Este ano que agora começa vai parecendo, cada vez mais, aquele 2 de março de 2020, o dia em que os primeiros casos de SARS – Cov-2 foram reportados em Portugal. De início, foi um receio indefinido que se instalou, até que tombou sobre nós a incerteza sobre o futuro e o medo do outro contaminou o nosso quotidiano. Agora, passados quase cinco anos, estamos a observar, de novo, a instalação do medo. O medo do outro que nos é estranho, o medo da guerra, do clima cada vez mais incerto e o descrédito na ciência e nas instituições que produzem ciência.

Para quem produz ciência, para quem ensina e faz pedagogia, estes são tempos de enormes desafios. Tempos em que a academia é, cada vez mais, obrigada a lutar pela sua idoneidade e pela sua independência face aos poderes que tentam manipular os factos que produz. Mas a contestação da ciência e das instituições científicas ou a manipulação dos factos produzidos pela academia não é uma situação nova na nossa história ou totalmente surpreendente. Inclusive na área alimentar, que sempre foi um espaço de disputa económica, social, política e até religiosa. Ao longo dos séculos aconteceu várias vezes. O que agora surpreende é a escala desta tentativa e os novos meios à disposição de quem tenta manipular. Mas do outro lado, espera-se agora uma academia mais preparada para compreender a impossibilidade da neutralidade e o seu papel na sociedade. Porque percebe que isenta de valores humanistas, será cada vez mais uma ferramenta ao serviço dos déspotas. Esta é uma discussão urgente a fazer na nossa universidade e nos dias que correm.

A contestação à ciência em tempos de incerteza

O papel da ciência na avaliação dos “perigos” e na sua gestão passou gradualmente por diversas fases ao longo da história, onde o conhecimento científico e a sociedade que com eles convive, se interrelacionaram, influenciando-se mutuamente. À medida que se afasta a ideia de que a origem e superação dos “perigos” é de ordem teológica, as sociedades industriais, tentaram conter os perigos, através da sua compreensão e posterior gestão recorrendo a diversos formatos. Estes formatos, apesar de incorporarem, à medida que os anos foram passando, uma base científica cada vez mais consistente e específica, nunca deixaram de ser fortemente influenciados pela matriz social, económica e política da época e local onde se inseriam.

Nos princípios do séc. XIX, o aumento da prevalência de doenças infeciosas como a tuberculose, cólera e tifo em Inglaterra produziu não só um aumento da ansiedade como uma desconfiança na expansão do Império Britânico e no processo de Industrialização. A cólera parecia estar relacionada com a chegada cada vez mais frequente de pessoas provenientes da Índia e o tifo com as más condições de saneamento e de sobrelotação humana no espaço urbano. Surge na altura o Movimento da Reforma Sanitária e a doutrina anti contagiosa que estava na sua base. Esta teoria argumentava que aquelas doenças eram causadas, não por quaisquer microrganismos ou outros mecanismos então desconhecidos, mas pelo lixo e seus vapores provocados pelas grandes concentrações urbanas e mau saneamento, as quais provocariam um “miasma” ou uma “névoa de doença” que cobria as grandes concentrações urbanas. Edwin Chadwick em 1842 e Florence Nightingale em 1859 publicitaram estas ideias e a necessidade de uma ampla intervenção pública através de peritos para controlar o problema. Em 1842, Chadwick publica um extenso relatório, o “Report on the Condition of the Labouring Classes of Great Britain”, onde faz o mapeamento das zonas mais problemáticas e dos diferentes níveis de exposição ao lixo e seus vapores. Apresentou ainda soluções que passaram pela alteração das infraestruturas sanitárias e pela criação de um “Ministério da Saúde” e de “Oficiais da Saúde” capazes de “detetarem com precisão e prevenirem com eficácia” focos de doença. As publicações destes dois autores, apesar de diversas incongruências e de difícil compreensão para o leigo, tiveram uma enorme repercussão em todo o país. Para a população ansiosa, definia-se claramente o âmbito do problema, tornando-o previsível e passível de controlo. Removendo-se essas condições, ou seja, encorajando as pessoas e as autoridades a terem mais cuidados com a “higiene” dos espaços públicos e privados resolvia-se o problema. Para as autoridades, não era posto em causa o crescimento industrial, a expansão urbana ou a livre circulação de pessoas e bens dentro do global Império Inglês, as quais poderiam ser afetadas caso voltassem a vigorar as “Leis da Quarentena” que vinham a ser utilizadas desde o Séc. XVII para prevenir casos aparentemente semelhantes.

