O mundo pós-COVID e o novo papel dos Nutricionistas – Ensaio

A COVID-19 ao quebrar a velha dicotomia entre doença infeciosa e crónica e ao criar grupos de risco em torno da idade e da desregulação metabólica promovida pela alimentação inadequada e sedentarismo transforma uma infeção viral, altamente contagiosa e global, num enorme desafio social e político que nos obriga a pensar a nutrição de forma diferente.

Introdução

Os Nutricionistas da era moderna, ou seja, aqueles que começaram a relacionar as propriedades químicas dos alimentos com a doença de uma forma experimental e a intervir para resolver os problemas de saúde causados por uma ingestão alimentar desequilibrada, iniciaram as suas atividades apenas no início do Sec. XX.

Embora não tenha sido o primeiro “nutricionista”, podemos sinalizar na figura de Kazimierz Funk este início fulgurante das ciências da nutrição. Funk era um cientista polaco a trabalhar em Inglaterra e, em 1912, ao publicar um artigo intitulado “Vitamines”, apresenta pela primeira vez este conceito. Funk estudava os aminoácidos e as suas “bases orgânicas” e sustentava que certas doenças poderiam ser evitadas se garantíssemos que determinadas substâncias químicas estivessem presentes na nossa alimentação. Iniciava-se, assim, o estudo moderno dos alimentos e da sua relação com a doença. Que teria continuidade nas profissões assistenciais criadas nos anos 20 nos Estados Unidos da América, embora de início confinadas ao fornecimento de refeições nos hospitais reportando ao pessoal de enfermagem. A terapêutica dietética consistia essencialmente na alteração da consistência dos alimentos e a formação inicial era dada por professores oriundos da área da home economics. Mais tarde, tudo viria a mudar com a intervenção dos nutricionistas na comunidade, constituindo-se como mais um instrumento de alívio de tensões sociais na América Latina e depois, com essa mistura própria entre saberes interdisciplinares, daria origem à Escola de Nutrição do Porto, já nos anos 70.

100 de anos de instalação da doença crónica

Todo o século XX vai assim ser repleto de grandes feitos na área das ciências da nutrição e, em paralelo, nas ciências médicas. Um dos maiores feitos da medicina foi a progressiva redução das doenças infeciosas como principal causa de morte. Em 1900, nos Estados Unidos e na maioria dos países Europeus, o padrão de doenças era relativamente semelhante. Nesse ano, as três principais causas de morte foram a pneumonia, a tuberculose e a diarreia/gastroenterites, que (juntamente com a difteria) causaram um terço de todas os óbitos. Desses, 40% ocorreram em crianças com menos de 5 anos. Muito vai mudar em pouco mais de 100 anos.

Em 1997, no final do século, as doenças cardíacas e oncológicas já representavam 54,7% de todas as mortes nos EUA, sendo que no mesmo ano apenas 4,5% da mortalidade foi atribuível a doenças infeciosas como a pneumonia, influenza e infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). Em Portugal, observávamos uma mudança de padrão muito semelhante e, em 2017, as doenças do aparelho circulatório representaram 29,4% da mortalidade e os tumores malignos 25,0%, sendo estas duas doenças crónicas junta as principais responsáveis pela mortalidade entre nós. Enquanto isto, algumas doenças infeciosas e parasitárias representaram apenas 1,8% da mortalidade no país.

Para esta mudança de paradigma na mortalidade muito contribuíram as descobertas científicas e as ações de saúde pública. Por exemplo, a descoberta no século XIX dos microrganismos responsáveis por doenças infeciosas como a cólera e a tuberculose. As melhorias no saneamento de muitas cidades, a descoberta de antibióticos e a implementação de programas universais de vacinação infantil. Apesar do século ter começado mal, com a terrível emergência da pandemia de gripe de 1918, também conhecida por Pneumónica ou Gripe Espanhola, e posteriormente com as epidemias de tifo, varíola e difteria que surgiram como consequência das deficientes condições sanitárias após a I Guerra Mundial, à medida que avançamos no tempo, são as doenças crónicas que começam a ser a principal causa de morte e de doença na nossa sociedade.

