COVID-19 e Segurança Alimentar

A COVID-19 é uma doença infeciosa aguda do trato respiratório (podendo ser grave), causada por um novo tipo de coronavírus designado de SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2). Este é já o terceiro coronavírus altamente patogénico que nos últimos 20 anos foi capaz de atravessar a barreira das espécies e atingir a população humana, embora o seu hospedeiro intermediário seja ainda desconhecido. O surto causado por este coronavírus teve início na província de Wuhan na China, mas rapidamente se disseminou por um grande número de países, tendo levado à declaração de pandemia pela World Health Organization (WHO) em 11 de março de 2020. Sendo uma preocupação global de saúde pública com impacto em todas as atividades, incluindo no setor alimentar, pretendeu-se fazer um levantamento dos conhecimentos existentes sobre o SARS-CoV-2 com potencial impacto no ambiente de preparação e distribuição alimentar, assim como de recomendações de higiene e segurança alimentar elaboradas por diversas entidades de referência no contexto da pandemia COVID-19.

Como se transmite a infeção por SARS-CoV-2?

Apesar do conhecimento sobre a origem e as vias de transmissão deste novo coronavírus ser ainda limitado, a disseminação rápida e eficiente da COVID-19 deve-se ao facto do SARS-CoV-2 ter uma elevada capacidade de infetar o homem (invasão de células do trato respiratório) e de transmissão pessoa-a-pessoa. A principal via de transmissão é através da inalação de gotículas respiratórias que as pessoas infetadas emitem quando espirram, tossem ou falam (via direta). Adicionalmente, essas gotículas contendo o SARS-CoV-2 podem infetar outra pessoa através do contacto das mãos com superfícies e objetos (de toque frequente) contaminados com partículas víricas e depois com a boca, nariz ou olhos (via indireta). Quanto à transmissão por via alimentar, as autoridades de saúde como a European Food Safety Authority (EFSA) e a WHO consideram que é altamente improvável que um vírus que causa doença respiratória se possa transmitir através da cadeia alimentar (alimentos e embalagens), sendo que até à data não existe evidência de infeção através do consumo de alimentos (crus ou cozinhados), à semelhança dos coronavírus associados a surtos anteriores (SARS-CoV e MERS-Cov (Middle East Respiratory Syndrome Coronavirus)). As diferenças nas caraterísticas epidemiológicas desta pandemia relacionam-se, provavelmente, com outros fatores, tais como a elevada carga viral presente no trato respiratório superior e o potencial de pessoas infetadas com SARS-CoV-2 transmitirem o vírus enquanto estão assintomáticas. Embora tenha sido detetada a presença de SARS-CoV-2 (RNA) em amostras de fezes de pacientes infetados não há (ainda) evidências de transmissão pela via fecal-oral. Assim, não existindo vacina nem terapêutica específica para esta infeção, é imperativo que sejam reforçadas as medidas de prevenção da transmissão do vírus, incluindo higiene pessoal e os princípios de higiene alimentar para se eliminar ou reduzir o risco de contaminação de superfícies/objetos da área alimentar, mãos e materiais de embalagem de alimentos.

O que sabemos sobre os coronavírus relevante para o setor alimentar?

