Dado o seu papel no metabolismo muscular os AACR têm tido grande atenção por parte da comunidade científica no tratamento/prevenção da sarcopenia, na hipertrofia muscular e na recuperação física no contexto de prática desportiva.
Contudo, a crescente disponibilidade e ingestão de alimentos com alto teor de proteínas e AACR muito acima dos valores recomendados, no contexto de uma população sedentária com alta prevalência de patologia metabólica não serve nenhum objetivo útil para o consumidor, tendo o potencial de contribuir negativamente na fisiopatologia das doenças metabólicas.
Uma discussão necessária e que agora se faz aqui no Pensar Nutrição.
Indíce
Abreviaturas
- AACR – aminoácidos de cadeia ramificada.
- CACR – α-cetoácidos de cadeia ramificada.
- CDCACR – cínase da desidrogenase de cetoácidos de cadeia ramificada.
- DCACR – desidrogenase de cetoácidos de cadeia ramificada.
- FAO – United nations food and agriculture organization.
- FGF-21 – Fibroblast growth factor -21.
- FP2Cm – fosfátase de proteínas 2Cm.
- HOMA-IR – Homeostatic model assessment of insulin resistance.
- IDR – ingestão diária recomendada.
IGF-1 – Insulin growth factor.
IRS-1- Insulin receptor substrate 1.
LAT1 – Large neutral amino acid transporter.
mTOR – mammalian target of rapamicyn.
OMS – Organização mundial da saúde.
TAACR – transaminases de aminoácidos de cadeia ramificada.
TNF-α – Tumor necrosis factor – α.
Introdução
Os aminoácidos de cadeia ramificada (AACR) isoleucina, leucina e valina desempenham funções muito relevantes no metabolismo humano. Estes aminoácidos não são sintetizados pelos metazoários e por isso são nutricionalmente essenciais e, as suas cadeias laterais hidrofóbicas tem papel de relevo na estrutura das proteínas [1].
Daqui decorre, que os AACR têm de ser obtidos a partir da dieta, apesar de ser possível a sua síntese de novo em pequenas quantidades pela microbiota intestinal [2]. Os AACR representam 20 a 25% da maior parte das proteínas da dieta e constituem cerca de 35% dos aminoácidos nutricionalmente essenciais nos mamíferos [3].
Os AACR e a leucina em particular são especialmente conhecidos pelo efeito anabólico na síntese proteica, tanto por promover a síntese proteica muscular como por prevenir a sua degradação, sendo estes processos essencialmente dependentes da ativação da via de sinalização mTOR [4, 5].
Para além dos efeitos no metabolismo energético, na fadiga e dano muscular durante o exercício, a suplementação com AACR poderá ter efeitos benéficos no estado nutricional e em quadros promotores de perda de massa muscular como doença renal e hepática e caquexia oncológica [6-8]. Os AACR atuam como nutrientes sinalizadores, reguladores metabólicos da homeostasia da glicose, da neurotransmissão, da resposta imunológica, do desenvolvimento intestinal, da biogénese mitocondrial e da produção de leite pelas glândulas mamárias [9].
Apesar de em muitas situações clínicas estar demonstrado que a suplementação com AACR ou a ingestão de uma dieta rica nestes aminoácidos melhora a saúde metabólica, muitos estudos salientam o seu potencial papel na fisiopatologia e evolução de doenças metabólicas como a obesidade e diabetes, assim como, de outras patologias como a insuficiência cardíaca, cancro e doenças neurodegenerativas [10].
Figura 1 – Esquema representativo das principais vias metabólicas e de sinalização intracelulares envolvendo os AACR. AACR – aminoácidos de cadeia ramificada. CACR – α-cetoácidos de cadeia ramificada. mTOR – mammalian target of rapamicyn. TAACR – transaminases de aminoácidos de cadeia ramificada. Esquema adaptado a partir de: Gojda, J.; Cahova, M. Biomolecules,11, 2021.
Catabolismo dos AACR
Os dois primeiros passos do catabolismo de todos os AACR são comuns. Os AACR são convertidos nos seus respetivos α-cetoácidos de cadeia ramificada (CACR), 2-cetoisocaproato, 2-ceto-3-metilvalerato, 2-cetoisovalerato, a partir da leucina, isoleucina e valina, respetivamente. Esta reação é catalisada por transaminases de aminoácidos de cadeia ramificada (TAACR) das quais existem duas isoformas: a citosólica (TAACR1) expressa no cérebro e células do sistema imunológico (por ex.: linfócitos T ativados e macrófagos) e a mitocondrial (TAACR2) expressa na maioria dos tecidos, mas principalmente no músculo esquelético, rim, pâncreas, estomago e colon [11-13]. Ao invés do que acontece com a maioria dos aminoácidos, o catabolismo inicial dos AACR ocorre no músculo esquelético e não no fígado, o que decorre da baixa atividade da TAACR hepática.
