Sindemia, uma nova palavra para o dicionário dos nutricionistas

Sindemia: um conceito que pretende descrever a interdependência entre a obesidade, desnutrição e alterações climáticas.

Muito provavelmente esta palavra ainda não foi utilizada em Portugal no contexto da nutrição, mas em tempos de emergência climática e de epidemia da obesidade os nutricionistas e a população em geral irão ouvir falar cada vez mais do conceito de Sindemia Global.

Trata-se de um conceito que pretende descrever a interdependência entre a obesidade, desnutrição e alterações climáticas, mas antes de apresentarmos a definição, descrevemos alguns dos seus fundamentos.

As alterações climáticas como influenciador do consumo alimentar

As relações entre a previsível mudança climática e as alterações na produção dos alimentos começaram a aparecer nos relatórios do IPPC (The Intergovernmental Panel on Climate Change) o organismo das Nações Unidas responsável pela avaliação e acompanhamento das alterações climáticas desde muito cedo.

Em 1990, no primeiro relatório, já existia um capítulo dedicado às consequências do previsível aumento da temperatura e da redução da chuva sobre a produção alimentar. Hoje sabemos, por exemplo, que o aumento da temperatura (entre 3 a 4 graus) poderá criar microclimas favoráveis ao desenvolvimento de microorganismos nos alimentos e vectores que contatem com os alimentos.

Por exemplo, um aumento nas temperaturas beneficia a proliferação de algumas espécies de fungos potencialmente toxinogénicos, incluindo espécies produtoras de aflatoxinas, com potencial de toxicidade aguda e crónica.

Outro aspeto relevante, pode ser o impacto sobre a composição nutricional de alguns alimentos. Estima-se que o aumento dos níveis de dióxido de carbono na atmosfera tenha impacto na composição nutricional do arroz, nomeadamente na redução do teor proteico e de algumas vitaminas e minerais, nomeadamente ferro, zinco e vitaminas do complexo B.

De um modo geral, estima-se também que as alterações climáticas possam contribuir para uma redução de 3% na disponibilidade global de alimentos por pessoa, uma redução de 4% na disponibilidade de hortofrutícolas e de 0,7% na disponibilidade de carne vermelha.

O consumo alimentar como influenciador das alterações climáticas

Em Portugal, o Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS) um organismo sob a égide da Assembleia da República, também desde muito cedo abordou esta questão.

Em julho de 2007, o Grupo de Trabalho sobre Ambiente e Saúde (GTAS), num Parecer sobre a alimentação e qualidade do ar na interface ambiente/saúde, produziu aquele que podemos considerar o primeiro documento estruturante para um pensamento estratégico sobre a alimentação e o ambiente em Portugal.

Entre outras recomendações, apontava-se desde já para a necessidade de “Conhecer melhor os “inputs” de energia ao longo do ciclo de vida de produtos alimentares consumidos pela população e outra informação que permita ajudar a avaliar o impacte ambiental da produção, transporte e consumo dos diferentes produtos alimentares.”

Ou seja, o documento do CNADS alertava que para além das mudanças climáticas poderem alterar a produção alimentar, o padrão alimentar atual poderia também ser um forte indutor na mudança climática. Mas à data ainda necessitávamos de mais informação para poder confirmar este novo paradigma e, neste aspeto, as equipas conduzidas pelo Prof. João Lavinha, coordenador do GTAS, eram habitualmente muito cautelosas e evidence-based. Informação que, entretanto, se foi acumulando a nível nacional e internacional. Para além desta informação sobre o impacto dos modelos de consumo alimentar sobre os ecossistemas, onde o consumo de carne de vaca é paradigmático (as emissões de metano com origem no gado criado para consumo da sua carne aumentaram 48% em Portugal entre 1990 e 2017) acumulou-se também informação sobre a relação entre a mudança climática e as populações que serão mais afetadas, tanto no acesso ao alimento como nas suas condições de vida.

Ou seja, a população em piores condições económicas, onde a insegurança alimentar é mais prevalente e onde a probabilidade de ocorrer malnutrição é maior será também a mais afetada pelas alterações climáticas, podendo ocorrer um início de um círculo vicioso sem retorno para biliões de seres humanos.

Esta questão, da prevalência da insegurança alimentar determinada pelas condições sociais e económicas da população nacional, já tinha sido descrita, aquando da crise económica nos anos de 2011-2014. Nesta altura, detetou-se que os grupos da população nacional onde os níveis de insegurança alimentar eram maiores, eram também, em alguns casos, os grupos da população com maior proporção de excesso de peso.

Se estas populações forem também as mais afetadas pelas alterações climáticas, a situação em Portugal irá replicar o que já se observa em outras regiões. Ou seja, os fatores sociais e económicos poderão agravar a sinergia pandémica já existente entre malnutrição e alterações climáticas.

