O ambiente no combate à obesidade infantil

Ambiente e Saúde – uma associação consensual

Até ao início do século XX, profissionais do planeamento urbano e de saúde pública trabalhavam lado-a-lado na melhoria das condições de vida da população, nomeadamente na atenuação dos efeitos nefastos dos processos de urbanização e de industrialização na saúde das populações. Contudo, as alterações no paradigma epidemiológico, das teorias ambientalistas para as teorias dos germes, que atribuíram maior relevância às investigações laboratoriais no combate aos problemas de saúde, e a emergência de um novo modelo de organização territorial que privilegiava uma especialização do uso solo urbano, afastaram as duas disciplinas.

Atualmente assistimos a uma progressiva (re)valorização dos fatores ambientais (sociais e do meio construído) e é consensual na comunidade científica que o meio onde o indivíduo vive, se desloca e trabalha, pode determinar a sua saúde através da modelação dos seus comportamentos e hábitos de atividade física e dieta, entre outros aspetos. Contudo, os mecanismos subjacentes à associação entre o ambiente de vizinhança e a composição corporal dos indivíduos são ténues e subtis.

Sabe-se que indivíduos residentes em ambientes urbanos em que se priorizam as pessoas e não os carros têm melhores indicadores de saúde. É sabido também, que ambientes urbanos planeados com ênfase no tráfego automóvel e sem parques verdes, criam sensações de maior insegurança e stress nos seus residentes. Sensações essas que estão associadas a respostas biológicas que desencadeiam mecanismos que incluem a libertação de hormonas (noradrenalina, cortisol, etc…) que têm efeitos diretos e indiretos na saúde, nomeadamente em doenças como a depressão, a diabetes e a obesidade (3).

Numa tentativa de quantificar a associação entre ambiente e composição corporal, surge, no final da década de 1990, o conceito de “ambiente obesogénico” que avalia o território de acordo com a sua capacidade de promover o aumento de peso dos indivíduos. Um ambiente obesogénico conjuga dois aspetos simultaneamente: a existência de locais de venda de comida altamente calórica e a falta de elementos que permitam aos indivíduos caminharem e serem fisicamente ativos, i.e., lugares que promovem a utilização do automóvel. Contudo, os resultados dos estudos sobre “ambientes obesogénicos” em vários países europeus são inconclusivos e por vezes até contrários ao expectável. Isto porque definir o território recorrendo apenas a estes aspetos é bastante redutor e não traduz a verdadeira essência dos lugares.

Definição e medição do Ambiente/Território

Em Geografia, o território caracteriza-se pela indissociação e interdependência dos aspetos materiais, físicos e sociais resultantes da ação humana. Neste sentido, o território é composto pela dimensão geográfica, antropológica, cultural, social, económica, bioecológica, etc, em simultâneo. E é devido a esta multidimensionalidade que a sua medição, avaliação e interpretação se torna numa tarefa extremamente complexa. Independentemente disso, a necessidade de perceber como os fenómenos em saúde, como a prevalência de obesidade, se distribuem espacialmente e porquê, persiste. Por isso, desenvolvem-se “índices compósitos” que, recorrendo a dados de diferentes fontes e naturezas (dados censitários, de uso de solo entre outros) tentam representar cada unidade territorial através de fatores endógenos, exógenos e sua interação. Estes indicadores compósitos são utilizados em vários países para identificar áreas com maior privação social e material e, consequentemente áreas de intervenção prioritária.

Num trabalho sobre o município de Lisboa, com o objetivo de avaliar o impacto do ambiente na obesidade infantil, foi desenvolvido um índice compósito, designado por índice multidimensional do ambiente, recorrendo a 20 indicadores de natureza social e a 14 indicadores do ambiente construído. Este índice permitiu verificar que existe uma maior proporção de crianças com excesso de peso e obesidade nas áreas da cidade com baixo nível socioeconómico e que os ambientes mais vantajosos (com elevado nível socioeconómico e com edifícios com estacionamento e casas de maior dimensão, simultaneamente) parecem proteger as crianças da obesidade.

Outro estudo, também no município de Lisboa, mas focado apenas nos aspetos do ambiente construído, utilizou 62 indicadores na construção de um índice compósito. Os resultados deste estudo mostraram que áreas com edifícios mais recentes, estacionamento e mais espaços verdes, parecem proteger as crianças da obesidade, mesmo tendo em consideração o estatuto socioeconómico da família e o peso das mães (fatores amplamente conhecidos como determinantes do peso das crianças). Este é o tipo de informação que contribui para um planeamento urbano saudável cuja responsabilidade é dos órgãos de governo local.

O planeamento urbano saudável no combate à obesidade infantil

De acordo com a mais recente evidência, as autarquias são as entidades mais habilitadas para liderar e coordenar intervenções de prevenção da obesidade infantil. Isto porque estão próximas da população, possuem um conhecimento privilegiado sobre o seu território e as respetivas necessidades e são capazes de agir de forma multissectorial e multinível. Daí, em 2008, no Reino Unido, ter sido criado o programa Healthy Towns (Cidades Saudáveis), em que participaram 9 autarquias e cujo objetivo específico era avaliar as abordagens ambientais na prevenção da obesidade. Neste programa foi possível explorar o papel dos profissionais do planeamento urbano nas intervenções de combate à obesidade. Foi também possível verificar que, é necessário alinhar as políticas de saúde e de planeamento urbano por forma a assegurar a articulação dos dois sectores em prole dos objetivos comuns e que, para combater a obesidade a partir duma perspetiva ambiental, é necessária criar uma linguagem comum e uma estreita cooperação entre os profissionais de planeamento e de saúde.

Em Portugal existe há mais de 20 anos a Rede Portuguesa de Municípios Saudáveis (anteriormente designada como rede de cidades saudáveis) que incentiva os municípios a tornar a saúde uma questão central nas suas ações. Esta rede tem como objetivos principais promover a saúde para todos, através da participação no debate das políticas de saúde nacionais, e apoiar intervenções que promovam a saúde a nível local com a garantia do envolvimento comunitário, entre outros aspetos.

Contudo, apenas 57 dos 308 municípios portugueses são membros da Rede Portuguesa de Municípios Saudáveis. E dos 57 membros, apenas um número reduzido de municípios promove intervenções para combater a obesidade infantil. A escassez de projetos municipais de combate a um dos mais sérios problemas de saúde pública dos nossos dias evidencia uma dissociação entre as políticas de saúde de âmbito nacional e as prioridades e ações do governo local.

É necessário que as autarquias sigam o exemplo do governo central e tornem o combate à obesidade infantil uma prioridade. Mais, há que estabelecer um paralelismo entre os programas nacionais de promoção de dietas saudáveis e de promoção de atividade física e as intervenções locais coordenadas pelas autarquias. Isto exige, entre outros aspetos, uma maior capacitação dos profissionais de planeamento urbano centrarem a sua ação na saúde e, acima de tudo, um trabalho multidisciplinar na elaboração de intervenções multissectoriais e sustentáveis.

Escrito por

Margarida Pereira 1
Margarida Pereira
Geógrafa, Mestre em Sistemas de Informação Geográfica pela FLUP e em Saúde Pública pela FMUP. Membro do Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, Departamento de Ciências da Vida da FCTUC e estudante do Doutoramento em Geografia no Departamento de Geografia e Turismo, FLUC
Helena Nogueira 3
Helena Nogueira
Professora Auxiliar do Departamento de Geografia e Turismo da FLUC. Investigadora no Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, Departamento de Ciências da Vida da FCTUC

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