Reflexões sobre uma alimentação vegetariana

O interesse em relação às dietas vegetarianas tem vindo a crescer nos últimos anos, sendo que, em Portugal, estima-se que o número de vegetarianos seja de 1,2% da população.

Os padrões alimentares vegetarianos podem ser bastante diversos devido à disponibilidade alimentar e, aos diferentes fatores que motivam a sua adoção, como questões morais e religiosas, proteção ambiental e da biodiversidade, bem-estar dos animais e questões de saúde. No entanto, têm em comum a utilização predominantemente de produtos de origem vegetal (como cereais, leguminosas, hortícolas, fruta, óleos, frutos oleaginosos e sementes), e a exclusão de carne e pescado, podendo incluir ou não ovos e/ou lacticínios (tabela 1).

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A dieta vegetariana também tem ganho algum destaque recentemente pelos seus efeitos na saúde. De forma generalizada, os vegetarianos tendem a ser mais conscientes relativamente à sua saúde, e apresentam uma menor prevalência de alguns comportamentos de risco (como o consumo excessivo de bebidas alcoólicas e o uso de tabaco, entre outros), assim como um menor Índice de massa corporal, colesterol total, colesterol LDL, triglicerídeos e glicemia mais baixos, quando comparados com populações não vegetarianas. Vários trabalhos evidenciam uma menor incidência de doença cardíaca isquémica e, em menor escala, de cancro em populações vegetarianas, no entanto, este efeito protetor não é significativo na mortalidade por todas as causas e na mortalidade por doenças vasculares.

De forma a maximizar os benefícios associados a um maior consumo de produtos de origem vegetal, e minimizar quaisquer riscos de défices nutricionais associados aos diferentes padrões alimentares, uma alimentação vegetariana deve ser bem planeada, devendo por isso ter em conta a ingestão adequada e a biodisponibilidade de alguns nutrimentos como proteína, ácidos gordos essenciais, ferro, zinco, iodo, cálcio, vitamina D e vitamina B12.

Proteína

No que refere à proteína, as fontes de origem vegetal apresentam, de forma geral, uma menor digestibilidade e conteúdo em aminoácidos essenciais, com quantidades limitantes de um ou dois aminoácidos. Os cereais, por exemplo, apresentam um menor conteúdo em lisina. Um ajuste nas escolhas alimentares favorecendo um maior consumo de leguminosas, e a inclusão de alimentos à base de soja poderá assegurar uma ingestão adequada deste aminoácido. Assim, é apropriado para os vegetarianos um consumo ligeiramente superior à recomendação para a população em geral (tendo presente que as necessidades proteicas individuais variam em função de alguns fatores, entre os quais o estado nutricional, a idade, a composição corporal e o nível de atividade física). Esta ingestão é atendível com recurso a alimentos como as leguminosas, produtos à base de soja (bebida de soja, alternativas de soja ao iogurte, proteína texturizada, tofu e tempeh), frutos oleaginosos, sementes, ovos e lacticínios (num padrão alimentar ovolactovegetariano).

Ácidos gordos essenciais

Os vegetarianos (e todos aqueles que consomem quantidades mínimas de peixes gordos) podem estar em desvantagem no que diz respeito à ingestão de ácidos gordos ómega-3. Dentro destes, podemos obter o ácido alfa-linolénico (ALA), ácido gordo da série n-3, essencial, na alimentação vegetariana, através do consumo de sementes de linhaça moídas, sementes de chia, nozes, e os seus óleos. Este ácido gordo é convertido no organismo humano no ácido eicosapentaenóico (EPA, 20:5 n-3), que por sua vez é convertido no ácido docosahexaenóico (DHA, 22:6 n-3); a conversão endógena de ALA em EPA e DHA é um processo ineficiente, sendo o pescado a principal fonte destes ácidos gordos pré-formados.

Tendo presente a recomendação de uma ingestão diária de ALA de 1,6 g e 1,1 g, para homens e mulheres, respetivamente, no caso dos vegetarianos, é prudente assegurar um consumo ligeiramente superior de ALA. Preferir o azeite como gordura de adição, em detrimento de outras gorduras vegetais ricas em ácidos gordos ómega 6, também potencia um melhor aproveitamento de ALA.

Suplementos de DHA à base de microalgas já estão disponíveis para vegetarianos com necessidades aumentadas, (gravidez e lactação), ou com uma capacidade de conversão reduzida (hipertensão ou diabetes).