Tomemos como exemplo a obesidade. Em 1920, são descritas pela primeira vez, através da análise dos registos da empresa de seguros Metropolitan Life Insurance Company as consequências da obesidade na saúde das populações. Mais tarde, e ao longo de todo o século XX, reúne-se muita informação que associa a obesidade a outras patologias como a diabetes e, depois, com a hipertensão. O progresso é lento de início. No caso da obesidade, esta só se torna uma questão política e de discussão pública em 1973, quando George Bray produz o célebre Fogarty Report nos Estados Unidos. E só em 1988 a OMS publica o seu primeiro “Nutrition and Chronic Disease Report for the European Region” com um capítulo separado sobre obesidade.

É no final de século XX, a partir de 1976/77, que a formação dos nutricionistas aparece entre nós, mais concretamente através da Universidade do Porto. As ciências da nutrição e a Escola de Nutrição do Porto crescem assim, a par do incremento do conhecimento sobre alimentação e doenças crónicas e também a par do crescimento imparável destas doenças em Portugal. Em 2015, a prevalência da diabetes na população adulta portuguesa entre os 25 e os 74 anos era de 10%, aproximadamente. A prevalência de hipertensão arterial era de 36% e a prevalência de obesidade de 29%. Neste contexto, estimava-se que 5,9 milhões de portugueses tivessem excesso de peso, o mesmo acontecendo a 8 em cada 10 idosos. Esta crise de saúde pública, numa população idosa e cronicamente doente desde muito cedo na sua vida adulta, obrigou nestes últimos anos a um gasto desmensurado de recursos no Serviço Nacional de Saúde.

A emergência das doenças crónicas e a concentração dos recursos na luta contra este problema fez esquecer, de certa forma, o risco crescente das novas formas de doença infeciosa na Europa, e também no resto do mundo. Devido a inúmeros casos de sucesso, como a vacinação contra a poliomielite, cujo último caso remonta a 1986, ou o sucesso do Programa Nacional de Eliminação do Sarampo e da Rubéola, que fez Portugal obter em 2015 e 2016 a certificação da eliminação do sarampo pela OMS-Europa, o Serviço Nacional de Saúde montou uma estrutura eficaz que nos fez estar descansados neste aspeto.

Contudo, não nos podemos iludir face a este sucesso. A existência de uma rede de sensores e de alertas para as doenças infeciosas não é suficiente para um país se dizer preparado para enfrentar um surto infecioso. Uma nova infeção traduz-se no aparecimento de um microrganismo com características diferentes, que pode ter novos mecanismos de transmissão, com carga viral desconhecida e de consequências para a saúde desconhecidas que impedem uma resposta imediata. Quando a capacidade de contágio é elevada, as respostas face ao desconhecido, mesmo no atual sistema melhorado de comunicações entre a comunidade científica internacional, remetem para as antigas respostas às pandemias através do isolamento e quarentena tal como se aplicava desde a idade média.

Mas não sendo os vírus totalmente novos (mais concretamente a família dos coronavírus), o que é verdadeiramente novo neste contexto é a situação económica, demográfica, social e política neste século XXI. Quando no início do Sec. XX, em 1918-1919, uma nova pandemia, a Gripe Espanhola, afetou a Europa e Portugal, a desnutrição, a falta de higiene e os acampamentos médicos e hospitais sobrelotados em toda a Europa (em consequência da I Guerra Mundial) foram talvez os fatores que mais exacerbaram a sua mortalidade. Em Portugal, a Gripe Espanhola provocou 136 mil mortos num país com seis milhões de habitantes, uma das mortalidades mais elevadas da Europa. Apesar de já estarmos em pleno séc. XX é de recordar que esperança média de vida à nascença em Portugal, em 1930, não atingia mais de 45 anos para os homens, o que constituía um dos piores valores na Europa. Ao mesmo tempo, a taxa de mortalidade infantil portuguesa, em 1930, era de 144 óbitos de crianças com menos de um ano de idade por cada mil habitantes. Entre as principais causas de morte encontramos as diarreias e as enterites (causa direta de 14% das mortes entre 1934 e 1940) ou a tuberculose (causa de 10% dos óbitos no mesmo período). Em 1918, existiam em paralelo diversos surtos epidémicos de varíola, febre tifoide, tifo exantemático e disenteria.