O principal aceitador do grupo amina dos AACR é o α-cetoglutarato formando-se glutamato. O grupo amina do glutamato pode então ser transferido para o piruvato formando alanina ou, o glutamato pode aceitar um segundo grupo amina formando glutamina, sendo este um dos mecanismos de controlo dos níveis de amónia no organismo. A alanina, glutamina e os CACR são então libertados dos músculos para a circulação sistémica.
A segunda etapa do catabolismo dos AACR é a descarboxilação oxidativa irreversível dos seus α-cetoácidos formando os respetivos ésteres de acil-CoA, CO2 e NADH. Neste processo os esqueletos carbonados do 2-cetoisocaproato, do 2-ceto-3-metilvalerato e do 2-cetoisovalerato são convertidos respetivamente em isovaleril-CoA, 2-metilbutiril-CoA e isobutiril-CoA. Esta reação é catalisada pela desidrogenase de cetoácidos de cadeia ramificada (DCACR). Este complexo multienzímico está localizado na membrana mitocondrial interna sendo constituído por 3 componentes catalíticas: uma descarboxílase tetramérica (α2β2) dependente de tiamina (E1), que catalisa a descarboxilação oxidativa dos CACR; uma transacilase de diidrolipoil (E2), que transfere os grupos acilo para a CoA; e uma desidrogenase de diidrolipoil dependente de FAD (E3) que transfere os eletrões libertados para o NAD+ [12]. A atividade do complexo da DCACR é regulada através da fosforilação reversível da subunidade E1. A fosforilação é catalisada por uma cínase específica (cínase da DCACR, CDCACR) que inativa a enzima, enquanto que a desfosforilação por uma fosfátase específica (fosfátase de proteínas 2Cm, FP2Cm) ativa a enzima. Esta cínase específica, que é o principal regulador da atividade deste complexo, é inibida alostericamente pelos CACR sendo o 2-cetoisocaproato o composto com maior afinidade [14]. O complexo da DCACR pode ainda ser inibido de forma eficiente quando aumentam os quocientes intracelulares de NADH/NAD+, acil-CoA/CoA-SH e ATP/ADP. O complexo DCACR apresenta maior atividade no fígado, atividade intermédia nos rins e músculo cardíaco e atividade relativamente baixa no músculo, tecido adiposo e cérebro [3]. Face ao exposto, o catabolismo dos AACR ocorre principalmente nos músculos e fígado em comparação com outros tecidos.
A terceira etapa do catabolismo dos AACR leva à produção de ATP através de vias diferentes para cada aminoácido. O catabolismo do 2-cetoisocaproato forma acetil-Coa e acetoacetato, pelo que a leucina é considerada um aminoácido cetogénico. O 2-ceto-isocaproato é catabolizado a succinil-CoA, razão pela qual a valina é classificada como aminoácido glicogénico. Por sua vez a isoleucina é considerada simultaneamente glicogénica e cetogénica porque do catabolismo do 2-ceto-3-metilvalerato resultam succinil-CoA e acetil-CoA.
No citosol dos hepatócitos está descrita uma via catabólica alternativa para a leucina. Esta envolve a oxidação de 2-cetoisocaproato a 3-hidroxi-3-metilbutirato pela enzima dioxigenase do 2-cetoisocaproato [15].
Figura 2 – Esquema representativo do catabolismo dos AACR. α-CG – alfa-cetoglutarato. CACR – α-cetoácidos de cadeia ramificada. mTOR – mammalian target of rapamicyn. TAACR – transaminases de aminoácidos de cadeia ramificada. AACR – aminoácidos de cadeia ramificada. CACR – α-cetoácidos de cadeia ramificada. CDCACR – cínase da desidrogenase de cetoácidos de cadeia ramificada DCACR – desidrogenase de cetoácidos de cadeia ramificada. FP2Cm – fosfátase de proteínas 2Cm. HMB – 3-hidroxi-3-metilbutirato. LAT – Large neutral amino acid transporter. mTOR – mammalian target of rapamicyn. TAACRc(m) – transaminases de aminoácidos de cadeia ramificada citosólica (mitocondrial). Esquema adaptado a partir de: Zhang et al. Nutrients, 15, 2023 Fengna et al. Amino Acids .48, 2016.