Este processo de “contenção do perigo” onde as soluções propostas não impediam o crescimento económico nem a livre circulação, prefigurava já, ainda que de forma incipiente, o processo de análise do risco e algumas das tensões atualmente existentes em seu torno da sua avaliação e gestão por parte dos cientistas e decisores políticos a nível global.

Esta tensão, repetiu-se desde então em diversas partes do mundo antes do surto de COVID-19.

Na cidade do Porto, entre 4 e 6 de julho de 1899, o médico Ricardo Jorge, que era então Diretor do Posto de Saúde Municipal, identifica, através de análise laboratorial, várias pessoas infetadas por peste bubónica. A 12 de julho, sugere ao governador civil da cidade, o “internamento e isolamento de todos os contagiados e mais tarde sugere a “Imposição de um cordão sanitário em torno da cidade”. Como medidas de contenção desta doença contagiosa, Ricardo Jorge recomendou impedir as entradas e saídas do Porto e promoveu ações de fiscalização e de desinfeção em zonas portuárias, estações de caminho de ferro, tendo ainda encerrado casas de comércio e algumas fábricas. Face aos prejuízos económicos e financeiros que o cordão sanitário impôs à cidade, Ricardo Jorge viu apedrejar-lhe a carruagem nas suas visitas médicas, pelo que teve de ser escoltado pela polícia. Jornais como O Comércio do Porto e a Associação Comercial do Porto vão contestar estas medidas e denunciar uma estratégia de enfraquecimento da atividade económica do Porto a partir do poder central em Lisboa. E acrescenta o Jornal: “A saúde pública antes de tudo, sim; mas não é lícito à sombra da saúde pública desgraçar um país, aniquilar o seu comércio, reduzir à miséria os que têm na indústria o pão de cada dia”. Mais tarde, Ricardo Jorge será forçado a abandonar a cidade. No total serão infetadas 320 pessoas, tendo resultado 132 mortes. Saindo do Porto, Ricardo Jorge irá fazer uma reforma sanitária a nível nacional e fundar a Direção-Geral da Saúde. Entretanto, o cordão sanitário terminará em vésperas do Natal e a peste bubónica ficará contida, praticamente na cidade, mas nunca se conseguirá quantificar o papel do cerco sanitário neste resultado.

Recentemente, a 5 de fevereiro de 2025 a Argentina anunciou a saída da Organização Mundial da Saúde (OMS), tendo justificado em comunicado oficial a sua decisão desta forma “A OMS foi criada em 1948 para coordenar a resposta face a emergências sanitárias globais, mas falhou a sua maior prova de fogo: promoveu quarentemas internas sem base científica quando liderou o combate à COVID-19. As quarentenas provocaram uma das maiores catástrofes económicas da história mundial e de acordo com o estatuto de Roma de 1988, a estratégia das quarentenas pode catalogar-se como crime contra a humanidade. No nosso país, a OMS apoiou um governo que deixou as crianças fora da escola, centenas de milhares de trabalhadores sem rendimentos, levou à falência o comércio e as pequenas e médias empresas e ainda nos custou 130 000 vidas. Atualmente, as provas indicam que as receitas da OMS não funcionam porque são o resultado de influência política e não da ciência. Além disso, a OMS confirmou a sua inflexibilidade para mudar a sua abordagem e, longe de admitir os erros, opta por continuar a assumir competências que não lhe correspondem e a limitar a soberania dos países. É urgente que a comunidade internacional repense o porquê da existência de organismos supranacionais, financiados por todos nós, que não cumprem os objetivos para os quais foram criados, se envolvem em política internacional e procuram impor-se aos países membros.”

A contestação à ciência volta a subir de tom nestes dias. E a contestação a uma universidade que tenha um modelo de ensino baseado em valores democráticos plurais e que que favoreça a igualdade social segue o mesmo caminho. Quere-se uma escola neutra e descentrada da reflexão social. Como se a escola fosse apolítica e não estimulasse a reflexão sobre estas questões. E como se as nossas ações, mesmo as mais elementares como o ato alimentar, não fossem eminentemente políticas e afetassem globalmente outros seres humanos.

