A presença de Nutricionistas nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) pode representar ganhos significativos em saúde, mas a organização deste modelo de prestação de cuidados, a integração dos nutricionistas nas suas diferentes unidades funcionais e o número reduzido de Nutricionistas a exercer estas funções, são fatores que podem comprometer este pressuposto. Neste artigo destacamos os obstáculos, os desafios e as oportunidades para uma intervenção mais eficiente dos Nutricionistas nesta área, que consideramos central.
Nestas últimas décadas, muitas coisas mudaram na sociedade portuguesa, em particular a forma como vemos o papel da alimentação na nossa saúde. Hoje podemos quantificar o papel determinante da alimentação inadequada na perda de anos com saúde dos portugueses, os alimentos a consumir para atingirmos um padrão alimentar de acordo com as recomendações da Roda dos Alimentos e, inclusive, definimos uma estratégia alimentar nacional a médio e longo prazo que nos distingue a nível europeu. Para além disto, Portugal, possui uma longa tradição de formação superior de nutricionistas com elevada qualidade que pode fazer a diferença face a outros países europeus, que começaram este percurso mais tarde e de forma mais rudimentar.
Atualmente, a maior parte das patologias com impactos severos no Orçamento do Estado (OE) e nas contas públicas, têm uma base alimentar. Entre elas, podemos incluir a obesidade, a diabetes, a doença cardio e cerebrovascular, onde a hipertensão é determinante central, a doença oncológica, onde diversos cancros se relacionam com o peso corporal excessivo e défice de ingestão de produtos de origem vegetal, as doenças osteoarticulares e, ainda, os estados de malnutrição que causam milhares de dias de internamento adicional nos nossos serviços de saúde, em particular entre a população mais idosa. Apesar destas condições sugerirem a necessidade de uma intervenção intensa dos nutricionistas no sistema de saúde, onde a modificação dos hábitos alimentares pode ser promovida e efetivamente acontecer, esta é ainda incipiente e, principalmente, pouco eficaz, fruto de uma deficiente organização dos serviços de saúde e incapacidade destes profissionais em demonstrarem a sua mais valia, em particular nos CSP onde podiam fazer toda a diferença, tendo em conta o atual perfil de doença crónica existente entre nós.
É consensual que a existência de uma boa resposta ao nível dos CSP é condição sine qua non para sistemas de saúde mais custo-efetivos, que contribuam para uma maior equidade no acesso e que sejam orientados para proporcionar mais ganhos em saúde (Biscaia et al, 2008). Curiosamente, ou não, o aparecimento dos CSP em Portugal, foi impulsionado por Francisco Gonçalves Ferreira, juntamente com Arnaldo Sampaio e Baltazar Rebelo de Sousa, em 1971, ainda antes da constituição do Serviço Nacional de Saúde, que acontecerá em Portugal em 1979. Recordamos, que a Gonçalves Ferreira, devemos também todo um pensamento completamente inovador, à época, de como devemos implementar medidas de saúde pública para melhorar a alimentação dos portugueses e que aqui já apresentámos anteriormente.
Como estão atualmente organizados os Cuidados de Saúde Primários em Portugal?
Para se compreender a atual situação dos nutricionistas no Sistema Nacional de Saúde (SNS), em particular nos CSP, vale a pena conhecer o atual modelo de organização deste nível de prestação de cuidados, que se descreve de seguida.
Depois da Reforma de 2005 dos Cuidados de Saúde Primários, a prestação deste nível de cuidados em Portugal encontra-se organizada em Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES), que apresentam diferentes estruturas funcionais: as Unidades de Saúde Familiar (USF), as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), as Unidades de Saúde Pública (USP), as Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC) e as Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados (URAP).
Os Agrupamentos de Centros de Saúde são unidades de gestão, compostas por um ou mais centros de saúde, integradas nas Administrações Regionais de Saúde I.P. ou em Unidades Locais de Saúde, E.P.E. e são “responsáveis pela organização e integração dos vários níveis de prestação de cuidados de saúde primários, bem como de coordenação e ligação aos diversos parceiros comunitários.
A criação das Unidades de Saúde Familiares foi a mais importante conquista da Reforma de 2005 dos Cuidados de Saúde Primários. As USF implementadas em 2006, têm por “missão a prestação de cuidados de saúde personalizados à população inscrita de uma determinada área geográfica, garantindo a acessibilidade, a continuidade e a globalidade dos cuidados prestados…” e são estruturas constituídas por uma equipa multiprofissional. (modelo A, B e C).
As Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados são também unidades de cuidados de saúde personalizados, compostas por médicos, enfermeiros e administrativos não integrados em USF (Artigo 10º do Decreto-Lei n.º 28/2008).
As Unidades de Cuidados na Comunidade, prestam cuidados de saúde e apoio psicológico e social de âmbito domiciliário e comunitário, em particular às pessoas e grupos mais vulneráveis, em situação de maior risco ou dependência física e funcional ou doença que requeira acompanhamento próximo, e atuam ainda na educação para a saúde, na integração em redes de apoio à família e na implementação de unidades móveis de intervenção. A equipa da UCC pode ser composta por enfermeiros, assistentes sociais, médicos, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, terapeutas da fala e outros profissionais (Artigo 11º do Decreto-Lei n.º 28/2008).
As Unidades de Saúde Pública funcionam como o observatório de saúde da área geodemográfica do ACES, competindo-lhes elaborar informação e planos em domínios da saúde pública, proceder à vigilância epidemiológica, gerir programas de intervenção no âmbito da prevenção, promoção e proteção da saúde da população ou de grupos específicos e colaborar, de acordo com a legislação respetiva, no exercício das funções de autoridade de saúde (Artigo 12º do Decreto-Lei n.º 28/2008). As USP são compostas por médicos de saúde pública, enfermeiros de saúde pública ou de saúde comunitária e técnicos de saúde ambiental, integrando ainda, em permanência ou em colaboração temporária, outros profissionais que forem considerados necessários na área da saúde pública.
As Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados são unidades que prestam serviços de consultoria e assistenciais a todas as outras unidades funcionais dos ACES e organizam as ligações funcionais aos serviços hospitalares. São compostas por diferentes profissionais, que integram, por exemplo, assistentes sociais e psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, técnicos de saúde oral, nutricionistas, entre outros (Artigo 13º do Decreto-Lei n.º 28/2008).
Como é encarada atualmente a área da alimentação e nutrição no âmbito dos cuidados de saúde primários?
O documento “Cuidados de Saúde Primários em 2011-2016: reforçar, expandir”, foi publicado no ano de 2010 e elenca um conjunto de medidas que devem ser implementadas para dar continuidade à reforma necessária para reforçar os CSP. Neste documento, são identificadas algumas áreas específicas de intervenção que se consideram estar subvalorizadas e que justificam uma intervenção diferenciada por parte dos CSP. Os “comportamentos alimentares” é uma das 5 áreas de intervenção específica identificada neste documento como uma área de intervenção subvalorizada e onde há necessidade de mudança. Também é reconhecido no documento que “os CSP são o local ideal para incentivar alterações comportamentais e para providenciar conselhos sobre nutrição não só aos indivíduos com excesso de peso como, principalmente, aos responsáveis pela alimentação de crianças e jovens. Aliás, há estudos que indicam que os utentes encaram os prestadores de CSP como uma fonte importante de aconselhamento quer sobre estilos de vida quer sobre aspetos relacionais com a sua alimentação”. Este documento referia que até 2016, todas as URAP deveriam ter pelo menos um nutricionista, devendo também ser incluídos no Plano de Desempenho dos Agrupamentos de Centros de Saúde indicadores que permitam avaliar a prestação de cuidados.
Mais tarde, em 2016, através do Despacho n.º 200/2016, de 7 de janeiro, o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde reconheceu a importância de se aumentar a capacidade de intervenção dos CSP na área da nutrição: “reforço das capacidades de intervenção dos CSP através do aumento de recursos próprios e apoio complementar, seja na prestação direta de cuidados seja em atividades de consultoria, em áreas como a psicologia, nutrição, saúde oral, a oftalmologia, a obstetrícia, a pediatria, a fisioterapia e a medicina física e de reabilitação”.
Posteriormente, já em 2018, outro documento oficial reforçou um novo modelo de organização e funcionamento na área, através da criação de Núcleos/Unidades/Serviços de Nutrição (Despacho n.º 6556/2018, de 4 de julho) um dos aspetos considerados importantes para a melhoria e aumento da capacidade resolutiva dos CSP na área da nutrição, descrito no “Relatório Final Dezembro 2015-Outubro 2019” da Coordenação Nacional para a Reforma do Serviço Nacional de Saúde para a Área dos Cuidados de Saúde Primários.