As concentrações sanguíneas dos AACR refletem essencialmente o equilíbrio entre a ingestão de aminoácidos e a sua mobilização dos “reservatórios” no organismo, isto é, as proteínas, tendo os AACR papel de relevo nos sistemas de controlo da ingestão alimentar e do metabolismo proteico. Por oposição ao que acontece com os glícidos e lípidos da dieta cujo excesso pode ser armazenado na forma de glicogénio e triacilgliceróis, não existem verdadeiras estruturas de reserva para os aminoácidos em excesso. Assim, os aminoácidos são usados na síntese proteica e eventuais excessos de proteínas na dieta são alvo de processos catabólicos formadores de intermediários eventualmente utilizáveis como substratos energéticos, ou armazenados na forma de glicogénio ou triacilgliceróis [16-18].
Após a ingestão de uma refeição contendo proteínas, ocorre uma marcada elevação dos níveis sanguíneos de AACR que se prolonga por várias horas. Tal ocorre porque no fígado o metabolismo de primeira passagem dos AACR é limitado e cerca de 50% dos AACR absorvidos entram na circulação sistémica [19]. A maioria dos restantes aminoácidos sofrem extensa captação e metabolização hepática. Assim, os níveis sanguíneos pós-prandiais dos AACR são um melhor indicador da quantidade de proteína ingerida do que outros aminoácidos. Este aspeto é relevante no envolvimento dos AACR na ativação de processos fisiológicos que dependem da quantidade e qualidade da proteína ingerida, por exemplo: a síntese proteica, secreção de insulina e regulação do apetite. De todos os AACR a leucina parece ser o mais influente na regulação destes processos [16]
Aminoácidos de cadeia ramificada e a via da mTOR
O principal papel da leucina no período pós-prandial é de promover a síntese proteica muscular ao ativar a proteína alvo da rapamicina nos mamíferos (mTOR). A mTOR tem dois complexos proteicos principais: o mTORC1 é uma proteína cínase que influencia múltiplas funções celulares incluindo a síntese proteica e a autofagia; e o mTORC2 que é um complexo proteico que influencia algumas das atividades da insulina e recetores do IGF-1 e do citoesqueleto. A leucina e a insulina, juntamente com muitos outros fatores de crescimento e metabolitos influenciáveis pelo estado energético e disponibilidade de substratos, ativam a via mTOR o que leva a síntese proteica muscular. A ativação da via mTOR também inibe a proteólise e a autofagia, evitando a degradação da proteína muscular, incluindo a que está a ser sintetizada. A síntese proteica pode ocorrer se todos os aminoácidos necessários ao processo estiverem disponíveis em quantidades adequadas [18, 20]. Isoladamente os suplementos de AACR não aumentam a síntese proteica sem que estejam disponíveis todos os outros aminoácidos [21]. A origem dos aminoácidos, alimentar ou sob a forma de suplementos, pelo efeito que tem nas curvas concentração/tempo também influencia a síntese proteica muscular [22].
Aminoácidos de cadeia ramificada e insulina
A leucina estimula a secreção de insulina pelas células beta dos ilhéus pancreáticos [23-25] e atua de forma sinérgica com a glicose na regulação da secreção da insulina em função da ingestão de glícidos e proteínas da dieta. Em função da ingestão de proteína, a leucina pode também atuar de forma sinérgica com a insulina de forma a regular a síntese proteica via mTOR. Apesar da leucina e isoleucina serem insulinotrópicas, essencialmente no período pós-prandial, durante o jejum a valina e a isoleucina são gliconeogénicas contribuindo de forma modesta para a síntese endógena de glicose. Contudo, é de salientar que a exposição por longos períodos a níveis sanguíneos elevados de leucina pode desencadear indiretamente resistência à ação da insulina pelos efeitos a jusante da mTOR no substrato do recetor da insulina-1 (IRS-1) [20].