O ato alimentar como ato político

Na área da alimentação, o consumo de alimentos reflete uma determinada prática social. O ato de consumir define uma área de interações sociais tradicionalmente caracterizadas por atos de proteção (no caso das mães), pela ansiedade, por ex. e por uma cultura associada a valores simbólicos e à formação de gostos e saberes em relação com o meio ambiente. Sendo assim, é provável que as perceções face ao risco sejam fortemente influenciadas pela matriz social e cultural das sociedades onde os consumidores estão envolvidos.

As nossas sociedades têm vindo a ser caracterizadas recentemente como cada vez mais complexas e incertas, com impactos significativos no grau de confiança dos consumidores nos alimentos e nas instituições relacionadas. Nos finais dos anos 80, surgiu o conceito de Sociedade de Risco. Para o seu principal teórico, Ulrich Beck, as sociedades ocidentais atuais, teriam deixado progressivamente de ter como preocupação central, a luta contra a carência (alimentar, entre outras necessidades básicas), subtraindo ao processo de modernização a sua anterior base de legitimação: a luta contra a carência evidente, pela qual se estava disposto a aceitar alguns dos seus efeitos secundários. Segundo o autor, a atual sociedade é caracterizada por novos riscos. Estes riscos não são visíveis na maior parte das vezes, sendo estabelecidos pelo saber, que os pode dramatizar ou minimizar, e são sensíveis a processos sociais de definição, onde quem define o risco, se converte num ator sociopolítico fulcral. Este tipo de risco afeta também quem os produz e quem beneficia deles, sendo em muitos casos riscos globais, produzindo novos tipos de desigualdades, onde o conhecimento adquire um novo significado político. O facto de estes riscos terem cada vez menos fronteiras, e a opinião pública poder não estar disposta a aceitá-los, faz com que aumente a intromissão pública e política na esfera da autonomia das empresas e até dos países. Para Beck, a definição dos novos riscos (quem os define e como se definem) necessita dos “órgãos perceptivos” da ciência (teorias, experimentação, instrumentos de medição) para os tornar visíveis e os interpretar como perigos. A ciência e suas instituições são não só responsáveis pela deteção dos perigos, mas também pela sua valorização e hierarquização. Perdida parte da “soberania cognitiva” para detetar os perigos, a consciência quotidiana do risco é assim, uma consciência teórica e, portanto, “cientifizada”. Para além de Beck, outros autores como Giddens ou Sulkunen exploraram esta incerteza presente nas sociedades modernas e a necessidade de o indivíduo confiar em instituições que conhece mal. Esta confiança é diferente daquela como a familiaridade ou a fé presente em épocas anteriores, podendo ser interpretada como um motivo de liberdade ou, pelo contrário, uma causa de ansiedade. Outra corrente de autores como Luhmann e Shapiro, referem que uma das características das sociedades atuais é o facto de a maioria das pessoas ter deixado de ter capacidade para recolher, processar e interpretar toda a informação relevante tendo de recorrer à avaliação e interpretação de diversos peritos espalhados no espaço e no tempo.

Ou seja, os consumidores de alimentos parecem cada vez mais dependentes de um sistema alimentar extremamente complexo e dinâmico constituído por longas cadeias de intervenientes e produtos, muitos dos quais desconhecidos. A compreensão deste sistema obriga a uma enorme variedade de conhecimentos que não podem ser compreendidos na sua totalidade pelo público. É neste contexto de aumento crescente da dependência em atores institucionais, anónimos que deve ser entendida a necessidade de confiar em algo ou alguém. Tanto Luhmann como Shapiro indicaram a confiança como um mecanismo importante para reduzir a complexidade e ultrapassar o sentimento de incerteza.

Esta necessidade, das universidades e outras instituições públicas, se constituírem como espaços de confiança é um desafio enorme e atual. Estas instituições, tanto podem ser a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Direção-Geral da Saúde (DGS) ou a Academia. Por essa razão a sua credibilidade ou o ataque à sua credibilidade está no centro de várias agendas políticas.

