Uma reflexão sobre o consumo de carne de vaca nas cantinas universitárias

A Universidade de Coimbra, através da sua equipa Reitoral, decidiu eliminar a carne de vaca da ementa semanal das refeições servidas na instituição. Presumimos que mantendo tudo o resto, ou seja, servindo peixe, ovos, carne de frango, peru, porco, mais as opções de prato de vegetariano e dieta. Ementas variadas e até com alguma qualidade, que há anos têm feito da Universidade de Coimbra uma instituição considerada acima da média na oferta alimentar universitária, tanto pela qualidade como pela inovação, embora não existam ainda estudos comparativos nesta área. Por exemplo, os serviços de ação social da Universidade de Coimbra apresentam serviços com take-away e até zonas próprias de restauração com pizzas e pastas, seguindo os sabores mediterrânicos. Neste modelo de diversidade que a Universidade de Coimbra oferece, a carne de vaca já parece ter pouco espaço nas ementas atuais. Analisadas as ementas das cantinas dos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra do mês de setembro de 2019, em 60 refeições (refeições do almoço e jantar) a carne de vaca já só aparece 6 vezes. Se a carne de vaca não estivesse de todo presente nestes menus, mantendo-se o equilíbrio e a diversidade das refeições, em nada se afetaria a saúde dos seus utentes adultos. E se a carne de vaca estivesse presente ocasionalmente, como estava atualmente (presente em cerca de 10% do total de refeições servidas no período de um mês), a situação mantinha-se provavelmente idêntica. Infelizmente, a situação do consumo de carne a nível nacional não é igual a estas refeições planificadas da restauração pública, como veremos à frente.

Esta medida não é uma novidade. Outras grandes universidades no mundo inteiro estão a seguir este caminho. Uma medida semelhante, já tinha sido implementada em 2016 pela Universidade de Cambridge, tendo os resultados do impacto desta medida sido publicados no início deste mês de setembro. Estes resultados, disponíveis no relatório Our Sustainable Food Journey, mostram que, em resultado desta medida, as emissões de dióxido de carbono sofreram uma diminuição de 10,5% entre 2015 e 2018, apesar de se ter verificado um aumento do volume de refeições produzidas. Verificou-se uma diminuição das emissões de dióxido de carbono em 33% por cada kg de alimentos adquiridos e uma redução de 28% na utilização do solo também por cada kg de alimentos adquiridos. A eliminação da carne vermelha é um das medidas da Cambridge’s Sustainable Food Policy, que por sua vez é parte integrante de uma estratégia global da Universidade de Cambridge para a sustentabilidade – Environmental Sustainability Vision, Policy and Strategy.

Carne: valor nutricional e recomendações de consumo

A carne de vaca é um alimento de uma grande riqueza nutricional cuja composição nutricional é muito semelhante a outros alimentos de origem animal incluídos no mesmo grupo da “Roda dos Alimentos”, o guia alimentar de referência para a população Portuguesa. Dentro deste grupo onde se inclui a carne, pescado e ovos, temos diversas opções de alimentos que são bons fornecedores de proteína, ferro, zinco e vitamina B12, alguns dos nutrientes que se pretende obter através do consumo de alimentos deste grupo alimentar.

A Roda dos Alimentos Portuguesa não apresenta recomendações específicas para o consumo de carne vermelha, encontrando-se este alimento integrado no grupo da “Carne, pescado e ovos”. Estes alimentos encontram-se agrupados no mesmo grupo porque têm uma composição nutricional semelhante podendo ser substituídos entre si numa alimentação equilibrada e variada, como se pode observar na imagem comparativa em baixo.

Pensar nutrição valor nutricional carne

Apesar de não existirem recomendações nacionais específicas para o consumo de carne vermelha, organizações a nível internacional têm emitido orientações neste sentido, como por exemplo o IARC (International Agency for Research on Cancer) e a evidência científica atual também nos permite fazer algumas considerações. Mas especificamente sobre o consumo de carne vermelha, falaremos já de seguida.

Consumo excessivo de carne vermelha e a saúde individual e do planeta

Do ponto de vista da saúde, a evidência científica diz-nos que o consumo elevado de carne vermelha pode estar associado a diversos outcomes em saúde negativos, nomeadamente a um risco aumentado de doenças cardiovasculares, diabetes mellitus tipo 2 e cancro do colon. Muito recentemente, mais um estudo publicado na revista BMJ (junho 2019) sugere também que o aumento do consumo de carne vermelha está associado a um aumento do risco de mortalidade (aumento do consumo de carne vermelha em apenas ½ porção por dia está associado a um risco mais elevado de mortalidade em 10%).