Aminoácidos de cadeia ramificada e a regulação da ingestão alimentar
A ingestão alimentar é influenciada pela proteína da dieta e por desequilíbrios na disponibilidade aminoacídica. A “alavancagem proteica” é o processo pelo qual a forte regulação da ingestão proteica alavanca a ingestão de outros componentes da dieta. As dietas com alto teor proteico tendem a reduzir a ingestão alimentar independentemente do conteúdo em glícidos e lípidos, enquanto que dietas com baixo teor de proteínas tendem a aumentar a ingestão alimentar [26, 27]. A avaliação do efeito de cada aminoácido no apetite é complexa, variando em função de cada aminoácido e dos desequilíbrios na disponibilidade entre eles. Está descrita a existência da rejeição de dietas deficientes ou pobres em proteína, assim como, em pelo menos um aminoácido essencial [28]. Os AACR influenciam a libertação intestinal e hipotalâmica de hormonas de regulação do apetite. A relação entre a ingestão alimentar e os AACR, com destaque para a leucina, pode ter a forma de uma curva U, em que os níveis baixos e elevados tem efeito supressor do apetite, enquanto que a elevação moderada aumenta a ingestão alimentar [29-31]. Um mecanismo de resposta ao desequilíbrio entre os AACR e outros aminoácidos, em particular com o triptofano, é o transportador LAT1 na barreira hematoencefálica. A captação dos AACR e outros aminoácidos grandes e neutros é competitiva. Quando as concentrações em circulação de AACR são elevadas há uma redução na captação cerebral de triptofano, o precursor da serotonina que reduz o apetite [29]. Quando em concentrações muito elevadas a nível cerebral, a leucina atua diretamente na via mTOR hipotalâmica suprimindo o apetite [32]. Por outro lado, dietas com baixo teor de AACR, proteína e outros aminoácidos ativam vias que envolvem a cínase de controlo geral não repressível 2 (GCN2) e o fator de crescimento de fibroblastos 21 (FGF-21) que por sua vez inibem a via da mTOR [33]. Os efeitos dos AACR no apetite dependerão do contexto individual de ingestão nutricional. Assim, o aumento da ingestão de AACR no contexto de uma dieta de alto teor proteico leva a uma redução da ingestão alimentar por alavancagem proteica. Pelo contrário, uma maior ingestão de AACR na forma de suplementos, sem alterar a ingestão dos restantes aminoácidos, poderá aumentar a ingestão alimentar como consequência do desequilíbrio aminoacídico [29].
Para além destes importantes papéis como molécula de sinalização da leucina, os AACR têm várias outras funções. Por exemplo, como precursores de neurotransmissores, modificadores da função mitocondrial e da resposta imunológica. O metabolito da valina 3-hidroxiisobutirato (3-HIB), é o único metabolito dos CACR que pode sair da mitocôndria por não estar ligado à coenzima-A. A elevação da concentração sanguínea de 3-HIB aumenta o transporte de ácidos gordos da circulação para o músculo [16, 18].
Aminoácidos de cadeia ramificada no período pós-absortivo e no jejum
Enquanto que a ingestão de proteína da dieta influencia os níveis sanguíneos pós-prandiais de AACR estimulando a síntese proteica muscular, os níveis sanguíneos de AACR em jejum são regulados primordialmente pelo catabolismo proteico, mobilizando aminoácidos para a obtenção de energia. No ser humano é ténue a associação entre os níveis sanguíneos de AACR em jejum e a ingestão proteica [34]. Pelo contrário nos animais de laboratório, que podem ser expostos a uma maior amplitude de ingestão proteica, é mais forte a associação entre ingestão dietética e níveis sanguíneos de AACR [29, 34]. Qualquer associação entre níveis sanguíneos de AACR em jejum e ingestão dietética é secundária aos seus efeitos indiretos nas vias catabólicas dos AACR, e não consequência direta da ingestão dos AACR. Existem mais de quarenta enzimas mitocondriais que participam no catabolismo dos AACR em jejum, das quais os dois tipos mais relevantes são: transaminases de aminoácidos de cadeia ramificada (TAACR2, enzima mitocondrial ubiquitária; e TAACR1, enzima citoplasmática cerebral) e o complexo da desidrogenase de cetoácidos de cadeia ramificada (DCACR). A transaminação pela TAACR2 constitui o primeiro passo da degradação dos AACR ocorrendo maioritariamente no músculo, por oposição ao que acontece aos outros aminoácidos cuja metabolização é maioritariamente hepática. Daqui resultam cetoácidos de cadeia ramificada que são lançados na circulação (2-cetoisocaproato, do 2-ceto-3-metilvalerato e do 2-cetoisovalerato). Neste passo também se formam glutamina e alanina que podem ser indicadores de aumento do catabolismo dos AACR [9, 16, 35].
O passo seguinte consiste na descarboxilação oxidativa dos CACR pelo complexo da DCACR localizado nas mitocôndrias do músculo, fígado e tecido adiposo. Este processo catabólico resulta eventualmente em substratos gliconeogénicos e cetogénicos (a leucina é cetogénica, a valina gliconeogénica e a isoleucina é glicogénica e cetogénica). No caso do succinil-CoA, a formação deste intermediário pode funcionar como uma reação anaplerótica contribuindo para a estabilidade das concentrações dos intermediários do ciclo dos ácidos tricarboxílicos. Os substratos glicogénicos e cetogénicos que não sejam usados como substrato energético podem ser armazenados na forma de glicogénio ou triacilgliceróis [16, 35]. Como já se descreveu antes, a atividade da DCACR é fortemente regulada. O complexo da DCACR é inibido por fosforilação e por baixos níveis de AACR e, é ativado por desfosforilação e altos níveis de AACR. O complexo da DCACR é o passo limitante do catabolismo dos AACR sendo a sua atividade o principal determinante das concentrações sanguíneas de AACR em jejum [16, 18, 36]. Durante o jejum, de curta ou longa duração, ocorre um aumento das concentrações sanguíneas de AACR e CACR, à medida que ocorre catabolismo proteico para obtenção de energia [37], até ao eventual esgotamento das reservas proteicas musculares que condicionará uma redução na concentração sanguínea de AACR.