O ensino nunca é um ato apolítico

A universidade é um espaço onde se produz conhecimento, influenciado pela sociedade, mas que deveria ser suficientemente independente do poder económico e político, permitindo a liberdade de expressão e formando cidadãos que respeitassem o outro e as suas diferenças. As raízes da academia, fundada por Platão, tinham como objetivo garantir um espaço institucionalizado de liberdade como contraposta à liberdade da praça do mercado (ágora) e afastado da cidade (pólis). Mas era um espaço que não podia ser indiferente à rua. Segundo Hannah Arendt em a “Promessa da Política” (2007): O ponto decisivo neste contexto não é tanto o conflito entre a pólis e os filósofos (que estavam na academia), mas o simples facto de que esta indiferença de um dos domínios em relação ao outro, parecendo oferecer uma solução temporária ao conflito, não poderia durar precisamente porque o espaço dos poucos e da sua liberdade não teria a possibilidade de preencher as funções atribuídas a um espaço político, incluindo todos os que tiveram a possibilidade de gozar a liberdade. Os poucos, onde quer que fosse que se tivessem isolado dos muitos – quer sob a forma de indiferença académica, quer sob a forma de governo oligárquico – acabaram manifestamente por depender dos muitos, em particular em todos os aspetos da vida em comum que requerem ação concreta.” E esta atenção à rua foi, necessariamente, aumentando ao longo dos últimos anos, à medida que “aumentou a euforia tecnocientífica mas também aumentou o analfabetismo de valores cívicos” nas palavras de Daniel Innerarity.

Uma universidade que não forme cidadãos que respeitem o outro e as suas diferenças e não lute contra a desigualdade e a descriminação não estará a cumprir a sua missão. A ciência associada a estes valores não pode ser apolítica, ou desligada dos problemas da pólis, que somos afinal todos nós. Segundo o Conselho da União Europeia (15738/23) as nossas sociedades democráticas abertas dependem de um debate público que permita a cidadãos bem informados expressar a sua vontade e opinião através de processos políticos livres e justos. “A literacia mediática, a utilização segura, crítica e responsável das tecnologias digitais numa perspetiva centrada no ser humano, e uma compreensão correta dos desafios atuais relacionados com a desinformação e a má informação são, por conseguinte, essenciais para uma participação democrática informada e, em última análise, para os processos de aprendizagem que ocorrem nas nossas universidades.”

Por estas razões, defendemos o ensino e a compreensão das políticas públicas no ensino das ciências da nutrição. Os nutricionistas necessitam de ter formação que lhe permita ter um olhar reflexivo sobre como o sistema alimentar nos influencia e como podemos tentar influenciá-lo a partir de ferramentas e mecanismos de participação pública e em regimes democráticos com um mandato para a ação. Este conhecimento é decisivo para compreender e agir sobre o conjunto de pessoas, instituições, locais e atividades que desempenham um papel relevante na produção, transformação, transporte, venda, comercialização e, em última análise, no consumo de alimentos. Os sistemas alimentares influenciam os padrões alimentares, determinando os tipos de alimentos que são produzidos, os alimentos que são acessíveis, tanto física como economicamente, e as preferências alimentares das pessoas. São também fundamentais para garantir a segurança alimentar e nutricional, os meios de subsistência das pessoas e a sustentabilidade ambiental.

Como escrevemos anteriormente na definição do conceito de “nutrição comprometida” necessitamos de um modelo de ação sobre as questões da alimentação e nutrição que integre os determinantes da ingestão alimentar inadequada num quadro sistémico para além das questões individuais e que tenha a capacidade de fazer propostas pragmáticas de ação e mobilização coletiva sobre estes determinantes, tanto a nível local como global, envolvendo a sociedade civil, as partes interessadas, as forças políticas e a academia. Este modelo de ação privilegia ainda a participação transparente e livre de conflito de interesses. E pressupõe a “necessidade de uma formação adequada dos profissionais de saúde neste domínio, nomeadamente dos nutricionistas, um conhecimento dos processos de acompanhamento e participação nas políticas públicas, em particular nas áreas que modelam o consumo alimentar e uma maior intervenção ao longo de todo o sistema alimentar, em particular nas áreas mais sensíveis e influenciadoras da ingestão inadequada por parte dos grupos mais vulneráveis da população como são a produção, comercialização e promoção dos bens alimentares.”