A 5 de setembro de 1899, Ricardo Jorge escrevia no seu diário: “O Porto tem falta de um bom sistema de canalização e a imundice nos bairros baixos da cidade é indescritível e suficiente para provocar qualquer epidemia. (…) É agora necessário tomar medidas muito enérgicas, construir novos esgotos ou, sem isso, o Porto continuará a ser das cidades mais insalubres da Europa”. Em 1918, a situação não melhorara. Nessa altura, Ricardo Jorge já como Diretor-Geral da Saúde e diretor do Instituto Central de Higiene, descreveu num relatório a situação das ilhas do Porto perante a epidemia de tifo exantemático, “a doença tem como predileção as classes ínfimas, mal alojadas, maltratadas e mal mantidas”. Em 1930, a percentagem de iletrados por entre a população com idade superior a 7 anos atingia os 62,3% e, o trabalho agrícola, ocupava mais de metade da população ativa. Não admira, portanto, que esta pandemia tivesse uma letalidade tão elevada e eventualmente tão pouca atenção mediática num clima de elevada mortalidade, desnutrição e insalubridade diária nas nossas comunidades.

Uma sociedade moderna, cronicamente doente mas pouco preparada para a infeção

Atualmente, a situação é muito diferente. A começar pelo avanço da nossa medicina e da nossa capacidade instalada. Em 1920, havia 2580 médicos em Portugal, o que sugeria existir um médico por 2338 habitantes, enquanto atualmente se regista um médico por 189 habitantes (números de 2018 para o território continental). No início do século XX, muitos médicos estavam alistados e a servir nas forças armadas, impedidos, por isso, de servir a população geral. Adicionalmente, a assistência médica e até o acesso a farmácias era muitíssimo escassa no interior do país, zonas onde vivia quase metade da população portuguesa.”. Atualmente, a distribuição do pessoal de saúde e unidades hospitalares situa-se no litoral, onde reside a maioria da população e a situação de salubridade nas nossas cidades é totalmente diferente. A situação demográfica e social também se alterou substancialmente. Hoje menos de 6% da população ativa trabalha no setor agrícola. Para se ter uma ideia da velocidade desta evolução, o número de pessoas pertencentes ao agregado familiar de agricultores desceu de quase 2 milhões em 1989 para cerca de 800 mil em 2009, traduzindo-se numa quebra de 60%. Em 2011 apenas 6% da população com mais de 15 anos era analfabeta e 62,2% da população (6.566.925 habitantes num total de 10.562.178 habitantes) vivia em cidades ou áreas urbanas.

Esta tendência para a concentração da população em lugares urbanos tem vindo a acentuar-se nas últimas décadas, tendo-se verificado o reforço dos lugares de maior dimensão populacional, em detrimento dos de menor dimensão. Ou seja, a continuação dos processos de litoralização e de metropolização em torno de grandes áreas urbanas como são Porto e Lisboa. Que mais não são do que uma promessa utópica de emancipação económica e política e um lugar de integração para pessoas de diferentes origens que procuram nas grandes cidades um lugar de liberdade e de afirmação pessoal.

A par de uma concentração urbana no litoral é de registar o envelhecimento da população. As alterações na dimensão e na distribuição por sexo e idade da população residente em Portugal, devido à baixa natalidade e ao aumento da longevidade nas últimas décadas, indiciam, para além do decréscimo populacional, a continuação do envelhecimento demográfico. Em 2018, a população jovem (pessoas com menos de 15 anos) diminuiu para 1 407 566 pessoas e a população com idade igual ou superior a 65 anos aumentou para 2 244 225 pessoas representando, respetivamente, 13,7% e 21,8% da população total estimada. Em 2018, metade da população residente tinha mais do que 45,2 anos e Portugal possuía uma das populações mais envelhecidas do mundo. Em 2008, por cada 100 jovens residiam em Portugal 116,4 idosos, número que aumentou para 159,4 em 2018. Para além de termos uma população envelhecida temos também uma população bastante doente.

