Passei a dar atenção ao que escreve a Patrícia Mourão de Andrade por causa de uma crítica luminosa que fez ao filme “Bacurau” de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. O filme (que vale muito a pena ver) também se poderia chamar “O sertão é quando menos se espera” ganha uma nova perspetiva sob o olhar perspicaz da jornalista. Essa é uma das funções daqueles que nos ajudam a observar a realidade das coisas com outras olhos. Recentemente, uma frase dela fez-me querer escrever esta pequena reflexão de final de ano. Em tempos de pandemia e “Durante um tempo longo só conseguia ler” escreveu ela. E continuou “Isso teve que ver com um excesso de consumo de imagem, porque a gente viveu uma síndroma maníaca de consumo de imagens, de produção de imagens. Talvez estivéssemos só numa espécie de vómito não processado”.
Neste final de 2020, parece-me que a hipérbole bem se pode aplicar à nossa profissão. Foi um ano em que aceleramos o consumo maníaco de imagem e a sua produção nas nossa redes sociais. Foi um ano em que aumentamos a nossa presença nos meios digitais, cada vez com imagens mais apelativas, mas, ao mesmo tempo, cada vez com conteúdo científico mais frágil. As coisas mais longas, difíceis de ler, de produção maturada, mais originais, parece que tiveram menos espaço e menos atenção. As ideias repetidas, refeitas e replicadas a partir de um qualquer pensamento original multiplicaram-se. O que mais encontrei foi pensamento nutricional light. A necessidade de comunicar rápido, de responder rápido, de estar em várias plataformas digitais quase ao mesmo tempo (que passou a ser possível) incentivaram a utilização destas tecnologias de “remediação digital” onde o que é importante é estar. Tal como escreve João Pedro Cachopo no seu magnífico “A Torção dos Sentidos: Pandemia e Remediação Digital” – Cabe não esquecer que os novos media, que permitem o convívio à distância, as aulas à distância, os concertos à distância visam também, em última análise, uma aproximação. Contêm, por outras palavras, uma «promessa de proximidade» ou como descreve mais à frente “…uma experiência remediada”. Este modelo já não era novo. A pandemia apenas o acelerou.
Este modelo de comunicação parece funcionar bem para um público consumidor de informação que não percebe o complexo ou não se esforça por tentar compreender o complexo. Para lidar com esta dificuldade de compreensão e com este público mais difícil criaram-se peças informativas cada vez mais infantilizadas que correm o risco de infantilizar quem as escreve. Em paralelo, cresceu o público que utiliza as redes sociais apenas para confirmar o que quer ouvir, também sem vontade de compreender ou questionar o mais complexo e a forma como se faz ciência.
No final de cada boutade alimentar/nutricional podemos sempre afirmar, “é necessário informar para aumentar a literacia”. Valeria a pena refletir sobre o facto de literacia ser sinónimo de capacidade. Ou seja, capacitar não é bem a mesma coisa que informar ou transmitir informação, mesmo que simplificada, através dos diferentes meios de comunicação. Esta confusão está bem presente no debate que iniciamos no Pensar Nutrição sobre a rotulagem nutricional simplificada, uma estratégia de comunicação, importante para facilitar a escolha do consumidor, particularmente o mais iletrado, mas não necessariamente capaz de gerar cidadãos mais autónomos, envolvidos e reflexivos sobre a sua própria alimentação.
Mas se a estratégia de divulgação de ciência é uma e se a capacitação para fazer escolhas alimentares saudáveis pode ser outra, sendo que ambas se entrecruzam por vezes (o que é natural acontecer) já é menos natural que a simplificação do discurso científico passe a ser norma na comunicação dos profissionais de nutrição. Ou pelo menos, que se comece a simplificar antes de se perceber o quanto complexo algo pode ser, invertendo uma máxima salutarmente estabelecida de que só tem direito a tentar simplificar quem já percebeu o complexo e nele navegou. Ora para se perceber o complexo, tem de investir na sua descodificação e neste processo investir tempo, ler bastante e atualizar muita informação científica de forma regular, o que parece ser pouco compatível com a capacidade de se falar sobre tudo, de forma simplificada e recorrente, procurando os pontos sensíveis do debate mediático. Como se a informação mais preciosa decorresse de uma identificação permanente do que é tendência nas redes sociais e não de uma necessária curiosidade científica.
Esta necessidade é ainda maior em tempos de muitas perguntas e poucas respostas que decorrem da atual pandemia. A aceleração pela procura de informação e a ansiedade generalizada cria o ambiente propício para confundir respostas rápidas com respostas simples. Os tempos de instabilidade que aí vêm necessitam do protagonismo científico dos nutricionistas. Temas como as alterações climáticas e a produção alimentar, as desigualdades crescentes decorrentes do acesso à cultura digital e a generalização do teletrabalho que irão trazer vagas sucessivas de insegurança alimentar a grandes franjas da população, ou ainda, a fusão das doenças infeciosas com as doenças crónicas como se viu na COVID-19 necessitam da participação plena e debate aprofundado dos profissionais de nutrição. E muita discussão técnica.
O caso recente da COVID-19 é um bom exemplo. Uma doença infeciosa que afetou mais gravemente obesos, hipertensos e diabéticos, doenças crónicas onde o papel dos nutricionistas é essencial, e onde a redução dos processos inflamatórios que podem ser induzidos pela terapia alimentar, deveria ter sido amplamente discutida e implementada em todos os níveis de cuidados de saúde e que, contudo, quase não teve discussão técnica entre nós, embora com raras e honrosas exceções.
Nestes tempos de nutrição simplificada, vale a pena não perder de vista a escrita complexa e a leitura densa de certos textos científicos que nos deixam mais dúvidas que certezas. Textos que avançam muito pouco nas suas conclusões e que não arrimam as grandes e fáceis conclusões que sempre acompanham os discursos simplistas. Talvez seja mesmo esse o meu desejo para 2021. Ter a esperança de que muitos de nós, que escolheram esta profissão possam ler mais, ler mais complexo, ter mais receio ao escrever e, mais ainda, tenham mais parcimónia ao utilizar excessiva e exclusivamente a imagem para comunicar o pensamento nutricional.
O trabalho do nutricionista situa-nos na matriz mais funda da humanidade e no pulsar básico de qualquer ser vivo – a necessidade de se alimentar. Mas também na perceção aguda do arranjo das sociedades face a esta dependência e fragilidade perante a natureza produtora de alimentos. Estas situações obrigam-nos a interpretar a ciência, mas também a escutar o mundo e a respeitar o outro e as suas crenças perante os alimentos. Desta cumplicidade entre a biologia e uma sociedade que se organizou em torno da mesa, nasce esta maravilhosa profissão que necessita de ser, cada vez mais, protegida em tempos de hipercomunicação e superficialidade científica.
P.S Os votos de um bom Ano Novo estendem-se particularmente a todos os estudantes e nutricionistas que contactam pela primeira vez o mundo do trabalho nestes tempos de pandemia e a todos os estudantes e colegas brasileiros que neste ano difícil cruzaram o oceano em busca de mais tranquilidade, formação e oportunidades profissionais. A todos desejamos as maiores felicidades e a concretização dos vossos sonhos ao longo de 2021.
Escrito por
Pedro Graça Diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto