes dimensões de inovação que podemos agrupar sumariamente da seguinte forma: estabelecimento de parcerias e a procura por parceiros que amplifiquem as intervenções, o aumento da capacidade de fazer o diagnóstico do estado alimentar e nutricional da população e produzir ciência de qualidade que ajuda à tomada de decisão política, a capacidade de intervir para combater desigualdades sociais na área alimentar, a integração crescente das práticas de sustentabilidade ambiental nas intervenções alimentares das autarquias nomeadamente nos processos de aquisição de bens alimentares em modo de produção biológica e de produção local, a produção de riqueza contribuindo para a melhoria dos rendimentos dos produtores locais, dando-lhes mais visibilidade ou, ainda, fomentando novos rendimentos, por exemplo ligando turismo, rotas gastronómicas e a alimentação saudável. E ainda a capacidade de integrar as práticas locais com modelos de intervenção mais global e interligando as autarquias em redes globais interessadas na melhoria da alimentação como é o caso do Pacto de Milão.

Esta tremenda diversidade e inovação fazem desta área um laboratório de experiências muito importantes para o futuro da profissão e para a consolidação da política de alimentação e nutrição nacional que vale a pena acompanhar de perto.
Em paralelo com esta extraordinária dinâmica, publicaram-se em 2018 e 2019 diversas leis que consolidam e aumentam a possibilidade das autarquias delinearem intervenções na área alimentar. Por exemplo:

– O Decreto-Lei n.º 20/2019 que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais nos domínios da proteção e saúde animal e da segurança dos alimentos.

– O Decreto-Lei n.º 23/2019 que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais e para as entidades intermunicipais no domínio da saúde e que transferem para os municípios, o estabelecimento de parcerias estratégicas com o SNS relativas aos programas de prevenção da doença, com especial incidência na promoção de estilos de vida saudáveis e de envelhecimento ativo. Trata-se de uma antiga reivindicação dos municípios, prevendo-se assim que estes possam vir a participar e influenciar ativamente o plano das políticas de saúde a nível dos seus territórios. Assim, as autarquias passam a poder desenvolver ou participar em atividades no âmbito da prevenção da doença, nomeadamente na promoção da alimentação saudável, na prática de atividade física regular e no envelhecimento ativo e saudável em parceria com o ACES e Administração Regional de Saúde, no quadro dos respetivos planos de ação e do Plano Municipal de Saúde.

– O Decreto-Lei n.º 21/2019 que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais e para as entidades intermunicipais no domínio da educação, através do qual o fornecimento de refeições em refeitórios escolares dos estabelecimentos dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário passa a ser gerido pelos municípios. Por gestão entende-se, entre outros fatores, a definição dos critérios nutricionais das ementas nos cadernos de encargos, as ações levadas a cabo para verificar e fiscalizar o que é oferecido bem como medidas para promover um consumo alimentar e nutricional adequado envolvendo o ambiente escolar. A partir de 2021, esta transferência de competências será obrigatoriamente concretizada por todas as autarquias nacionais, nomeadamente a responsabilidade pela gestão dos refeitórios escolares de todos os níveis de ensino, mas também, toda a gestão da ação social escolar que permitirá conhecer mais detalhadamente a realidade social de todos os níveis de ensino e de modo mais eficaz intervir na resolução das desigualdades sociais onde as questões alimentares/nutricionais são muito relevantes.

No âmbito da intervenção em contexto escolar, importa não esquecer o enquadramento legal para a Saúde Escolar e seu modelo organizacional. A saúde escolar tem sido sujeita a várias reformas ao longo do tempo, sendo atualmente uma área tutelada pelo Ministério da Saúde, com as equipas de saúde escolar integradas nos quadros de pessoal das Administrações Regionais de Saúde. Até 1971, o Ministério da Educação organizou a intervenção médica na escola através dos Centros de Medicina Pedagógica; entre 1971 e 2001, os Ministérios da Educação e da Saúde, dividiram responsabilidades no exercício da Saúde Escolar e em 1993, os Centros de Medicina Pedagógica foram extintos, tendo os seus profissionais sido integrados, em 2002, nos quadros das Administrações Regionais de Saúde. A partir desta data, o Ministério da Saúde passou a ter a tutela da Saúde Escolar. No seguimento desta alteração, foi criado o Programa Nacional de Saúde Escolar, através do Despacho n.º 12.045/2006 (2.ª série), publicado no Diário da República n.º 110 de 7 de Junho, que é coordenado pela Direção-Geral da Saúde, em articulação com o Ministério da Educação, sendo que a sua implementação a nível local compete aos Centros de Saúde. De referir que a alimentação saudável é uma das áreas prioritárias para a promoção de estilos de vida saudáveis, no Programa Nacional de Saúde Escolar. Assim, espera-se também uma ação articulada entre os nutricionistas autárquicos e as equipas de saúde escolar, para uma efetiva estratégia de melhoria da saúde escolar.