Um dos efeitos agudos da insulina é a redução das concentrações plasmáticas de AACR, contudo num contexto de insulinorresistência, diabetes mellitus tipo II e obesidade, observa-se um aumento das concentrações sanguíneas em jejum de AACR e CACR. Para além da insulina, são vários os fatores anabólicos (hormona do crescimento, IGF-1) e catabólicos (catecolaminas, citocinas inflamatórias, TNF-α, cortisol) que através da ativação ou inibição do complexo da DCACR regulam o catabolismo proteico e dos AACR [9, 16, 38].
Aminoácidos de cadeia ramificada, composição corporal e obesidade
Muitos dos estudos que analisaram a relação entre os AACR e a composição corporal chegaram a uma de duas conclusões aparentemente contraditórias: uma é que se associam a maior adiposidade e obesidade; a outra é que se associam a aumento na massa muscular e/ou massa magra.
São já muitos os estudos que tentaram caracterizar a “assinatura metabólica” da obesidade. Em 1969, Felig e seus colaboradores foram os primeiros a descrever que os indivíduos obesos tinham maiores concentrações plasmáticas de AACR e que estas se associavam a resistência à ação da insulina [39]. Mais recentemente, estudos de metabolómica de grande dimensão referem que a obesidade se associa a elevação dos AACR em circulação, observando-se ainda alterações na concentração sanguínea de vários outros aminoácidos [40-42].
Por outro lado, em estudos populacionais, incluindo alguns que avaliam idosos, as conclusões apontam para uma relação positiva entre maior concentração de AACR e maior massa magra [34, 43-46]. Contudo, quando as bases de dados desses estudos são acessíveis, é possível observar que em alguns deles também ocorre uma associação positiva entre AACR circulantes com o índice de massa corporal e massa gorda corporal.
Uma metanálise de estudos tranversais sobre a relação entre AACR e composição corporal, concluiu que os AACR da dieta se associavam a um menor risco de obesidade (OR=0,62, 95% 0,47-0,82) quando compararam o quintil de consumo mais elevado com o quintil mais baixo. Estes autores descrevem ainda uma correlação mínima entre a ingestão de AACR e os seus níveis plasmáticos em jejum [47].
Uma revisão sistemática com metanálise sobre o uso de suplementos de leucina em idosos, mostrou que a leucina aumentou a taxa de síntese proteica fracionada, mas não se observaram efeitos na massa corporal magra e na massa magra dos membros inferiores [48]
Aminoácidos de cadeia ramificada, resistência à ação da insulina e doenças cardiometabólicas
São vários os mecanismos que suportam a relação entre os AACR e a insulina: a leucina e a isoleucina são insulinotrópicas; a valina e a isoleucina são gliconeogénicas; a leucina pode influenciar negativamente o recetor da insulina por sobrestimulação do mTORC1; além de que a insulina regula o complexo da DCACR. Assim, os AACR podem ter efeitos positivos e negativos nas vias dependentes da insulina e, a resistência à ação desta hormona pode aumentar as concentrações plasmáticas de AACR. Face ao exposto é difícil determinar a relação da causalidade quando se interpretam resultados de estudos entre AACR e patologia metabólica [17].
Apesar da muita investigação publicada nesta área, há ainda alguma incerteza sobre se a elevação dos AACR constitui um biomarcador de alterações das funções da insulina, se contribui para insulinorresistência e qual o papel dos AACR nestas associações [17, 49].
Mesmo assim, a maioria dos trabalhos afirma que a elevação dos AACR circulantes é muito provavelmente secundária a estados de insulinorresistência, devido à inibição do complexo da DCACR pela insulina [10]. Contudo, e dado que a elevação dos AACR circulantes pode ser observada muitos anos antes de se observar insulinorresistência, também tem sido proposto que esta elevação dos AACR pode ser causa da insulinorresistência. A elevação dos AACR em circulação pode ser secundária a alterações no microbioma ou a processos inflamatórios que reduzem o metabolismo hepático e/ou adipocitário destes aminoácidos [16, 17, 50]. Os dados existentes suportam a possibilidade de que a elevação dos AACR em circulação conduza a alterações de vias metabólicas reguladas pela insulina, ainda antes de a insulinorresistência ser detetável, enquanto que a hiperinsulinemia eleva a concentração de AACR em fases mais avançadas da doença. As associações entre os níveis sanguíneos de AACR, diabetes mellitus tipo II e outras patologias cardiometabólicas e fatores de risco têm sido alvo de profunda investigação e revisão [10, 16, 17, 35, 36, 49-51].