A doença acompanha naturalmente o envelhecimento, mas, no caso nacional, passamos mais anos doentes do que a média europeia. Em 2018, na União Europeia, era expetável que os homens com mais de 65 anos pudessem viver 9,8 anos de vida saudável e as mulheres 10,0 anos de vida saudável (sendo considerado “vida pouco saudável” a limitação em atividades normalmente desenvolvidas pelas pessoas devido a problemas de saúde durante os 6 meses anteriores). Na Suécia, esses valores atingiam, em 2018, os 15,6 anos para homens e 15,8 para as mulheres. Em Portugal, nesse mesmo ano, era expetável que os homens vivessem apenas 7,8 anos de vida saudável e as mulheres 6,9 anos de vida saudável após os 65 anos. Estes valores ainda atingem uma maior expressão quando se verifica uma grande longevidade na nossa população, na medida em que a nossa esperança de vida é elevada e superior à média europeia. Ou seja, somos um dos povos da Europa que vive mais anos… doente. Doente com patologias crónicas, muitas delas de base alimentar como a diabetes, doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, obesidade e doenças oncológicas.

Mas se as doenças crónicas são responsáveis por 80% da mortalidade nos países europeus, e Portugal não é exceção, a prevalência destas doenças é condicionada por fatores de risco individuais e sociais. Ou seja, fatores que poderíamos modificar como o excesso de peso e os hábitos alimentares inadequados, o sedentarismo, o tabagismo e o alcoolismo. De acordo com o “Global Burden of Disease”, cerca de 41% do total de anos de vida saudável perdidos por morte prematura em Portugal poderiam ter sido evitados se fossem eliminados estes fatores de risco. Estas doenças possuem um elevado gradiente social. Por exemplo, o mais recente inquérito nacional de saúde com exame físico, realizado em 2015, identificava que o grupo dos indivíduos que não possuía nenhum nível de escolaridade, ou que possuía apenas o primeiro ciclo do ensino básico, apresentava uma prevalência de obesidade (43,1%) mais do dobro comparativamente aos grupos de indivíduos com maior escolaridade (ensino superior). A mesma tendência acontecia para a hipertensão arterial e diabetes, por exemplo.

Este surto infecioso que agora acontece, apanha Portugal com uma população envelhecida, com uma prevalência elevada de doença crónica (excesso de peso, diabetes e hipertensão), a viver concentrado no litoral e em cidades com grande concentração demográfica. E tal como tem vindo a ser demonstrado, a doença infeciosa viral vai afetar preferencialmente as pessoas com determinadas doenças crónicas como a obesidade. Isto porque diversos passos da resposta imune inata e adaptativa sofrem alterações decorrentes do estado de inflamação crónica de baixo grau presente na obesidade, diabetes e síndrome metabólica. Assim se explica por que razão indivíduos obesos apresentam elevação de adipocitocinas pró-inflamatórias como a leptina. Esta alteração do ambiente hormonal conduz a alterações da resposta imune contribuindo para a patogénese das complicações associadas à obesidade. Ao contrário das pandemias do passado, a situação epidemiológica atual fará com que os portadores de doença crónica e em particular obesidade sejam também os mais suscetíveis á doença infeciosa. Tudo se repete, são sempre os mais frágeis da sociedade que estão mais expostos à doença. Se na Idade Média eram as pessoas mais pobres, com fome e desnutridas, hoje são os igualmente os mais pobres, só que desta vez aqueles afetados pela malnutrição moderna que é a obesidade.

Com a continuação do crescimento demográfico, com a concentração das pessoas em centros urbanos, com a manutenção dos perfis sociais e demográficos de envelhecimento e com a manutenção do perfil epidemiológico causado pelo excesso energético e sedentarismo, é natural que continuem as vagas de doenças infeciosas que se irão misturar e exacerbar as doenças crónicas já instaladas na nossa sociedade. E se o isolamento social for uma tendência de combate a estas doenças é natural que as doenças crónicas e a consequente desregulação metabólica também tendam a crescer.