Os coronavírus (CoVs) pertencem a uma família de vírus que causa doenças respiratórias em humanos, desde a constipação comum a doenças mais raras e graves, como a SARS e a MERS (ambas com elevadas taxas de mortalidade, detetadas pela primeira vez em 2003 e 2012, respetivamente). Tal como os outros vírus, também os coronavírus não se multiplicam nos alimentos, uma vez que necessitam de infetar células do hospedeiro animal ou humano (parasitas intracelulares obrigatórios). Os coronavírus são vírus RNA (de cadeia simples) com nucleocápside de forma helicoidal, a qual se encontra revestida por um invólucro (constituído por uma bicamada lipídica derivada de sistemas membranares intracitoplasmáticos das células do hospedeiro). A presença de invólucro torna-os sensíveis a agentes que dissolvem “gordura”, tais como os detergentes para lavagem da louça, sabões para lavagem de mãos e álcoois. No entanto, a estabilidade dos coronavírus no ambiente depende de vários fatores, tais como temperatura, humidade do ar e tipo de superfície, para além da quantidade de vírus e da estirpe, sendo que o tempo de sobrevivência e as condições que afetam a viabilidade de SARS-CoV-2 são ainda desconhecidas. De acordo com estudos que avaliaram a estabilidade ambiental de coronavírus verificou-se que podem sobreviver vários dias no ambiente e em diferentes superfícies. Um trabalho de revisão, publicado já durante a pandemia, sobre a sobrevivência dos coronavírus já conhecidos (SARS-CoV e MERS-CoV) em superfícies inertes mostrou, por exemplo, que os vírus podem persistir em metal, vidro ou plástico (e permanecer infeciosos) à temperatura ambiente entre quatro e cinco dias em média (podendo chegar a nove dias). Mais recentemente, foram publicados os primeiros resultados relativos ao SARS-CoV-2 que mostraram que o vírus pode permanecer viável por até 72 horas em plástico e aço inoxidável, até 24 horas em papelão e até quatro horas em superfícies de cobre. A interpretação destes dados deverá ser feita com cautela, uma vez que os vírus se tornam habitualmente não infeciosos após as primeiras 24 horas em superfícies e há poucas evidências de que as partículas víricas possam causar infeção por esta via. De qualquer modo, estes primeiros dados sobre a estabilidade do SARS-CoV-2 sugerem a possibilidade de disseminação destes vírus através do contacto com superfícies, reforçando a importância da higiene das mãos e da limpeza das superfícies/objeto.

Quanto aos efeitos dos agentes biocidas correntemente utilizados para desinfeção química (desinfetantes), o levantamento efetuado por Kampf et al (2020) mostrou que os coronavírus podem ser inativados através de procedimentos de desinfeção de superfícies com agentes à base de etanol (62-71%), peróxido de hidrogénio (0.5%) ou hipoclorito de sódio (0.1%), alertando para a importância da aplicação de concentrações apropriadas para a redução do número de partículas virícas. Os resultados com outros agentes biocidas testados, tais como cloreto de benzalcónio (0.05-0.2%) e digluconato de clorohexidina (0.02%), demonstraram eficácia, embora menor do que os biocidas referidos anteriormente. Os desinfetantes para mãos à base de álcool (formulações de 80% etanol e 75% 2-propanol recomendadas pela WHO) foram também recentemente testados contra o SARS-CoV-2, tendo sido demonstrada a sua capacidade de inativação do vírus, tal como já conhecido para os outros coronavírus.

Assim, nas unidades de produção e distribuição de alimentos a WHO recomenda que as boas práticas de higiene e segurança alimentar se mantenham, devendo ser assegurados procedimentos regulares e corretos de limpeza e desinfeção de superfícies (instalações, equipamentos, e pontos de toque frequente, como balcões, bancadas, pinças e outros utensílios e manípulos de portas), bem como lavagem adequada das mãos (água e sabão normal por pelo menos 20 segundos; os desinfetantes para mãos podem ser usados como uma medida adicional, mas não devem substituir a lavagem das mãos) combinada com o uso frequente de desinfetantes à base de álcool (as luvas descartáveis não devem ser usadas como substituto da lavagem das mãos). Na desinfeção de superfícies pequenas da área alimentar são recomendados os desinfetantes à base de álcool (etanol, 2-propanol, 1-propanol) em concentrações de 70 a 80%, uma vez que reduzem significativamente a infecciosidade de vírus com invólucro como o SARS-CoV-2. Outros desinfetantes correntemente utilizados com ingredientes ativos à base de compostos de amónio quaternário ou de cloro (ex. hipoclorito de sódio a 0,1%-diluição de 1:50 da lixivia corrente a 5%) também apresentam propriedades virucidas (se preparados de acordo com as instruções do fabricante), sendo recomendados, tal como para os setores da saúde e outros locais . No website da U.S. Department of Agriculture (USDA) está disponível uma lista de desinfetantes que cumprem os critérios da EPA (Environmental Protection Agency) para uso contra SARS-CoV-2. Outras orientações mais específicas para o setor profissional estão disponíveis nos websites da Direção Geral da Saúde (DGS – Orientação nº 014/2020 de 21/03/2020) e da Food and Drug Administration (FDA) .