Uma metanálise de oito estudos longitudinais de metabolómica com mais de 8000 participantes, mostrou um aumento de 1,39 vezes (IC 95 %: 1,24-1,48) no risco relativo de desenvolver diabetes mellitus tipo II em indivíduos com elevação dos AACR circulantes. Os aminoácidos aromáticos fenilalanina e tirosina também se associavam a um maior risco de desenvolver diabetes mellitus tipo II, enquanto que os níveis de glutamina e de glicina apresentavam uma relação inversa com esta patologia [52]. Contudo, em modelos animais (ratinho) com dieta hiperlipídica os AACR não foram identificados como os principais metabolitos associados à insulinorresistência [53].
Considerando a ingestão alimentar de AACR, a maioria dos estudos concluí que a uma maior ingestão corresponde um risco aumentado de diabetes tipo II e outras patologias cardiometabólicas. Numa revisão de onze estudos observacionais com 2 a 32 anos de seguimento, todos concluíram que há relação positiva entre AACR da dieta e doença cardiovascular [54]. Uma metanálise de quatro estudos calculou que entre o quintil mais baixo e o mais elevado de consumo de AACR na dieta, há um aumento de 32 % no risco de diabetes mellitus tipo II [47]. Noutros estudos, a maior ingestão de AACR estava associada a maior incidência de hipertensão [55] ou mortalidade cardiovascular [51].
Já se realizaram vários ensaios clínicos com suplementos de AACR e múltiplos fatores cardiometabólicos. A ingestão de suplementos de AACR ou de leucina por curtos períodos de tempo resultou em pouco ou nenhum efeito na insulina e metabolismo da glicose [54, 56, 57].
Em modelos animais (ratinho), a suplementação a longo prazo com AACR associou-se a uma maior ingestão alimentar, maior massa gorda, esteatose hepática e maior insulinemia em jejum [29]. A suplementação de AACR em ratinhos em simultâneo com uma dieta hiperlipídica induzia insulinorresistência e alterações na tolerância à glicose [40]. Por outro lado, a restrição de AACR em ratinhos com uma dieta de tipo ocidental melhorava a resistência à insulina e a tolerância à glicose [58]. Uma redução de dois terços no aporte de AACR na dieta em ratinhos melhorou a tolerância à glicose e ao piruvato e reduziu a produção de insulina pelas células dos ilhéus pancreáticos [59].
A associação das concentrações sanguíneas de AACR com a insulinorresistência e maior risco de diabetes mellitus tipo II parece ter suporte robusto na literatura [60-63]. Uma revisão sistemática de 23 estudos de metabolómica, com 20000 participantes entre os 18 e os 59 anos de idade, mostrou que a elevação dos AACR em circulação é um biomarcador para a insulinorresistência e risco de desenvolver diabetes mellitus tipo II. Esta relação é afetada pelo género, etnia e dieta [64]. Em homens mais velhos, níveis elevados de AACR circulantes associam-se com vários fatores de risco cardiometabólicos como maior glicemia, insulinemia, HOMA-IR (Homeostatic Model Assessment of Insulin Resistance), triacilgliceróis e níveis reduzidos de colesterol HDL. Contudo, em homens idosos com fragilidade estes tinham a mortalidade mais elevada e desfechos cardiovasculares severos quando os AACR estavam no nível mais baixo. Estes resultados sustentam a ideia que em idades mais avançadas, os AACR são biomarcadores robustos para fatores de risco cardiometabólico comuns, sendo que a fragilidade ainda é o principal fator de risco de mortalidade e desfechos cardiovasculares severos [61].
As doenças crónicas cuja etiologia está associada à alimentação inadequada constituem um grave problema de saúde publica no nosso país. Em 2015, as doenças cardiovasculares causaram 29,75 % de todas as mortes, a diabetes afetava cerca de 10 % da população portuguesa e a prevalência de hipertensão arterial atingia 36 %. A obesidade como doença crónica e fator de risco para outras patologias afeta acima de 20 % da população adulta portuguesa, quanto ao excesso de peso este afeta mais de 50 % da população [65]. Neste contexto parece razoável avaliar todos os fatores alimentares que podem afetar as patologias de maior incidência e prevalência no nosso país, mesmo aqueles que na prática diária não são particularmente valorizados como parece ser a elevada ingestão de proteína e AACR.