Em que estruturas dos Cuidados de Saúde Primários estão integrados os nutricionistas?
A história dos nutricionistas no Serviço Nacional de Saúde começa na década de 90 com a integração dos licenciados em Ciências da Nutrição formados na FCNAUP, na Carreira dos Técnicos Superiores de Saúde, no ramo de Nutrição. Em 1991, com a publicação do Decreto-Lei nº 414/91 de 22 de outubro, fica definido o perfil profissional e o conteúdo funcional de cada uma das categorias. A Administração Regional de Saúde do Norte foi a identidade pública que, desde sempre, mais nutricionistas acolheu e onde tem sido maior, mais diversificada e mais produtiva a sua intervenção em prol da saúde dos utentes do Serviço Nacional de Saúde.
A sólida formação científica, humanista, baseada na evidência e prosseguindo o interesse público em cada uma das suas intervenções conduziu os nutricionistas dos CSP a intervenções muito diversas – a consulta em ambulatório, a intervenção na saúde escolar, a intervenção comunitária juntos das populações mais frágeis, nomeadamente nos programas de apoio alimentar, na capacitação para práticas alimentares mais equilibradas e económicas junto de idosos, grávidas, famílias de baixos recursos económicos (onde a insegurança alimentar está presente), a investigação epidemiológica no âmbito da saúde pública, a intervenção clínica junto das equipas de cuidados continuados integrados – tentando-se rentabilizar todo o tempo de trabalho semanal.
Podemos discutir da efetividade destas múltiplas intervenções em situações tão diversas. Entre os extremos de tentar servir todos os cenários enunciados, umas quantas horas por semana, ou apenas trabalhar, a tempo inteiro, numa só área, existem múltiplas soluções para criar uma abordagem que melhor sirva os interesses da organização. Contudo, estas soluções estão dispersas pelo terreno, não são homogéneas ou então resultam de um planeamento local para dar resposta a problemas ou formatos de organização local, o que torna difícil verificar a real eficácia do trabalho dos nutricionistas no seu todo, retirando-lhes capacidade reivindicativa e voz a nível nacional.
Mas, o que impede o SNS de ter uma intervenção mais efetiva sobre a melhoria dos padrões alimentares dos Portugueses?
Uma das primeiras barreiras é o número insuficiente de nutricionistas nos CSP.
A análise dos dados oficiais do Ministério da Saúde mostra que existiam, à data, a trabalhar nos CSP apenas 97 nutricionistas, nas diferentes Administrações Regionais de Saúde, de norte a sul do país. E muitos não integrados nas URAP como a lei recomenda. Alguns profissionais estão espalhados por UCC (12), UCSP (4) e USP (2), o que revela as diversas incertezas sobre o posicionamento do nutricionista na atual configuração dos CSP. Outra questão, não menos importante, é o facto de 30 destes nutricionistas estarem integrados noutras carreiras que não na Carreira dos Técnicos Superiores de Saúde (TSS), gerando desigualdades de remuneração e de progressão laboral. Outros 60 não integram um concurso de progressão na carreira desde, seguramente 2007, o que representa um longo período de estagnação, desvalorização salarial, perda efetiva de poder de compra e desmotivação associada a sucessivas avaliações de desempenho (SIADAP) sem consequências na carreira.
O número insuficiente de nutricionistas nos CSP resulta de uma falta de visão estratégica nas últimas décadas, que seja capaz de direcionar o SNS para uma mentalidade de prevenção e de constituir verdadeiras equipas multidisciplinares nesta área. Nesta discussão, poderemos também incluir a incapacidade dos próprios nutricionistas dos CSP, das associações profissionais, como a Ordem dos Nutricionistas e da própria universidade e instituições de investigação, em mostrarem regularmente o impacto das suas intervenções e a capacidade de fazerem mais e melhor do que outros profissionais de saúde na mesma área. Para esta incapacidade (de se avaliar o que se faz) contribui ainda o não funcionamento em plenitude de um sistema de informação que permita fazer uso dos dados recolhidos nas intervenções dos nutricionistas, embora exista muito recentemente um progresso enorme nesta área face ao passado e esta situação possa ser mudada em breve. Por outro lado, ao nível da gestão dos ACES é necessário substituir, cada vez mais, a simples avaliação de processos, por uma cultura de avaliação de impacto, olhando para os resultados operados no utente. A dialética da eficácia versus eficiência derrapa sempre para uma visão reducionista do trabalho do nutricionista para as questões de acesso à consulta, reportando a realização de atos em vez de resultados.