De facto, e recorrendo aos exemplos referidos, há já um longo historial de um trabalho profícuo da parceria entre as escolas e as suas equipas de educação para a saúde, e as equipas de saúde escolar e as equipas técnicas das autarquias, sendo este trabalho de verdadeiras sinergias e otimização de recursos, uma condição essencial para o reconhecimento das escolas com o Selo Escola Saudável. Muito embora, com muitos aspetos a melhorar naturalmente.

Os próprios documentos mais recentes do Ministério da Educação, nomeadamente a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania apontam para a importância do trabalho em Parceria. Só assim, se poderá rentabilizar recursos e alinhar estratégias fundamentais para as decisões políticas e definição de prioridades locais, direcionadas para as necessidades de cada população.

Este modelo de articulação futura, dificilmente parece contemplar a existência do chamado “Nutricionista Escolar” na dependência do Ministério da Educação, pois criaria um novo perfil profissional (não está prevista, na orgânica do Ministério da Educação, a categoria de Nutricionista), que iria duplicar a atividade de colegas que legitimamente e por força da lei intervêm na mesma área. Nas atuais condições legislativas, iria dar origem a uma prática profissional pouco autónoma e muito limitada no raio de ações a exercer, e pouco capaz de influenciar a tomada de decisão política, que hoje pertence, nesta área, maioritariamente ao poder local. E ainda pouco condicente com a capacidade de intervenção e mudança na sociedade que se pretende para a profissão. Uma área central da intervenção do nutricionista municipal que ocorreu nos finais do Séc. XX mas que felizmente já evoluiu, nestes últimos 20 anos, de forma segura e exponencial para outros domínios. Atualmente, uma participação mais ativa dos nutricionistas em ambiente escolar, deverá passar por uma maior integração destes profissionais nas estruturas com competências legais atribuídas. Ou seja, nas autarquias, cujas competências lhes permitirão uma real capacidade de intervenção ao nível da modificação da oferta alimentar, bem como nas equipas de saúde escolar, na dependência das Administrações Regionais de Saúde, na vertente da educação para a saúde.

O futuro

Dado este enorme potencial de intervenção, diverso, interdisciplinar e legalmente suportado no âmbito da descentralização de poderes para as autarquias nacionais, o nutricionista municipal ou a trabalhar numa autarquia, tem agora ferramentas para uma intervenção alargada a toda a população e com futuro. Hoje, sabemos, que a capacidade de intervir de forma sistémica e integrada na melhoria dos hábitos alimentares de uma faixa alargada da sociedade, desde o planeamento urbano até à gestão das escolas, só é possível de acontecer ao nível do poder local e das políticas locais com mandato explícito para tal. Estamos em crer que será este o caminho para uma intervenção de qualidade, de responsabilidade e autonomia, também nas escolas, onde o nutricionista autárquico vê alargada a sua área de atuação e competência, podendo intervir, não de forma isolada (escola a escola), mas numa perspetiva integradora e enquadrada na estratégia global do município para com a qualidade de vida da população que serve.

Voltando atrás, e sabendo o que, entretanto, foi conseguido para a profissão pelos colegas que trabalham na área, podemos voltar a terminar este texto com a frase que escrevemos em 2001 no final do nosso artigo:

“Estamos pois em crer, que o aparecimento do Nutricionista Municipal pela mão do poder autárquico, irá contribuir em muito, para reforçar a imagem do poder local e da sua capacidade de melhorar a vida dos cidadão.”

 

 

 

 

 

(1) Graça P, Alves E, Camarinha B et al. O Nutricionista Municipal como Factor de Desenvolvimento Local em Portugal. Alimentação Humana, 2001. Vol. 7, nº 1, pp- 3-20.

Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website
Rui Lima 1
Rui Lima
Técnico Superior da Direção-Geral da Educação, Nutricionista, Alumni da FCNAUP
Bárbara Camarinha 3
Bárbara Camarinha
Nutricionista da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, Chefe da Divisão de Ação Social Escolar da CMVNGaia e Alumni da FCNAUP

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