Políticas alimentares ou Políticas nutricionais?

Políticas alimentares ou Políticas nutricionais? Será necessário distinguir estes conceitos?

Refletimos neste texto sobre o conceito de política nutricional e política alimentar. Estaremos a utilizar de forma imprecisa os termos “políticas nutricionais” e “políticas alimentares”? A sua utilização de forma indiscriminada e como sinónimos é cada vez mais frequente.

Nunca se falou tanto de políticas de alimentação e nutrição como hoje. Podemos mesmo dizer que vivemos um período histórico nesta área. Mas este momento histórico, em particular o reconhecimento político da necessidade de implementar estratégias nesta área, não é o resultado do acaso. Reflete a necessidade de intervir com urgência num problema de difícil resolução (a alimentação inadequada da maioria da população) e, por outro lado, o acumular de evidência que sugere a possibilidade de modificar comportamentos populacionais a partir de modificações ambientais, quer sejam medidas legislativas ou medidas no âmbito da educação. Reflete também o impacto económico da alimentação inadequada e a insustentabilidade dos sistemas públicos de saúde se os padrões de consumo alimentar se mantiverem como estão agora.

Esta perceção da necessidade de pensar o conceito de intervenção política na área do consumo alimentar tem sofrido um processo evolutivo ao longo do tempo. A base de pensamento para a definição do conceito política de alimentação e nutrição que aqui apresentamos e refletimos tem como referência as definições de dois autores que marcaram conceptualmente a história das políticas de alimentação e nutrição a nível europeu e nacional. Para o contexto europeu, referimo-nos a Elisabeth Helsing e a nível a nacional Gonçalves Ferreira, o pai das políticas de alimentação e nutrição e que esteve na génese da FCNAUP nos anos 70.

Em 1978, Gonçalves Ferreira, definia política de alimentação e nutrição como “conjunto de medidas que têm em vista pôr à disposição da população os alimentos de diversos tipos de que esta necessita e assegurar o seu consumo regular pelos indivíduos, procurando instituir ou manter hábitos corretos de alimentação racional ao longo da vida” e Elisabeth Helsing, em 1997, como um “conjunto concertado de ações destinadas a melhorar o estado nutricional das populações”.

As primeiras estratégias nesta área, muitas delas surgidas na europa após a II Grande Guerra Mundial, na década de 40 do século passado, tinham como objetivo central garantir um fornecimento suficiente de alimentos para toda a população e foram por isso designadas por muitos autores como “políticas alimentares”. Eram políticas de base agrícola com a intenção de aumentar a produção de bens alimentares considerados essenciais e de valor acrescentado para a cadeia produtiva como por exemplo o leite ou a carne. Elizabeth Helsing, com a tónica da valorização da “nutrição” e da saúde, propôs uma nova designação para estas primeiras políticas de alimentação e nutrição, às quais chamou “políticas nutricionais quantitativas”.

Nas décadas de 60 e 70 – Um novo paradigma nas políticas nutricionais

Só mais tarde, nas décadas de 60 e 70 do século passado, em resultado do aumento da prevalência das doenças crónicas e da investigação na área das ciências da nutrição, que começou a priorizar uma possível associação entre um consumo alimentar inadequado e o risco de desenvolvimento destas doenças, surge o conceito de “políticas nutricionais” ou de “políticas nutricionais qualitativas”, assim denominadas por Elizabeth Helsing. Mas é sobretudo na Conferência Mundial de Alimentação, em 1974, que as políticas nutricionais, com objetivos específicos de saúde, ganharam expressão, através das propostas apresentadas pelos conferencistas nórdicos.

Durante este período (década de 60 e até meados da década de 70 do Séc. XX) parecia existir uma diferenciação marcada entre as “políticas nutricionais quantitativas” ou “políticas alimentares” e as “políticas nutricionais qualitativas” ou “políticas nutricionais”, começando a ser notórias as divergências entre os objetivos das políticas agrícolas e as recomendações nutricionais que, entretanto, ganhavam forma. Se por um lado, as “políticas nutricionais quantitativas” visavam dar resposta às necessidades dos países mais pobres e em desenvolvimento na tentativa de garantir uma suficiente disponibilidade alimentar, as “políticas nutricionais qualitativas” começavam a ser discutidas no seio dos países mais desenvolvidos com o objetivo de melhorar o estado nutricional e de saúde das populações, tentando moderar ou até reduzir a ingestão de alguns nutrientes.