Aminoácidos de cadeia ramificada e doença neurodegenerativa
A relação entre concentrações excessivas de AACR em circulação e a doença neurodegenerativa é um tópico que necessita investigação adicional, dada a plausibilidade biológica dos mecanismos potencialmente envolvidos nessa relação. Concentrações plasmáticas excessivas de AACR podem aumentar o transporte destes aminoácidos através da barreira hematoencefálica mediado pelo LAT1 (Large Neutral Amino Acid Transporter), limitando o transporte de aminoácidos como o triptofano e a tirosina que competem pelo LAT1. Este fenómeno pode contribuir para a redução a nível central de serotonina e dopamina afetando as vias e funções dependentes de níveis adequados destes neurotransmissores. O desequilíbrio entre serotonina e dopamina no sistema nervoso central pode desregular a produção de fatores neurotróficos contribuindo assim para fenómenos neurodegenerativos. Por outro lado, o excesso de AACR em circulação pode estimular a libertação de citocinas proinflamatórias pelas células mononucleares do sangue periférico causando disrupção da barreira hematoencefálica, ativando a microglia e potenciando fenómenos inflamatórios no sistema nervoso central com potencial neurodegenerativo [66].
Valores de referência na dieta para AACR
Em 2005 o Painel sobre Macronutrientes do Instituto de Medicina dos Estados Unidos da América publicou os valores de ingestão de referência para proteínas e aminoácidos. Nesse documento são definidos alguns conceitos que é importante aqui recordar:
- Necessidades medias estimadas (Estimated Average Requirement – EAR): valor médio de ingestão diária de um nutriente que se estima cubra as necessidades de metade dos indivíduos saudáveis numa determinada fase da vida e género.
- Ingestão diária recomendada (Recommended Dietary Allowance – RDA): valor médio de ingestão diária de um nutriente que é suficiente para satisfazer as necessidades desse nutriente de quase todos (97-98 %) os indivíduos saudáveis numa determinada fase da vida e género.
- Ingestão adequada (Adequate Intake – AI): valor médio diário recomendado de ingestão de um nutriente baseado em aproximações obtidas experimentalmente e por observação da ingestão desse nutriente por um grupo (ou grupos) de indivíduos aparentemente saudáveis que se assume como adequado quando não é possível determinar um valor de RDA.
- Limite superior de ingestão tolerável (Tolerable Upper Intake Level – UL): valor médio diário mais elevado de ingestão de um nutriente que provavelmente não coloca risco de efeitos adversos para a saúde para a maioria dos indivíduos da população geral. À medida que a ingestão sobe acima deste valor aumenta o risco potencial de efeitos adversos.
As necessidades médias estimadas pelo Instituto de Medicina dos Estados Unidos da América de AACR para homens adultos com mais de 19 anos são: 34 mg/kg/dia de leucina, 15 mg/kg/dia de isoleucina e 19 mg/kg/dia de valina.
A ingestão diária recomendada Instituto de Medicina dos Estados Unidos da América de AACR para homens adultos com mais de 19 anos é de: 42 mg/kg/dia de leucina, 19 mg/kg/dia de isoleucina e 24 mg/kg/dia de valina [67]. Assim, para um homem adulto de 70 kg de peso a ingestão diária recomendada de leucina, isoleucina e valina é de: 2940 mg, 1330 mg e 1680 mg respetivamente.
A Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (European Food Safety Authority – EFSA) propõe como necessidades médias de aminoácidos essenciais os valores apresentados pela OMS e FAO em 2007, e para os AACR, 39 mg/kg/dia para a leucina, 20 mg/kg/dia para a isoleucina e 26 mg/kg/dia para a valina [68].
Num ensaio clínico efetuado em indivíduos jovens adultos saudáveis foi proposto um limite superior de ingestão tolerável para a leucina de 500 mg/kg/dia ou ∼35 g/dia. Este valor foi proposto como uma estimativa cautelosa sob condições de aporte agudo, uma vez que acima deste valor de ingestão os participantes desenvolviam elevação da amónia circulante acima do limite superior do intervalo de concentrações normal traduzindo a incapacidade do organismo de lidar com estes níveis de ingestão aguda [69].
Consumo de AACR
Quando a partir dos dados do Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (IAN-AF) de 2015-2016 se comparam os valores de consumo alimentar estimado, com as recomendações da Roda dos Alimentos Portuguesa, é possível concluir que o consumo de alimentos bons fornecedores de AACR se encontra acima do recomendado, 12 % acima no caso do consumo de “Carne, pescado e ovos” e 6 % acima no caso dos laticínios [65].
Na tabela 1 poderemos ver que com um nível de consumo perfeitamente “normal” é possível atingir níveis de ingestão de leucina várias vezes superior ao recomendado.