A segunda barreira é o modelo de organização dos cuidados de saúde primários.
A necessidade de assegurar a presença de nutricionistas nas USF
A segunda barreira é o modelo de organização dos CSP, nomeadamente das USF que são consideradas essencialmente como unidades de prestação de cuidados médicos e de enfermagem. Estas unidades funcionais podem seguramente assumir um papel relevante na promoção e proteção da saúde, de forma a rentabilizar os recursos financeiros que o Estado nelas tem investido. Neste contexto, a integração da prestação de cuidados na área da nutrição deveria ser algo a considerar. A centralidade da prestação de cuidados no utente, só é possível de facto, quando as USF assumirem valências técnicas, como a avaliação nutricional e o aconselhamento alimentar, para realizarem a gestão da saúde, ao longo do ciclo de vida, e em contexto da família, de forma articulada pela equipa multiprofissional de saúde. A implementação efetiva dos Planos Assistenciais Integrados exige que a atual configuração dos CSP transcenda a dimensão “acesso” e a complemente com o respeito pelas necessidades, valores e preferências dos utentes, garanta uma continuidade de cuidados e uma transição facilitada entre diferentes unidades de saúde, que realize os cuidados em articulação com a família e outros cuidadores informais, e que se baseie num esforço coordenado que desenhe e implemente um plano personalizado de cuidados para cada utente, sempre numa lógica de proximidade, no limite realizada na própria casa do utente.
O posicionamento dos nutricionistas nas diferentes unidades funcionais dos CSP deve merecer uma discussão profunda. Esta discussão deverá considerar a necessidade de assegurar a presença de nutricionistas nas USF. A integração dos nutricionistas nas USF permitiria elevar o nível de cuidados em todas as dimensões enunciadas, em todo o ciclo de vida, nas intervenções na área da saúde materno-infantil, na prevenção da obesidade infantil, na prevenção do ganho excessivo de peso gestacional, na saúde do adulto, na intervenção preventiva sobre as doenças crónicas não transmissíveis, nos idosos na prevenção da degradação funcional, conducente a estados de fragilidade, na capacitação de cuidadores para o apoio alimentar e suporte nutricional de utentes com limitações na sua ingestão alimentar, para citar apenas as mais frequentes.
A definição pouco clara do papel e modelo de articulação das URAP
Atualmente, os nutricionistas encontram-se na sua maioria integrados nas URAP, tal como previa o já referido documento “Cuidados de Saúde Primários em 2011-2016: reforçar, expandir”. Inicialmente, a proposta para a integração de nutricionistas em todas as URAP parecia lógica, contudo, já lá vão 11 anos desde a criação dos ACES, e estas unidades, por mais voltas que se dê, continuam a não conseguir ver o seu propósito bem definido e sem a sua articulação nos ACES clarificada, tal como é patente no Relatório Final da Coordenação da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários: “…Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados – Organização, em 2017, de um Grupo de Trabalho multiprofissional das URAP que elaborou uma proposta para a implementação da Contratualização para as estas UF, com base na revisitação e consensualização da sua carteira básica de serviços.”; “… Num processo demasiado prolongado no tempo, foram analisados e agregados todos os contributos, tendo em fevereiro de 2019, com uma equipa multiprofissional mais restrita, sido elaborada proposta de um conjunto de indicadores passíveis de contratualização consoante os recursos disponíveis em cada URAP.” Resulta claro da leitura dos parágrafos anteriores que, no que diz respeito à URAP, passam os anos e não se consegue fazer com que estas unidades sejam realmente funcionais e contribuam para uma prestação efetiva de cuidados nutricionais à maioria dos utentes do SNS.
A necessidade de integração dos Nutricionista nas UCC
Para além da necessária integração dos nutricionistas nas USF consideramos que a intervenção nutricional deveria estar presente no trabalho diário das UCC, de forma a desenvolver e operacionalizar as estratégias locais e regionais de programa nacionais na Alimentação Saudável, em articulação com as escolas e autarquias, integradas no programa de Saúde Escolar, tal como se pode ler no programa do XXII Governo Constitucional recentemente empossado: “Responsabilizar os agrupamentos de centros de saúde pela articulação com as escolas na promoção da alimentação saudável e da atividade física, na prevenção do consumo de substâncias e de comportamentos de risco, na educação para a saúde e o bem-estar mental, capacitando as crianças e jovens para fazerem escolhas informadas e gerirem a sua saúde, com qualidade “. Ocupando este lugar, os nutricionistas teriam espaço para dar resposta à intervenção em contexto comunitário.