Contudo, vale a pena salientar que o nível de evidência para a associação entre o consumo de carnes vermelhas e de doenças cardiovasculares é fraco, sendo que a evidência crescente aponta para um efeito neutro dos ácidos gordos saturados na saúde cardiovascular.

No caso da patologia oncológica, a evidência acumulada relativa à associação entre o consumo de carne vermelha e o risco de cancro, levou o IARC (International Agency for Research on Cancer) em 2015 a classificar o consumo de carne vermelha como carcinogénico (Grupo 2A). Esta decisão é sustentada pela associação entre o consumo de 100 g de carne vermelha e o risco aumentado do cancro do colon (em 17%).

Dariush Mozaffarian, no seu excelente artigo Dietary and Policy Priorities for Cardiovascular Disease, Diabetes, and Obesity – A comprehensive Review, publicado em 2016 na revista Circulation, apresenta orientações de consumo alimentar à luz da evidência científica mais atual e com o objetivo de melhorar a na saúde cardiometabólica, sugere que a frequência de consumo de carne vermelha não deve ser superior a 1 a 2 porções por semana (1 porção equivale a 100 g).

Para a saúde do planeta, as recomendações para o consumo de carne vermelha, em particular para o consumo de carne de animais ruminantes, são ainda inferiores. De acordo com o relatório da EAT-Lancet, a ingestão diária de carne vermelha não deveria ultrapassar os 28 g por dia (idealmente 14 g dia). Em média, os portugueses (adultos) apresentam uma ingestão diária de 97,3 g. Estas orientações presentes neste relatório foram suportadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). As orientações para o consumo de carne vermelha presentes no artigo “Food in the Anthropocene: the EAT-Lancet Commission on healthy diets from sustainable food systems” têm por base a evidência científica que sugere que o consumo de carne vermelha não é essencial e a evidência que mostra a existência de uma relação linear entre o seu consumo e a mortalidade total, bem com a relação entre o seu consumo e outros riscos para a saúde que se têm verificado em populações que consomem regularmente carne vermelha. Os autores sugerem que esta recomendação poderia ser mesmo de 0 g por dia, desde que o seu consumo fosse adequadamente substituído por outras fontes de proteína animal ou vegetal. Contudo, considerando que a evidência científica ainda é inconsistente quanto aos riscos associados ao consumo de pequenas quantidades de carne vermelha, a EAT-Lancet Commission, conclui que uma alimentação saudável pode contemplar o consumo de até 28 g por dia de carne vermelha.

Quanto ao impacto ambiental associado ao consumo de carne vermelha, não nos atrevemos a dizer muito sobre o assunto. A FAO atribuiu 14,5% de todas as emissões de gases com efeito de estufa induzidos pelo homem ao setor agro-pecuário. E a redução do consumo de carne, em particular de animais ruminantes, tem sido identificada com a principal alteração do consumo alimentar para reduzir os gases com efeito de estufa. No caso da carne de vaca, a sua produção (valores médios e que podem variar consoante o regime intensivo ou extensivo de exploração, transporte e processamento) é a que mais consome água e energia, por comparação aos outros alimentos incluídos na categoria da Roda dos Alimentos (Grupo da Carne, Pescado e Ovos). Estima-se que para produzir um kg de carne de vaca sejam necessários 15 415 litros de água, bastante mais do que para mesma quantidade de carne de porco (5988 litros) ou frango (4325 litros) (Institution of Mechanical Engineers, 2018).

Os consumidores portugueses ultrapassam o consumo recomendado de carne

O Inquérito Alimentar Nacional (2015-2016) mostra-nos que 25,5% dos adultos portugueses apresentam um consumo diário de carne vermelha superior a 100 g, sendo este valor consideravelmente superior para os indivíduos do sexo masculino. Cerca de 47% dos homens portugueses apresentam uma prevalência de consumo diário de carne vermelha (carne de vaca, vitela, cabrito, borrego, carneiro, porco, javali, cavalo, cabra) superior a 100 g. Mas não é apenas para a carne vermelha que os portugueses se afastam dos valores recomendados. Comparando os hábitos de consumo alimentar dos portugueses, obtidos através do último Inquérito Alimentar Nacional, com as recomendações da Roda dos Alimentos Portuguesa, o guia alimentar para a população portuguesa, é possível perceber que os portugueses estão a consumir alimentos do grupo “Carne, pescado e ovos” consideravelmente superiores aos valores recomendados.