Para além deste debate, que ainda hoje perdura, iniciamos em 1997, em Portugal e no então ISCNAUP, o ensino daquilo a que chamamos ainda hoje “Política Nutricional” como corpo autónomo de ensino. Ou seja, uma área curricular própria que, entretanto, foi crescendo e mais tarde alargada a todas as instituições de ensino superior que lecionam Ciências da Nutrição em Portugal e que nos diferencia, inclusive de outros países europeus. Fruto desta discussão, em 2013, elaboramos um documento de consenso sobre aspetos pedagógicos e éticos da formação na área da “política nutricional”. Desta forma, integramos na discussão das políticas públicas na área da saúde a visão do nutricionista e o seu conhecimento da relação entre os nutrientes e a saúde humana.

2012 – Marco histórico para as políticas de alimentação e nutrição em Portugal

Contudo, em Portugal, após as primeiras propostas de Gonçalves Ferreira na década de 70, só em 2012, num artigo intitulado “Evolução da política alimentar e de nutrição em Portugal e suas relações com o contexto internacional” voltamos a discutir aprofundadamente esta questão em Portugal como tema central da política pública. Utilizamos neste artigo o termo “política alimentar e de nutrição”, o qual definimos como “um conjunto concertado e transversal de ações destinadas a garantir e incentivar a disponibilidade e o acesso a determinado tipo de alimentos tendo como objetivo a melhoria do estado nutricional e a promoção da saúde da população”. A junção do termo alimentar e nutricional na definição de uma política, que aqui apresentamos, relaciona-se com o resultado que a intervenção sobre a componente alimentar (tendo por base o conhecimento nutricional) pode ter na modelação da ingestão e do perfil nutricional das pessoas à qual se destina. Desta forma integra-se também o sector agroalimentar que se deverá alinhar com as questões da nutrição e saúde na busca de soluções alimentares mais sustentáveis e saudáveis.

A nível internacional a terminologia utilizada nos diversos documentos estratégicos segue também este modelo, em particular os países que apresentam uma longa tradição de intervenção nesta área. A Noruega utiliza a designação “Norwegian Nutrition and Food Policy”, destacando a importância de uma abordagem integrada para um problema de saúde pública. Também o Brasil segue este modelo, com a sua “Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN)”. Por último, a junção do termo alimentar e nutricional também se verifica nos documentos estratégicos da OMS, sendo o mais recente plano da OMS Região Europa designado por “European Food and Nutrition Action Plan 2015-2020”.

Também em 2012, na construção do Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) e na sua definição programática como a primeira estratégia nacional na área da política alimentar e nutricional, fomos um pouco mais longe ao identificar que “uma política de alimentação e nutrição com a consequente melhoria do estado nutricional dos cidadãos tem um impacto direto na prevenção e controlo das doenças mais prevalentes (cardiovasculares, oncológicas, diabetes, obesidade…) mas também deve permitir, simultaneamente, o crescimento sustentável e a competitividade económica do país em outros sectores como os ligados à agricultura, ambiente, turismo, emprego ou qualificação profissional”. Ou seja, a visão da nutrição na formulação de uma estratégia para modelar o consumo alimentar de uma população necessita de um forte conhecimento nutricional, que é claramente matricial, e da integração de várias áreas do conhecimento desde a produção agrícola até ao ambiente e economia.

Assim e de forma resumida, poderemos dizer que os conceitos de “política nutricional” e de “política alimentar” não são intersubstituíveis pois representam campos próprios e ideologicamente até diferenciados, de certa forma. São campos que podem e devem ser integrados aquando da definição de estratégias políticas nesta área, representando objetivos finais mais tangíveis (alimentares) e menos tangíveis (nutricionais) e visando uma abordagem de intervenção integrada para a resolução de um problema complexo.

Por outro lado, o conceito de “Política Nutricional” como área de formação curricular dos Nutricionistas deverá continuar a permitir a estes profissionais conhecer e apoiar tecnicamente a tomada de decisão política e de medidas públicas de intervenção de base populacional na área da nutrição baseado na melhor evidência científica.

Conflito de interesses

Pedro Graça foi coordenador da Plataforma Contra a Obesidade durante o período de 2009 a 2011 e criou o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável da DGS, o qual dirigiu durante o período de 2012 a 2018.

Maria João Gregório é Diretora do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (2019 até ao presente).

Ambos os autores ensinam Política Nutricional na FCNAUP.

PS – Este texto é também em memória de Elisabet Helsing que faleceu este ano e que foi uma das pessoas que a nível europeu, desde praticamente a Conferência de Roma em 1974, defendeu a necessidade de políticas europeias na área da alimentação e nutrição.

 

 

Escrito por

Maria João Gregório 1
Maria João Gregório
Nutricionista, Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website
prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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