Como prevenir a disseminação do SARS-CoV-2 na preparação e consumo de alimentos?

Atualmente, não há evidência de infeção no homem pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 poder ocorrer através do consumo de alimentos, do contacto com alimentos/embalagens ou talheres/louça contaminados, pelo que os alimentos não são considerados uma fonte ou via de transmissão deste vírus (EFSA, BfR, USDA). De facto, a experiência dos surtos anteriores causados por outros coronavírus, SARS-CoV e MERS-CoV, mostrou que não ocorreu transmissão através do consumo de alimentos. De acordo com o conhecimento atual, também não há evidências de que o gado utilizado para a produção de carne possa ser infetado com SARS-CoV-2, pelo que a transmissão do vírus ao homem por esta via é pouco provável (BfR). No entanto, algumas entidades nacionais como a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) e a DGS, aplicando o princípio da precaução, sugerem o reforço das medidas de higiene e limpeza durante a preparação, confeção e consumo de alimentos, uma vez que as boas práticas conduzem à redução do número de vírus e diminuem eficazmente a probabilidade de contaminação. Entre estas medidas destacam-se a lavagem correta das mãos e a higiene das superfícies inertes, a confeção dos alimentos (ex. carne e aves) a temperaturas adequadas (o vírus é sensível ao calor) e evitar eventos de contaminação cruzada entre alimentos crus e cozinhados, medidas enquadradas nas “Cinco Chaves para uma Alimentação Mais Segura” da WHO. Outras entidades internacionais têm publicado informações complementares que podem minimizar uma possível (não descrita) contaminação por contacto com a superfície de alimentos prontos-a-comer. No que concerne aos produtos de origem vegetal crus (normalmente expostos nos estabelecimentos de venda a retalho) recomendam que devem ser seguidas as regras gerais de higiene, que incluem lavagem dos frutos e hortícolas com água potável corrente antes do consumo (incluindo aqueles cuja casca não é consumida), lavagem frequente das mãos durante a sua manipulação e manter as mãos afastadas do rosto (Bfr, WHO, FDA). Relativamente à lavagem da louça/talheres, embora não existam dados específicos para o SARS-CoV-2, é muito provável que os detergentes (contendo agentes tenso-ativos que dissolvem a gordura) o inativem, particularmente se a louça for lavada e seca em máquina de lavar louça a 60ºC (BfR). Tal como outros vírus, é possível que o SARS-CoV-2 possa sobreviver em superfícies do ambiente de preparação alimentar, mas sendo um vírus com invólucro (sensível aos desinfetantes correntes), os procedimentos básicos de higiene aplicados para garantir a segurança dos alimentos devem ser suficientes para prevenir a sua disseminação. Recomenda-se a lavagem e higienização frequente das superfícies (ex. balcões da cozinha) utilizando os produtos desinfetantes disponíveis no mercado (seguindo as instruções do fabricante) ou preparados em casa (ex. a DGS recomenda 4 colheres de chá de lixivia corrente de aproximadamente 10ml para 1 litro de água). Outras recomendações adicionais aquando da aquisição dos bens alimentares em estabelecimentos de venda a retalho estão disponíveis.

Em resumo, não há evidência de que o coronavírus SARS-CoV-2 possa ser transmitido através dos alimentos, mas recomenda-se a manutenção e reforço das medidas de prevenção de higiene pessoal e de higiene do ambiente de preparação, distribuição e consumo, de modo a eliminar ou reduzir o risco de contaminação de superfícies/objetos inertes da área alimentar, mãos e materiais de embalagem de alimentos.

Escrito por

Patrícia Antunes 1
Patrícia Antunes
Nutricionista. Professora Auxiliar na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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