Ainda no seio das UCC, há um trabalho muito importante a realizar com as Equipas de Cuidados Continuados Integrados, na avaliação do estado nutricional e definição de medidas de suporte nutricional dos utentes da Rede Nacional de Cuidados Continuados. A intervenção nutricional de qualidade é necessária nas ECCI. Em complementaridade há que apoiar as famílias dos utentes permitindo-lhes aceder a produtos de nutrição artificial, com comparticipação do Estado, que reduza as desigualdades no acesso a alternativas alimentares terapêuticas que têm um papel importante no combate à desnutrição, fragilidade e disfagia, só para nomear algumas das situações mais frequentes. Mas, como isso ainda não é uma realidade frequente em Portugal, tanto mais importante se torna a presença de um nutricionista para trabalhar com o cuidador na implementação de alterações à dieta do paciente.
O seu contributo é ainda válido nas novas Equipas de Cuidados Paliativos, no apoio aos cuidadores de pessoas em fim de vida. Afinal, comer é um ato de dignificação do ser humano e está presente até aos momentos finais da vida.
A importância do Nutricionista nas USP
O Decreto Lei nº 28/ 2008 de 22 de fevereiro, que regula a criação e organização dos CSP em Agrupamentos de Centros de Saúde, define as competências das Unidades de Saúde Pública: “À USP compete, na área geo demográfica do ACES em que se integra, designadamente, elaborar informação e planos em domínios da saúde pública, proceder à vigilância epidemiológica, gerir programas de intervenção no âmbito da prevenção, promoção e proteção da saúde da população em geral ou de grupos específicos.” Resulta desta regulamentação a necessidade da utilização das competências dos nutricionistas para atingir estes objetivos. A produção de conhecimento nesta área não é um exclusivo da academia, tem que ser cada vez mais articulado com a academia e avaliado no contexto da atividade profissional. As intervenções em saúde deveriam utilizar mecanismos de avaliação bem definidos e a funcionarem em permanência, pois a governação clínica de qualidade assim o exige. Sendo que muitas das intervenções nesta área estão relacionados com a alimentação e suas consequências, a presença dos nutricionistas nas USP a tempo inteiro seria da maior importância para a qualidade da intervenção.
A intervenção em saúde pública deveria permitir o desenvolvimento de investigação sobre fenómenos específicos sobre a obesidade infantil e os determinantes alimentares, sociais e económicos na comunidade envolvente ou, de âmbito mais lato, por exemplo sobre o espaço e redes de produção, distribuição e ajuda alimentar na área geográfica de intervenção das USP. Ou ainda realizar investigação de carácter epidemiológico que ajude os ACES a identificar precocemente e a desenvolver intervenções comunitárias que melhorem o padrão alimentar de pacientes idosos e articulem os recursos disponíveis, nomeadamente com as autarquias. Desta forma o nutricionista poderia contribuir de forma efetiva para a definição, implementação e avaliação dos Planos Locais de Saúde.
No contexto da saúde pública, um nutricionista é muito mais do que um profissional que se convida para dinamizar palestras e workshops de educação alimentar. Precisamos que este possa contribuir para a definição das estratégias alimentares para as escolas na sua área de influência, que seja auscultado no momento da definição da oferta alimentar e na abordagem educativa na área da alimentação em articulação com as Equipas de Saúde Escolar e com os Coordenadores do Programa de Educação para a Saúde de cada Agrupamento Escolar.
De salientar que a tomada de decisão sobre a oferta alimentar nas escolas (nomeadamente o que comprar) e como vigiar a qualidade da oferta alimentar fornecida, é hoje competência das autarquias e dos nutricionistas que nelas trabalham, pelo que este trabalho de articulação será fundamental. A atual descentralização de competências para as autarquias na área da educação e área da saúde, pode ser uma oportunidade para alinhar a intervenção das autarquias no desenvolvimento e implementação dos Planos Locais de Saúde dos respetivos Agrupamentos de Centros de Saúde, promovendo uma colaboração estreita para a monitorização do estado de saúde da população, com a recolha sistemática de informação sobre os determinantes de saúde.