Um mundo novo, mais desigual socialmente e a viver uma crise ambiental

O que é realmente novo é que esta nova mistura de doença aguda/doença crónica traz uma nova necessidade de contenção física que no passado não existia. Se os obesos, os hipertensos ou os diabéticos tinham uma doença relativamente “imóvel”, não transmissível, quando adicionamos a doença infeciosa a esta equação, estas pessoas acrescentam mobilidade e potencial transmissibilidade à doença. Tornam-se assim um fator da sua propagação, sendo o seu isolamento uma estratégia natural de combate à doença e de proteção dos próprios. Ora o isolamento dos doentes crónicos significa também e principalmente em Portugal, o isolamento das pessoas com mais baixos índices de escolaridade, com menores rendimentos e também em profissões de contacto físico, com reduzida capacidade de teletrabalho e menor capacidade económica que tendem a agravar o estigma, as desigualdades sociais e as desigualdades em saúde já existentes na nossa sociedade.

De notar que a situação económica já era um forte determinante do modelo de consumo alimentar. Sabemos que populações economicamente mais frágeis são também aquelas com menor acesso a alimentos frescos e onde a relação preço/fornecimento de calorias tende a privilegiar o consumo de produtos processados de grande densidade energética, conservados pelo sal e açúcares. Produtos esses que se conservam melhor nas prateleiras, que são muito promovidos comercialmente e estão disponíveis 24h. A agravar esta situação deveremos notar que no contexto do aparecimento de surtos infeciosos existe uma tendência, mesmo que mais ou menos momentânea, de quebra das redes de fornecimento alimentar solidário e voluntário. Em consequência, aumenta o fornecimento de produtos alimentares de má qualidade nutricional, baratos, que se conservam bem, mas disponíveis em momentos de crise, que tendem a aumentar o descontrolo metabólico. Descontrolo metabólico que é fator de risco precisamente para os doentes crónicos face à doença infeciosa viral.

Em paralelo, os surtos infeciosos são modeladores intensos da prestação dos serviços de saúde. Nestas ocasiões, os serviços de saúde tendem a desviar recursos para o tratamento da doença aguda, negligenciando momentaneamente a doença crónica que é curiosamente a mais afetada pela doença aguda e também a que pode fazer aumentar a mortalidade pela própria doença infeciosa.

Esta crise também não é independente da crise ecológica que estamos a viver. Já aqui discutimos o conceito de “sindemia” ou seja, uma sinergia de pandemias que coexistem no tempo e no espaço, interagem entre si e compartilham fatores sociais e outros comuns. Este conceito foi utilizado pela primeira vez por Merrill Singer e Scott Clair, em 2008, no Relatório “Syndemics and Public Health: Reconceptualizing Disease in Bio-Social Context” para explicar a sinergia existente entre as epidemias da malnutrição (obesidade e desnutrição) e as alterações climáticas. Dois problemas à escala global, de natureza complexa, com causas e determinantes sociais comuns e com consequências para a saúde humana e do planeta. Quer a origem, quer as dificuldades sentidas para travar o progresso destas diferentes pandemias, têm causas comuns. A isto podemos agora acrescentar a pandemia pela Covid-19 que mais não é do que uma mistura de elevada densidade demográfica e interconexão entre pessoas, invasão dos ecossistemas animais, malnutrição e descontrolo metabólico de uma grande parte da população, desprotegida economicamente e, ainda por cima, envelhecida. Condições estas que as crises climáticas tendem a agravar.

O papel do nutricionista no mundo pós-COVID

Neste contexto de mudança de paradigma na intervenção em saúde pública constata-se a continuidade da centralidade da alimentação adequada como fator determinante na manutenção do estado de saúde das populações e, por outro lado, o acesso a esta mesma alimentação adequada como fator importante para a redução das desigualdades em saúde. Mas se a adequação e o acesso à alimentação saudável continuarão centrais na promoção da saúde das populações, o modelo de intervenção do nutricionista terá de ser agora mais adaptativo a esta nova situação.