A biodisponibilidade (ou seja, a proporção de dado nutriente ingerido que é realmente absorvido e utilizado para funções metabólicas e fisiológicas normais, é menor) de alguns nutrimentos, como o cálcio, ferro e zinco, é inferior num padrão alimentar vegetariano.

Ferro

No caso do ferro, apesar do seu consumo ser semelhante ou, ligeiramente superior, em vegetarianos comparativamente a não vegetarianos, os vegetarianos apresentam menores reservas de ferro, devido à menor biodisponibilidade do ferro presente nos alimentos de origem vegetal (não heme). A quantidade de ferro não heme absorvida, é influenciada por fatores antinutricionais como os fitatos que, quando ligados a minerais, formam complexos insolúveis que diminuem a absorção. Métodos culinários como a demolha, a maltagem, e a fermentação, assim como o processamento térmico, resultam na hidrólise dos fitatos, e aumento da biodisponibilidade. Outros inibidores da absorção incluem os polifenóis presentes no chá, café, cacau e vinho tinto, assim como o cálcio. A vitamina C, abundante num padrão alimentar vegetariano, potencia a absorção de ferro não heme.

Os vegetarianos são aconselhados a aumentar a ingestão de ferro, acima das recomendações, através do consumo de uma variedade de alimentos de origem vegetal naturalmente ricos em ferro, como os cereais integrais, leguminosas, hortícolas de folha de cor verde escura, frutos gordos e sementes, e alimentos fortificados, como os cereais de pequeno-almoço.

Zinco

À semelhança do ferro, o zinco proveniente de alimentos de origem vegetal também apresenta uma menor biodisponibilidade. O principal inibidor da absorção deste oligoelemento, são os fitatos.

Um padrão alimentar vegetariano pode fornecer zinco nas quantidades adequadas através do consumo de leguminosas, soja e derivados, cereais integrais, frutos gordos e sementes. A evidência sugere que uma alimentação vegetariana fornece um conteúdo em zinco similar ou ligeiramente mais baixo do que uma alimentação não vegetariana, e que os níveis séricos de zinco são mais baixos em veganos, mas dentro de parâmetros considerados normais.

Cálcio

A ingestão de cálcio em ovolactovegetarianos parece atingir, ou até mesmo exceder, as recomendações, enquanto a ingestão de cálcio em veganos é variável e, por vezes, insuficiente. No entanto, existe uma variedade de alimentos de origem vegetal que fornecem cálcio, como os hortícolas de folha de cor verde escura como a couve galega, couve portuguesa e brócolos, alimentos fortificados como o tofu (produzido com sulfato de cálcio), bebidas vegetais (1), entre outros.

A biodisponibilidade de cálcio de alimentos de origem vegetal é essencialmente afetada pela presença de oxalatos e fitatos. Alimentos ricos em oxalatos incluem os espinafres, folhas de beterraba e acelgas, onde a absorção de cálcio pode ser tão baixa quanto 5%. Hortaliças com menor conteúdo em oxalatos como a couve-galega, nabiças, couve chinesa e brócolos, apresentam uma absorção de cerca de 50%. Aproximadamente 30% do cálcio proveniente de lácteos e alimentos fortificados é absorvido. Uma dieta vegana pode atingir as atuais recomendações de cálcio. No entanto, é importante uma seleção consciente das fontes alimentares de forma a promover a adequação nutricional deste micronutrimento.

Iodo

O conteúdo em iodo nos alimentos de origem vegetal é variável e dependente da concentração de iodo nos solos. Desta forma, quem segue um padrão alimentar vegano, poderá apresentar um maior risco de défice de iodo.

As principais fontes de iodo na dieta vegetariana são os lacticínios (no caso dos ovolactovegetarianos), as algas e, também, o sal iodado, quando utilizado em substituição do sal comum (não ultrapassando as quantidades de sal recomendadas de no máximo 5g/dia). Importa ressalvar que o conteúdo de iodo das algas é variável, sendo que algumas espécies podem fornecer quantidades consideráveis deste oligoelemento, levando potencialmente à toxicidade caso o seu consumo seja regular e generoso. Assim, é recomendado que o consumo de algas não seja superior a 3 a 4 vezes por semana.