Reflexões finais para uma melhor qualidade da prestação de serviços nutricionais
Utilização de incentivos para reforçar o papel dos cuidados de saúde primários nas áreas da prevenção primária, secundária e terciária
O financiamento é uma questão que merece uma reflexão aprofundada. As USF deveriam contratualizar com o ACES e receber incentivos financeiros para a concretização de intervenções de prevenção primária, secundária e terciária, com uma avaliação objetiva dos resultados em saúde. Aliás é interessante ler a Auditoria de Seguimento de Recomendações Formuladas no Relatório de Auditoria ao Desempenho de Unidades Funcionais de Cuidados de Saúde Primários do Tribunal de Contas: “Decorridos 10 anos desde a implementação da reforma dos Cuidados de Saúde Primários despoletada pelo XVII Governo, com a criação das primeiras Unidades de Saúde Familiar (USF), ainda não foi realizada pelo Ministério da Saúde nenhuma avaliação ex post cujos resultados revelassem os ganhos de economia, eficiência e eficácia associados a cada tipo de unidade funcional, nem os ganhos em saúde das populações.” Em sentido oposto, algumas avaliações de impacto da intervenção dos nutricionistas nos CSP, como, por exemplo, um estudo com doentes com diabetes mellitus tipo 2, revela que cada consulta com um nutricionista nos CSP, estava associada a uma diminuição de 4,7 internamentos hospitalares por cada 100 pessoas-anos.
Contudo, há que reconhecer que em Portugal existe ainda uma enorme carência de estudos de avaliação de custo-efectividade da atividade dos nutricionistas nos CSP e que muito deste trabalho já deveria ter sido feito. Em particular, estudos que pudessem valorizar modelos de prestação de cuidados nutricionais baseados em resultados alcançados, tendo por base o conceito de “Value-based healthcare”, ou seja modelos de prestação de cuidados, nos quais os prestadores, incluindo as unidades e profissionais de saúde, são pagos tendo por base os resultados alcançados em saúde do indivíduo. Nestes modelos, os profissionais são recompensados diferencialmente por ajudar os pacientes a melhorar sua saúde, reduzir os efeitos e a incidência de doenças crónicas e a adotar estilos de vida mais saudáveis, baseados na mais recente evidência científica. Ainda assim, há capacidade técnica e profissional para realizar este tipo de avaliação, ficando a faltar a participação dos próprios profissionais que estão no terreno, enredados no seu intenso dia-a-dia, e o interesse das associações profissionais e da academia para dar início a este processo.
Conclusão
A Comissão Europeia publicou a 28/11/2019 os relatórios que retratam o perfil dos sistemas de saúde em 30 países. A transição para a prevenção e a prestação de cuidados primários é a tendência mais importante por todos os países. No nosso entendimento, este é o tipo de posicionamento que poderá contribuir para direcionar o SNS para a prevenção efetiva na área da alimentação e nutrição e para que possam existir cuidados nutricionais de maior qualidade no nosso sistema de saúde. Sistema que utiliza a maior parte do seu orçamento a tratar doenças crónicas de base alimentar.
E para que Portugal se possa afirmar como um país que está a adequar a força de trabalho qualificado já existente na área da nutrição (formada maioritariamente em universidades públicas e com interesse em trabalhar e servir no SNS) para enfrentar os desafios futuros e para tornar o nosso SNS cada vez eficiente e capaz de desempenhar a sua missão.
Desta análise é possível identificar a necessidade de uma reflexão profunda sobre o modelo de integração da intervenção nutricional e alimentar nos CSP. Apesar dos mais recentes documentos sobre a reforma dos CSP reconhecerem timidamente a importância de aumentar a capacidade destes serviços na área da prestação de cuidados nutricionais, os passos que têm sido dados para a sua concretização são ainda muito incipientes.
A abordagem aqui defendida defende uma visão clara e distinta para a intervenção dos nutricionistas nos CSP e implica uma estratégia ambiciosa e disruptiva para o modelo de organização dos mesmos. A integração dos nutricionistas nas diferentes unidades funcionais do SNS terá de ser feita com a ambição de modernizar e capacitar tecnicamente as equipas multiprofissionais, de avaliar a eficiência das intervenções nutricionais a nível individual e populacional por parte dos nutricionistas face a outros profissionais de saúde e, ter a coragem de quebrar o espartilho da visão excessivamente biomédica dos cuidados de saúde, contrariando as forças de bloqueio decorrentes do corporativismo e do receio da partilha de saberes e competências na área da saúde.
Miguel Ângelo Rego e Pedro Graça