Tabela 1 – Quantidade de leucina ingerida a partir de alimentos ricos em proteína que podem fazer parte de um dia alimentar comum. https://www.myfooddata.com/articles/high-leucine-foods.php#intro – IDR – Ingestão diária recomendada. IDR Leucina homem de 70 kg = 2940 mg
Nos últimos anos o mercado dos produtos alimentares com teores elevados de proteína tem tido um crescimento marcado, assim como, a disponibilidade de suplementos alimentares de AACR ou proteínas ricas em AACR (por ex.: proteína de soro de leite e caseína).
Na tabela 2 poderemos ver a quantidade de AACR que uma única embalagem de um leite fermentado com 30 g de proteína (50% de caseína / 50% de proteína de soro de leite). Nesta tabela é possível ver que o consumo de uma única embalagem deste produto ultrapassa a ingestão diária recomendada em AACR para um homem adulto com 70 kg de peso.
Tabela 2 – Quantidade de AACR e percentagem da ingestão diária recomendada de AACR por embalagem de 330 ml de um leite fermentado com 30 g de proteína.
Recentemente o produtor reduziu o teor de proteína deste produto para 26g por embalagem de 330 ml, o que altera os valores de AACR disponíveis por embalagem de acordo com os apresentados na tabela 3:
Tabela 3 – Quantidade de AACR e percentagem da ingestão diária recomendada de AACR por embalagem de 330 ml de um leite fermentado com 26 g de proteína. [70]
Dos exemplos acima expostos resulta fácil concluir que com consumos habituais de alimentos ricos em proteína e AACR é possível a um homem adulto de 70 kg ultrapassar 5,4 vezes os valores de ingestão diária recomendada de leucina. E, se esse mesmo indivíduo adicionar à sua dieta uma embalagem por dia de um leite fermentado rico em proteína como o do exemplo acima exposto, poderá ultrapassar essa recomendação 6,3 vezes.
Mesmo que se considere necessário aumentar os valores apresentados nas recomendações de ingestão diária para proteínas e aminoácidos, os níveis de ingestão em largas franjas da população em geral já são tão elevados com consumos habituais que a ideia de suplementar não parece ter suporte.
No sentido de responder à questão se a redução da ingestão de AACR pode diminuir as concentrações sanguíneas de AACR, foi realizado um estudo piloto envolvendo 12 indivíduos saudáveis aos quais se atribuiu por 7 dias uma dieta restritiva em AACR ou uma dieta controlo. As dietas tinham teores de azoto e energia similares, só diferindo o teor de AACR entre ambas. A dieta restrita em AACR reduziu as concentrações de AACR em circulação em cerca de 50 % a partir do valor basal, de 437±60 para 217±40 µmol/L (p < 0.005). Isoladamente, tanto a valina (de 245±33 para 105±23 µmol/L; p < 0.0001), como a leucina (de 130±20 para 75±3 µmol/L; p < 0.05), diminuíram de forma significativa em resposta a uma dieta restrita em AACR. Esta dieta mostrou uma tendência de redução do valor do modelo homeostático de avaliação da resistência à insulina (HOMA-IR): de 1.5±0.2 para 1.0±0.1, p = 0.096. A redução dos AACR circulantes foi possível mantendo uma dieta isoazotada e isocalórica mantendo a ingestão diária recomendada de proteína.
Este estudo piloto estabelece as bases para uma potencial intervenção terapêutica dietética na obesidade e diabetes [71].
Conclusões
Os aminoácidos de cadeia ramificada — isoleucina, leucina e valina — são nutricionalmente essenciais e como sinalizadores do estado nutricional cruciais na homeostasia metabólica.
A elevação da concentração plasmática de AACR em jejum é um biomarcador de alterações metabólicas incluindo a obesidade, a insulinorresistência e a diabetes mellitus tipo II.
Os mecanismos subjacentes à associação entre a elevação dos AACR, a obesidade, a diabetes mellitus tipo II e as doenças cardiovasculares ainda são alvo de intensa investigação. No entanto, sabemos que nesses mecanismos se incluem a cínase de proteínas serina/treonina mTOR, a disfunção mitocondrial, alterações na utilização de substratos metabólicos (inflexibilidade metabólica) e a ativação plaquetar.
A restrição ou adequação da ingestão de AACR na dieta poderá reduzir a concentração plasmática destes aminoácidos com efeitos positivos na patologia metabólica.
A crescente disponibilidade e ingestão de alimentos com alto teor de proteínas e AACR, no contexto de uma população com alta prevalência de patologia metabólica não serve nenhum objetivo útil, tendo o potencial de contribuir negativamente na fisiopatologia das doenças metabólicas.
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