De acordo com as recomendações do guia alimentar para a população portuguesa, o consumo diário de carne, pescado e ovos não devia ser superior a 113 g e os portugueses consomem em média cerca 174,3 g, sendo este valor superior para os indivíduos do sexo masculino (215,0 g vs 140,4 g nas mulheres). Os resultados deste inquérito, mostram também que o consumo de carnes vermelhas é superior ao de carnes brancas (51,6 vs 42,9g), bem como o consumo de carne por comparação ao pescado (116,6 vs 41,8g). Os dados de consumo alimentar aqui apresentados mostram que os portugueses necessitam de reduzir o consumo de carne vermelha e também o consumo global de alimentos do grupo da carne, pescado e ovos.

Estes dados mostram-nos que estamos muito longe de atingir as metas propostas pela EAT-Lancet Commission. O nosso colega e docente da FCNAUP, Professor Duarte Torres, numa entrevista ao Jornal Público em março deste ano (2019) explica que alterações são necessárias na alimentação dos portugueses para reduzir a pegada ecológica. Se considerarmos as metas definidas pelo relatório da EAT-Lancet, a ingestão diária de carne vermelha não deveria ultrapassar os 28 g por dia (idealmente 14 g dia). “Isto significa passar de um consumo de carne vermelha a um ritmo diário para uma ou no máximo, duas refeições por semana”. Recomendações que se encontram totalmente alinhadas com as orientações já sugeridas por Dariush Mozaffarian, no seu artigo Dietary and Policy Priorities for Cardiovascular Disease, Diabetes, and Obesity – A comprehensive Review, publicado em 2016 na revista Circulation.

Mas estes números são de facto difíceis de atingir porque implicam uma alteração muito profunda nos hábitos de consumo mais recentes da maioria dos portugueses, onde a carne está presente diariamente. E onde ainda existe pouco conhecimento e competências culinárias, tanto a nível doméstico como a nível da restauração coletiva, para substituir adequadamente uma alimentação de base animal para uma alimentação de base vegetal (como era a nossa dieta mediterrânica).

Assim, a proibição numa universidade (que já a oferecia pouca carne de vaca) é simbólica. E pode até ser vista como populista e a mais fácil de tomar quando outras medidas nas instituições públicas deveriam existir e até já estar implementadas para a melhoria da qualidade nutricional e ambiental como a obrigatoriedade de comprar mais produtos alimentares produzidos localmente, em modo de produção biológica ou sazonais. Ou a restrição à comida de má qualidade nas máquinas de venda automática ou ainda a presença obrigatória de bebedouros nas instituições públicas de ensino. Mas não é isso que a universidade deveria ser? Um espaço simbólico, um espaço que inspira para a proteção do planeta e rompe com os atavismos da sociedade? Ou deveria ser antes um espaço de ponderação e sabedoria que se afaste das medidas fáceis? Uma discussão com muitos lados que exige pensamento e ação.

A Universidade é acima de tudo um espaço que serve para refletir, tal como o “Pensar Nutrição”. Ao menos que o gesto do Reitor da Universidade de Coimbra tenha servido para isto e para estarmos hoje aqui a falar deste importante tema que será a grande discussão de futuro, mesmo na área da alimentação, onde as questões ambientais irão influenciar cada vez mais as ações individuais e coletivas na escolha e consumo alimentar. A escolha alimentar de cada um não afetará apenas a saúde individual de quem toma determinadas opções. As ações individuais têm repercussão sobre os outros seres vivos. No presente e no futuro. Portanto, são passíveis de ser reguladas e legisladas pelos Estados. Matéria importante para todos os profissionais da nutrição e para a sociedade.

Por fim, e em jeito de conclusão alimentar e nutricional, alguns padrões alimentares nutricionalmente adequados, respeitando a diversidade alimentar e incluindo uma pequena quantidade de carne (incluindo as carnes vermelhas) ao longo da semana permitem a compatibilidade entre adequação nutricional, preservação do meio ambiente, acessibilidade e aceitabilidade cultural, dimensões críticas para um padrão alimentar sustentável.

Notas finais:
1. Porque muitos dos artigos de opinião que têm sido publicados sobre este assunto têm sido imprecisos quando abordam o possível impacto desta medida para a saúde, o nosso texto faz uma análise mais aprofundada desta medida na perspetiva do seu impacto para a saúde, não fazendo uma reflexão tão exaustiva ao seu impacto ambiental.

2. A opinião aqui expressa não reflete a opinião das instituições onde os autores desenvolvem o seu trabalho.

Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website
Maria João Gregório 1
Maria João Gregório
Nutricionista, Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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