Em primeiro lugar, será necessário combater a anterior ideia de uma certa independência ou separação entre doença crónica e doença aguda. Como notamos, são categorias de doença que no contexto atual da COVID acabam por se interrelacionar e amplificar. A alimentação para a redução dos processos inflamatórios, manutenção do sistema imunitário em boas condições e controlo metabólico têm muito em comum e não devem ser separados. Estes processos são vitais na prevenção ou mitigação de futuros surtos de doença infeciosas e os nutricionistas que estão na comunidade irão ter um papel central nestas intervenções. Durante e entre crises futuras, ou entre vagas da mesma pandemia. Também as intervenções mais diferenciadas no combate à infeção necessitarão cada vez mais de profissionais capazes de providenciar o suporte nutricional adequado nas unidades de saúde mais especializadas e, portanto, esta é uma área que necessitará da nossa atenção máxima.

O mesmo se passará com o treino para um atendimento à distância dos profissionais de saúde com a necessária revisão de alguns códigos deontológicos e com uma posição menos conservadora e mais rápida e adaptativa por parte das entidades reguladora da profissão, nomeadamente as Ordens profissionais

Mas outros desafios irão aparecer. Os momentos de consumo alimentar são na sociedade e na sociedade mediterrânica em particular, momentos de convivialidade que são importantes para o bem-estar emocional das populações, para uma ingestão alimentar mais equilibrada e também para a redução dos impactos do consumo alimentar no meio ambiente. Competirá aos nutricionistas serem capazes de trabalhar novas regras de segurança dos alimentos e manter os padrões de convivialidade mínimos. Esta intervenção será ainda mais importante em locais de risco aumentado como os espaços onde existem doentes ou idosos institucionalizados. Os sistemas de produção e distribuição de alimentos tentarão utilizar, cada vez mais, os modelos de produção e autonomia local como resposta às necessidades de mercado. Será necessário desenhar novos sistemas. Depois da generalização do sistema de Análise de Perigos e Controlo de Pontos Críticos (HACCP) com o objetivo de evitar potenciais riscos aos consumidores colocando à disposição alimentos seguros através do Regulamento (CE) nº852/2004 é tempo de revisitar os pontos críticos destes sistemas tendo como nova preocupação a infeção entre profissionais da cadeia alimentar.

Todos estes modelos, quer seja da prestação de cuidados quer seja do sistema produtivo alimentar, partem agora de um novo paradigma que se sublinha com esta crise . Quanto menor a participação do ser humano mais robusta fica a cadeia produtiva e menos sujeita estará a interrupções não programadas. Ou seja, vai-nos ser pedido, cada vez mais, para desenhar modelos de produção alimentar, de assistência à doença e de controlo que no futuro irão aumentar o desemprego em áreas mais tradicionais de intervenção do nutricionista. Nada que a obra distópica de Isaac Asimov não previsse desde os anos 40. O tema da dependência dos seres humanos em relação aos robots com capacidade para criar outros robots superiores e assim por diante, até que as máquinas se transformam em mecanismos tão complexos que escapam à possibilidade de verificação e controlo humanos. A robotização é certamente um processo que estas doenças irão acelerar, incluindo na cadeia alimentar e no trabalho.

Os nutricionistas deverão participar nestes rearranjos de forma a que este investimento não retire o acesso a produtos alimentares saudáveis à população mais desfavorecida economicamente. As populações mais desfavorecidas economicamente e malnutridas (por excesso ou carência) serão as primeiras a necessitar de apoio alimentar de qualidade neste e nos futuros surtos infeciosos. A escassez alimentar aparecerá. Pelo menos, a escassez de produtos saudáveis para os mais carenciados irá sentir-se e a insegurança alimentar voltará a ultrapassar os níveis de 2011. O treino e a formação para o apoio alimentar de emergência mantendo a qualidade nutricional, será certamente uma das áreas de formação dos nutricionistas no futuro. Assim como o combate ao estigma sobre os infetados numa primeira fase e sobre os doentes crónicos e os idosos que serão os grupos mais afetados nesta interação infeção – doença crónica – pobreza como determinante do tempo e utilização de recursos humanos e físicos dos sistemas de saúde.

Epílogo

Quase no fim, voltemos ao início. Durante séculos combatemos pestes sem conhecimentos experimentais, baseados apenas no empirismo ou em dogmas religiosos. Apesar de tudo, os “nutricionistas de outros tempos” estiveram sempre na linha da frente. Proibindo alimentos como a “galinha, as carnes gordas ou o azeite” nos manuais anti peste da Idade Média ou sugerindo alimentos e formas de desenhar cidades para combater a doença como o fizeram Leonardo da Vinci, um fanático da alimentação em tempos da peste de 1484/1485. Hoje, os conhecimentos são outros e sabemos como podemos ser Úteis na linha da frente, quer seja no combate à malnutrição e doenças associadas como a diabetes ou no combate a doenças infeciosas como a COVID-19. As ferramentas também são outras, mas os alimentos são os mesmos. Muito provavelmente, os alimentos que nos protegeram nos últimos 8000 anos ao longo da bacia mediterrânica, são os mesmos que serão decisivos para combater a desregulação metabólica e promover a otimização da imunidade. E, ao mesmo tempo, preservar o meio ambiente.

A sociedade de risco que atualmente vivemos e tal como a apresentou o sociólogo alemão Urlich Beck, deixou progressivamente de ter como preocupação central, a luta contra a carência (alimentar, entre outras básicas), subtraindo ao processo de modernização a sua anterior base de legitimação: a luta contra a carência evidente, pela qual se estava disposto a aceitar alguns dos seus efeitos secundários. A atual sociedade vai agora ser caracterizada por novos riscos. Estes riscos não são visíveis na maior parte das vezes, sendo estabelecidos pelo saber, que os pode dramatizar ou minimizar, e suscetíveis a processos sociais de definição, onde quem define o risco, se converte num ator sociopolítico fulcral. Este tipo de risco, afeta também quem os produz e quem beneficia deles, sendo em muitos casos riscos globais, produzindo novos tipos de desigualdades, onde o conhecimento adquire um novo significado político. O facto de estes riscos terem cada vez menos fronteiras, e a opinião pública e política, poder não estar disposta a aceitá-los, faz com que aumente a intromissão pública e política na esfera da autonomia das pessoas e até dos países.

Contudo, poderemos encontrar coisas boas nesta crise. A ideia privada da felicidade que se estava a tornar predominante e que tinha deixado de se associar a projetos coletivos pode ter sido repensada por alguns durantes estas semanas. O nosso atual destino parecia ser e nas palavras de Daniel Innerarity “o salve-se quem puder no meio de forças impessoais procedentes da globalização, da burocracia e da tecnologia, numa sociedade sem política, sem esperança colectiva, incapaz de imaginar e promover um futuro comum alternativo”. Esta crise pode ter ajudado a perceber, pelo menos um pouco, que a política pública pode ser o esforço de transformar a fatalidade em responsabilidade. E citando de novo Innerarity “Uma das coisas da nossa tradição democrática que mais merecem ser protegidas é precisamente a recusa do destino. O futuro depende mais das nossas decisões e compromissos do que pensaram os que elaboraram a ideia moderna de progresso como uma força irresistível à qual poderíamos entregar-nos confiadamente”.

A solução volta a estar nas nossas mãos. E a nossa ação profissional será agora mais decisiva do que nunca. De facto, os nutricionistas não podem “ficar em casa” nestes tempos, sob o risco de se tornarem irrelevantes. Necessitamos das pessoas da ciência e também do contributo das ciências da nutrição para que seja a conhecimento partilhado e o civismo comunitário a vencer esta “guerra” e não os regimes autoritários e as suas medidas securitárias que promovem o definhamento de direitos e liberdades das populações.

Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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