O conceito de Sindemia aplicado à esfera da nutrição

Tendo estas premissas por base, foi publicado em janeiro de 2019 pela Lancet Commission on Obesity liderada pelo Professor Swinburn o relatório “The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition and Climate Change”, que introduz o conceito de Sindemia Global.

A palavra Sindemia ou “epidemia sinérgica” foi utilizada pela primeira vez no contexto deste relatório, para tentar explicar a sinergia existente entre as epidemias da malnutrição (obesidade e desnutrição) e as alterações climáticas. Dois problemas à escala global, de natureza complexa, com causas e determinantes sociais comuns e com consequências para a saúde humana e do planeta. Quer a origem, quer as dificuldades sentidas para travar o progresso destas diferentes pandemias têm causas comuns.

Mas o conceito de sindemia já tinha sido utilizado por outros autores no contexto da saúde pública. Este conceito foi proposto por diversos antropólogos da área da medicina e em particular por investigadores do CDC e, mais tarde, muito bem descrito no texto inaugural de Merrill Singer e Scott Clair, em 2008, intitulado “Syndemics and Public Health: Reconceptualizing Disease in Bio-Social Context”.

A novidade deste conceito em saúde pública foi trazer para a discussão não apenas as variáveis temporais ou a co-ocorrência de duas ou mais doenças ou problemas de saúde, mas também a influência do contexto social e seus determinantes na expressão das doenças. No caso presente, e nesta nova interpretação, os peritos da Lancet adaptam o conceito utilizado maioritariamente para definir sinergias na área das doenças infeciosas, aplicando-o à interação reciproca entre problemas pandémicos à escala global, como é o caso da obesidade, da desnutrição e das alterações climáticas.

A esta interação acresce referir que estas epidemias apresentam consequências mútuas sobre a saúde humana e saúde do planeta com a complexidade acrescida dos fatores sociais poderem influenciar de forma intensa esta teia complexa de relações e consequências.

O que determina o aparecimento da Sindemia Global?

Refletindo sobre a origem desta Sindemia Global, pode apontar-se o atual modelo de sistema alimentar como um dos determinantes principais e comum às várias dimensões desta sindemia.

Os sistemas alimentares, devido à sua configuração atual, em que se promove a agricultura intensiva, a produção de proteína animal ou o transporte maciço de alimentos através dos sistemas rodoviários, acabam por favorecer a existência de alimentos processados com elevada densidade energética e de baixo valor nutricional a baixo custo que impulsionam as pandemias de obesidade e desnutrição, mas também geram de 25-30% das emissões de gases do efeito estufa (GEEs).

Se este modelo de produção, consumo e transporte alimentar acelera as mudanças climáticas, por sua vez, estas mudanças, a ocorreram, acabarão por aumentar o risco de desnutrição das populações mais vulneráveis e com menor capacidade de resiliência a eventos climáticos extremos como secas, cheias ou mudanças súbitas nos preços dos produtos alimentares básicos.

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Fonte: A Sindemia Global da Obesidade, Desnutrição e Mudanças Climáticas – relatório da Comissão The Lancet

Para os autores deste relatório, existem também fatores comuns que têm contribuído para um ação pouco efetiva para solucionar estes problema. Não há nenhum país no mundo que tenha consigo combater eficazmente o problema da obesidade.

A “inércia política” ou a falta de liderança e governança política para implementar medidas efetivas nesta área, a baixa pressão da sociedade civil para que politicamente se tomem medidas e ainda as fortes oposições às medidas políticas motivadas por interesses económicos, são fatores que justificam um combate pouco efetivo a esta Sindemia Global.

O que podemos fazer?

Ao dar visibilidade ao problema através da sua classificação e da criação deste novo conceito pretende-se contribuir para uma abordagem diferente e reforçada do mesmo. Uma abordagem que considere a necessidade de mudanças estruturais nos sistemas alimentares e a implementação de ações que sejam capazes de proporcionar benefícios mútuos para pelo menos duas das dimensões da Sindemia Global (double ou triple-win actions).

Isto significa que se podem e devem articular medidas para combater estas três pandemias, ao mesmo tempo, combater a malnutrição (obesidade e desnutrição), proteger o meio ambiente e não contribuir para as desigualdades sociais. Ou seja, contribuindo para uma ideia de proteção ambiental que não aumente ainda mais a exclusão dos mais pobres, se estas práticas alimentares forem mais caras, de difícil acesso ou se exigirem elevada literacia. Sem sermos exaustivos e a título de exemplo, identificamos algumas possíveis boas práticas neste domínio:

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Apresentando este novo conceito, é tempo de refletir sobre ele e, mais importante, agir.

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Sindemia é uma sinergia de pandemias que coexistem no tempo e no espaço, interagem entre si e compartilham fatores sociais fundamentais comuns.

Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website
Maria João Gregório 1
Maria João Gregório
Nutricionista, Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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