Vitamina B12

A vitamina B12 é quase exclusivamente encontrada em produtos de origem animal, sendo que os vegetarianos e veganos devem ingerir alimentos fortificados e/ou suplementos para assegurar a sua adequação nutricional. O padrão alimentar ovolactovegetariano pode fornecer esta vitamina através dos ovos e lacticínios, no entanto, a ingestão destes alimentos poderá ser insuficiente.

Alimentos fortificados em vitamina B12 incluem bebidas vegetais, levedura nutricional, alternativas vegetarianas à carne e cereais de pequeno-almoço. No entanto, dependendo da oferta alimentar, estes alimentos podem apresentar pouco interesse nutricional, para além de poderem ser insuficientes no suprimento da ingestão diária recomendada de 2,4 µg para adultos. Assim, a suplementação poderá ser uma opção, sendo que alguns referenciais recomendam a toma de um suplemento de 25 a 100 µg de vitamina B12 diariamente, ou, 1000 µg 2 a 3 vezes por semana, ou, 2000 µg uma vez por semana.

Os estudos que avaliaram os níveis de vitamina B12 em vegetarianos e veganos verificaram níveis mais baixos relativamente aos não vegetarianos. Alguns sintomas neurológicos do défice de vitamina B12 incluem parestesias, diminuição da sensibilidade periférica, perda de memória, demência, entre outros sintomas, que podem ser irreversíveis. Danos neurológicos subtis também poderão ocorrer, mesmo na ausência da anemia, devido a uma maior ingestão de folatos, que poderá dificultar uma deteção precoce do défice de vitamina B12.

Conclusão

Sumariando, um correto planeamento implica, de forma sumária: incluir uma variedade de alimentos, como cereais, leguminosas, frutos oleaginosos e sementes, fruta e hortícolas (aproveitando a grande variedade de produtos de origem vegetal que define marcadamente a nossa tradição alimentar); selecionar as gorduras vegetais, ingerindo ácidos gordos ómega-3 de fontes de origem vegetal como as sementes de linhaça, e as nozes; e, por fim, incluir boas fontes de proteína, cálcio, ferro e zinco, e assegurar níveis adequados tanto de vitamina B12 e D (através da ingestão de alimentos fortificados e/ou suplementos).

Em Portugal, a Lei n.º 11/2017 tornou obrigatórias as opções vegetarianas em todas as cantinas públicas (prisões, hospitais, escolas e centros de atendimento a idosos). Em junho de 2017, a lei começou a ser implementada, dando seis meses para as cantinas públicas estarem totalmente preparadas para servir opções vegetarianas. Como verificado neste artigo, uma dieta vegetariana não se resume somente à eliminação da carne ou pescado no prato. É essencial um planeamento cuidado, aliado a conhecimento prático da preparação de uma variedade de alimentos de origem vegetal, de forma a otimizar o seu aproveitamento nutricional.

Independentemente de sermos ou não vegetarianos, é uma certeza que para podermos continuar a viver no nosso planeta, temos o dever de o proteger. Uma das medidas que está ao alcance de cada um de nós, é sem qualquer dúvida, a diminuição drástica do consumo de alimentos de origem animal e a procura por alimentos produzidos de forma responsável, sazonalmente e perto de nós.

(1) Para além da bebida de soja, atualmente verificamos uma maior oferta de bebidas vegetais, feitas de arroz, amêndoas, avelãs, sementes de cânhamo, coco, aveia… Alguns destes produtos são fortificados em cálcio e vitaminas D e B12, mas apresentam um conteúdo consideravelmente baixo de proteína. A menos que estes produtos sejam fortificados, a sua contribuição é mínima para a adequação nutricional destes nutrimentos.

Escrito por

Márcia Gonçalves 3
Márcia Gonçalves
Nutricionista (3726N), licenciada em Ciências da Nutrição na Faculdade de Ciências da Nutrição e da Alimentação da Universidade do Porto. Atualmente está a frequentar o Mestrado em Tecnologia e Ciência Alimentar na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e Universidade do Minho. Colabora com clínicas onde dá consultas e desenvolve o seu trabalho na área da nutrição clínica. Em 2017 editou o seu primeiro livro de culinária vegetariana, intitulado “Receitas com Paixão“. É ainda autora do Compassionate Cuisine.
Patrícia Padrão 5
Patrícia Padrão
Nutricionista, Professora Auxiliar da Faculdade de Ciências da Nutrição e da Alimentação da Universidade do Porto.

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