Uma nova forma de ensinar Política Nutricional – O papel da inovação e das artes em tempos de cólera

Mas o ensino das políticas públicas não tem de ser necessariamente uma área árida, isenta de inovação e até de humor. Cito de novo o Professor Daniel Innerarart no seu livro “Política para Perplexos (2019): “ O que se esgotou não foi a política, mas sim uma determinada forma da política, concretamente aquela que corresponde à era da sociedade territorialmente delimitada e politicamente integrada (…) A política tem de estar em condições de gerar o saber necessário – de ideias, instrumentos ou procedimentos – para moderar uma sociedade do conhecimento que opera de maneira reticular e transnacional.” Sabemos isso na área alimentar, onde os sistemas alimentares inserem-se em contextos transnacionais e são operados globalmente, criando dificuldades a medidas avulsas definidas nas políticas ou estratégias alimentares nacionais, exigindo inovação e cooperação. O caso da regulação do marketing alimentar destinado a crianças ou a rotulagem nutricional são bons exemplos destas dificuldades, onde a cooperação é essencial e onde a OMS tem liderado diversos processos agregando Estados dispersos e incapazes de uma estratégia global. Talvez daí, a intenção recente de instituir estes organismos como principais alvos da nova ofensiva política e promover o retorno às políticas alimentares que promovem as identidades alimentares nacionais, ao protecionismo dos mercados e à taxação dos produtos alimentares.

Voltando ao início do nosso texto e aos tempos mais recentes, onde estivemos confinados durante a fase mais aguda da pandemia por Covid-19, a proximidade às artes e aos artistas, à cultura e às obras artísticas, demonstrou o poder das emoções provocadas pela arte na promoção do nosso bem-estar e estimulou a resiliência ao medo, à solidão e aos tempos incertos. Subscrevo as palavras de Inês Pedrosa, que disse que “as escolas são lugares onde se aprende a desinstalar o medo”. Talvez a compreensão dos processos de tomada de decisão e a participação nestes processos sejam formatos de desinstalar o medo. O mesmo sucedendo quando participamos em processos de inclusão cultural, ou seja, a participação nas narrativas, na narrativa coletiva, nos significados que unem as pessoas e na possibilidade de a partilhar. Por isso entendo que é importante combinar o ensino das políticas públicas, nestes tempos em que parece existir menos espaço para o pensamento humanista, com a voz dos artistas que ultrapassam rapidamente as barreiras que nos separam e permitem a esperança. Quer seja, pelo cinema, pela literatura, pela música, pela dança, pintura ou fotografia. Deixamos um exemplo de sátira que obriga a refletir e a pensar o processo político. Aqui fica um exemplo do livro “Instalação do Medo” (2012) de Rui Zink que pode ser um instrumento pedagógico para a compreensão do medo, como motor da política, mas também como espaço para uma visão desafiadora e sarcástica dos burocratas do medo e das suas fraquezas.

“Na soleira da porta, dois homens. Um de fato e gravata, elegante, esguio, nariz e lábios finos, pasta tecnocrata na mão. O outro maia atarracado, carão fechado, fato-macaco, caixa de ferramentas numa senhora manápula.
- D-desculpem, estava com a máquina de lavar, não ouvi…
Mas diz isto, a mulher percebe que é a mentira errada. Da cozinha não vem barulho nenhum da máquina de lavar.
Os homens olham para a mulher como se não olhassem para a mulher.
É estranho. Os homens não têm um ar ameaçador. Antes pelo contrário. O de fato até parece loquaz; o outro, sim, é mais bruto, pesado, ausente.
- Bom dia, minha senhora – diz o de fato, com o seu ar loquaz- - Viemos para instalar o medo.
- O M-medo?...
O de fato loquaz faz uma expressão de espanto retórico:
- A senhora não foi avisada? – O homem faz uma expressão de então com os olhos.
A mulher morde o lábio:
- Tem de ser hoje? É que eu já tinha planeado…
O homem de fato loquaz, embora cordato, é firme:
- Minha senhora, o progresso não para. É pelo bem do país.
- Pois. Mas eu não estava prepar…
O homem de fato faz um ar desapontado:
- A senhora não me diga que é contra o bem do país.
- Eu…
- Ou contra o progresso.
- …
- Ou contra o medo.
A mulher morde o lábio:
- Não. Claro que não…
A mulher devia ter percebido desde o início que o homem elegante de fato loquaz não desarmaria. E não, não desarma:
- A senhora sabe que a instalação do medo é um objetivo patriótico. Directiva nº359/13. Portaria 8: “Todos os lares devem ter o medo instalado num prazo de 120 dias.” Conhece a portaria não conhece?
- Bem…
- E a Directiva?
- Sim…
- É importante. Uma efeméride. Crucial para o bom funcionamento. É crucial para o bem de todos que a instalação do medo seja feita de forma atempada e ordeira e que os prazos de integração sejam cumpridos.”

Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

Pedro Graça Diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto