Ética em Nutrição: desafios atuais

Os nutricionistas desempenham uma atividade multidisciplinar que extravasa muito as ciências biomédicas onde se inserem. A atuação destes profissionais, influencia a produção e o consumo alimentar, áreas onde coexistem interesses económicos muito fortes, com grande visibilidade pública e de enorme relevância para os cidadãos. Neste contexto, é deveras importante uma reflexão ética e deontológica constante sobre a nossa atuação enquanto nutricionistas.

Esta reflexão iniciou-se, de forma consolidada, em 2004, ainda no seio da Associação Portuguesa dos Nutricionistas (APN) com a necessidade pressentida de criar um Código Deontológico dos Nutricionistas, anos antes da criação da Ordem dos Nutricionistas. Em 2006, a APN criou um grupo de trabalho, constituído por nutricionistas, alumni da FCNAUP*, que após diversos procedimentos, nomeadamente a auscultação dos associados, apresentaram em junho de 2008, um primeiro esboço deste código, e em outubro desse mesmo ano, um documento de base intitulado “Princípios Orientadores para a Ética Profissional dos Nutricionistas” (1). Este conjunto de orientações, tinha como objetivo central, chamar a atenção dos associados para a existência de determinados princípios éticos genéricos e para a mais-valia da sua inclusão na prática profissional diária e, ainda, para a necessidade de uma discussão continuada das questões deontológicas e éticas no seio da profissão. E que esta discussão não devia esgotar-se nos princípios elaborados nesse primeiro documento. O documento encontrava-se, dividido em 5 áreas de interesse e atuação profissional, ou seja, as competências profissionais, relacionamento com os clientes, relacionamento com os colegas, fornecimento de serviços e responsabilidades sociais e legais, as quais dariam mais tarde origem ao nosso Código de Ética, ainda hoje muito semelhante a este documento original.

Problemas atuais na área de atuação dos nutricionistas que merecem uma reflexão ética

Um Código de Ética apresenta um conjunto de comportamentos esperados em circunstâncias diversas, possibilitando uma reflexão antecipada para julgamento e distinção do certo e do errado. Contudo, estas circunstâncias estão frequentemente em mudança e a perceção da sua importância depende de cada um de nós. Esta é por isso uma reflexão pessoal dos autores que pode não representar os problemas éticos mais frequentes ou até os mais pressentidos pela classe, mas são, no nosso entendimento, áreas emergentes ainda pouco trabalhadas e que merecem uma discussão pública aprofundada num futuro próximo.

A questão da atualização dos conhecimentos face à rapidez atual da evolução científica nesta área

O Código Deontológico reflete os princípios éticos da atividade profissional dos nutricionistas. Tem como objetivo garantir uma prática profissional de excelência que contribua para o crescimento, reconhecimento e prestígio destes profissionais. Daí que a capacidade dos nutricionistas exercerem uma prática profissional baseada na mais recente evidência científica seja central no nosso Código. Assim se expressa no Artigo 2.º – Conhecimentos dos nutricionistas: “Os nutricionistas integram, aplicam e desenvolvem os princípios das áreas base da biologia, química, fisiologia, das ciências sociais e comportamentais e aqueles provenientes das ciências da nutrição, alimentação, gestão e comunicação, para atingir e manter ao melhor nível o estado de saúde dos indivíduos, através de uma prática profissional cientificamente sustentada, à luz dos conhecimentos atuais, em constante aperfeiçoamento.” E logo à frente, nos “Deveres gerais”, sugere-se que é dever do Nutricionista: “Comprometer-se com a atualização contínua dos seus conhecimentos e capacidades científicas, técnicas e profissionais;”.

Isto significa um elevado grau de exigência para com uma profissão que hoje abarca as mais diferentes áreas de atuação, cada uma delas com uma evolução técnica e científica enorme, quase diária, e onde, progressivamente, os colegas se vão especializando. Ou seja, implica a necessidade de um investimento constante na atualização das áreas especificas de atuação ao longo do ciclo de vida profissional e, um enorme comedimento e humildade científica, quando se abordam áreas onde não se desenvolve trabalho, respeitando quem aí desenvolve a sua atividade. A atualização frequente de conhecimentos e o estudo continuado como princípio ético é central a uma profissão muito jovem e ainda em afirmação. Sem atualização técnica permanente nesta área, os nutricionistas não irão dar resposta ao que a sociedade espera deles. É central o compromisso ético para com a aprendizagem e atualização permanente ao longo da vida profissional. Uma área onde necessitamos de formação e reflexão tanto entre os colegas mais novos, como, e em particular, com os mais experientes.

A questão do aparecimento de uma sociedade de informação e dos meios digitais

O nutricionista, enquanto produtor e divulgador de informação científica com capacidade aumentada de acesso às redes globais, representa uma enorme oportunidade e, ao mesmo tempo um desafio para a reputação da classe. Nomeadamente, por se poder utilizar esta capacidade tecnológica muito recente e de grande visibilidade pública para a promoção de tendências de consumo dependentes do imediatismo científico e para a promoção de interesses comerciais numa linha abaixo da perceção pública e que é dificilmente detetável, onde o conflito de interesses pode estar cada vez mais presente.

O aparecimento da sociedade de informação e a possibilidade de cada cidadão se tornar um ator mediático na arena da informação nutricional e alimentar global, incentivou e seduziu muitos atores da cadeia alimentar, e não só, para a comunicação permanente, fácil e tendencialmente sensacionalista na procura das preferências e “gostos” dos seus leitores e que aumentam a sua visibilidade pública, auto-estima e valor comercial. O escritor Ricardo Gavelis (1950-2002) cunhou a expressão “era dos diletantes” por temer o domínio das mediocridades agressivas, com a “sua capacidade de silenciar homens e mulheres de letras educados e calmos que preferem pensar duas vezes antes de dizer e fazer alguma coisa”. Estas vivências numa era de emissão de fragmentos sonoros continuados, “coisas efémeras calculadas para um impacto máximo com uma obsolescência instantânea” (2)  aproximou o sucesso dos “comunicadores em nutrição” nas redes sociais com a necessidade de uma presença constante no espaço mediático, falando sobre tudo e mais alguma coisa, a toda a hora, procurando o imediatismo científico do “sound byte” que é dificilmente compaginável com o estudo aprofundado e desenvolvido nas diferentes áreas de atuação da nossa profissão.

Este aparecimento dos “influenciadores nutricionais”, alguns de frágil densidade científica, no espaço das redes sociais mas com um elevado sucesso mediático pode também traduzir-se num fenómeno que chamaremos de “reciprocidade científico-mediática”, na medida em que estes comunicadores/influenciadores são presas fáceis para serem capturados pelos interesses comerciais, onde a capacidade de quem detém o poder económico permitirá alimentar a influência mediática dos influenciadores nas redes sociais e, por sua vez, a influência destes comunicadores na rede global permitirá publicitar os produtos detidos por estas empresas. Estes formatos de comunicação através da influência nas redes sociais e na comunicação digital é hoje altamente financiada, tornando-se em alguns casos, o principal investimento publicitário de muitas empresas de grande dimensão. De notar ainda, que em muitas situações, este relacionamento comercial associado a um eventual conflito de interesses, não é anunciado por nenhuma das partes ficando invisível para os consumidores.

Conflito de interesses

No caso dos nutricionistas, o conflito de interesses entre estes e a indústria alimentar pode ir para além das questões comunicacionais. Tendo em conta o aumento de situações reportadas nos últimos anos, em 2017, a OMS elaborou uma extensa consulta e fez diferentes publicações sobre o assunto, nomeadamente o Relatório “Safeguarding against possible conflicts of interest in nutrition programmes: draft approach for the prevention and management of conflicts of interest in the policy development and implementation of nutrition programmes at country level” em que se sustenta a necessidade da identificação de potenciais áreas onde a atuação dos profissionais pode ser influenciada pelo relacionamento comercial ou de outra ordem, por quem detém o poder económico, sendo que nestes casos a publicitação pública deste relacionamento é um passo fundamental para se sanar o conflito, embora não suficiente em alguns casos. Por exemplo, quando os nutricionistas desempenham cargos de responsabilidade que lhes permitem tomar decisões que possam beneficiar uma das partes.

Para além de reconhecer a influência que esta associação pode causar na tomada de decisão e no bom nome e reputação dos colegas e instituições, o reconhecimento do conflito de interesses não resolve os problemas que esta relação pode causar, apenas define um ponto de partida para a sua resolução. O objetivo é reduzir o risco e não apenas de o tornar visível.

Esta é uma atuação profissional que pode descredibilizar  os nutricionistas e o seu bom nome, sendo que a formação ética dos futuros nutricionistas para estes temas e a sua discussão pública parece-nos ser essencial, até porque é desejável a presença de nutricionistas ao longo de toda a cadeia alimentar, em particular na reformulação e melhoria nutricional em conjunto com a indústria alimentar. O nutricionista pode ser peça essencial na inovação e desenvolvimento de produtos alimentares mais saudáveis e, pode ainda, desempenhar um papel decisivo na tomada de decisão em várias áreas por parte da indústria e distribuição alimentares. A transparência neste relacionamento e a definição de linhas de orientação claras poderão contribuir para uma parceria mais efetiva e sustentável para ambos os lados. Assim importa fazer uma discussão alargada sobre as formas de relacionamento dos nutricionistas com a indústria alimentar, permitindo identificar modelos de relacionamento com risco reduzido de conflito de interesses. Voltaremos a este assunto e de forma mais aprofundada brevemente.

A questão do financiamento das instituições de ensino e investigação

Não sendo possível nem desejável o afastamento entre a sociedade civil, o tecido empresarial e quem ensina e produz ciência, urge também uma discussão séria sobre este relacionamento. Ao não existirem linhas de orientação claras neste domínio, abrem-se portas para a tomada de decisão errática, caso a caso, criando-se um espaço cinzento, pouco transparente, quase ingovernável e acima de tudo um espaço onde não são possíveis identificar responsabilidades e pedir contas. Esta ambiguidade, tem sido má para todos, na medida em que acentua desconfianças por parte da opinião pública, impede investimentos a médio e longo prazo das empresas e, afasta as instituições de ensino do mundo real. Por outro lado, impede a contabilização séria de onde se faz investigação pública com financiamento privado e de que forma o Estado pode definir uma agenda forte de investigação e financiar áreas de investigação científica que permitam contrabalançar áreas não financiadas pelo investimento privado. Na área da alimentação existe, por exemplo, um subfinanciamento crónico na investigação financiada pelo Estado em áreas decisivas como o impacto da legislação no consumo alimentar ou a avaliação do impacto do consumo de alimentos em natureza, de baixo valor comercial, na promoção da saúde.

Existem já publicadas diversas linhas de orientação nesta área que devem merecer uma atenção redobrada por parte das instituições e laboratórios públicos para a definição de uma estratégia de relacionamento com o setor privado. Apresenta-se, neste texto, uma possibilidade, entre outras. Numa primeira fase, sugere-se a avaliação da credibilidade dos parceiros e do risco associado às propostas elencadas, nomeadamente comparando com critérios de credibilidade já pré-estabelecidos. Por exemplo, a associação norte-americana de nutricionistas “Dietitians for Professional Integrity” (DFPI) sugere eliminar à partida as empresas relacionadas com determinados produtos alimentares, por exemplo. Segue-se posteriormente e noutra fase, a definição do tipo e natureza da relação com estas empresas que pode ser a) nenhuma; b) Um diálogo formal, apenas; c) uma colaboração não financeira, por exemplo, a partilha de dados ou conhecimentos, ou; d) Uma colaboração envolvendo financiamento. Depois desta tomada de decisão segue-se um conjunto vasto de tomadas de decisão que podem envolver a definição conjunta do tipo de objetivos a atingir, a propriedade da informação, os modelos de publicação, a vigilância do protocolo por entidades externas, a identificação dos interesses em causa e potenciais conflitos de interesse, a diversidade dos financiadores e a participação pública, sendo que todo este processo deve ser monitorizado e publicitado de forma transparente. Por fim, deve-se ter em conta os potenciais resultados expectáveis, e se eles contribuirão para a produção e publicação de ciência de qualidade, revista de forma independente, e ainda, se os resultados poderão influenciar positivamente a definição de políticas públicas nesta área. No caso da produção científica, e segundo diversos autores, é desejável a não participação dos financiadores durante a condução dos trabalhos científicos, desde o desenho e definição da metodologia até à interpretação dos dados e sua apresentação, sendo ainda desejável a disponibilidade pública dos dados para outros cientistas interessados. Por outro lado, é cada vez mais frequente pedir-se aos autores de comunicações orais ou conferências a proferir em congressos, que os eventuais conflitos de interesses possam ser mencionados, antes das apresentações. Todo um caminho a percorrer, toda uma aprendizagem a fazer e que já foi feita em outras áreas, como aconteceu na indústria farmacêutica, por exemplo.

A questão do conflito entre a ética ambiental e a ética alimentar e nutricional

Uma última e central questão ética que vai dominar o discurso das ciências da nutrição nos próximos anos será o conflito entre a promoção do bem-estar nutricional e a defesa do bem-estar do planeta, sendo que nem sempre será possível conciliar a visão ambiental e nutricional. Exemplo recente desta disputa anunciada são as recomendações para a redução do consumo de carne devido ao seu impacto no consumo de água, energia e emissões de gases com efeito de estufa e, por outro lado, a tradição omnívora da espécie humana e a mais-valia nutricional da inclusão de uma pequena porção de carne na nossa alimentação. Embora a ética biomédica tenha dado pouca atenção a este aspeto, o que é natural, este tema será central para a tomada de decisão e aconselhamento dos nutricionistas no respeito pelas opções de vida dos seus clientes. No âmbito das suas relações com os clientes, os nutricionistas devem “Fornecer serviços respeitando a dignidade dos clientes, as suas necessidades e os seus valores pessoais, sem qualquer tipo de discriminação”. E este tema será ainda mais complexo quando se incluir nesta equação o respeito pelo bem-estar dos animais ou o consumo de produtos de grande riqueza nutricional, baratos para uma população desfavorecida, mas de forte impacto sobre o meio ambiente, pois provenientes de regiões longínquas, por exemplo. Como conciliar um compromisso, nem sempre possível, entre melhorar a vida de um ser humano ou melhorar as condições de vida para a espécie humana?

Esta reflexão incluirá também a necessidade de promover com maior frequência no discurso dos nutricionistas junto dos seus clientes, ações que contribuam efetivamente para a redução da pegada ambiental como a redução do consumo alimentar per si (a frugalidade e não apenas a substituição de um alimento por outro que é a atual lógica comercial) ou o maior aproveitamento dos alimentos e a redução do desperdício. Sugestões de comportamento ainda pouco frequentes na ação de aconselhamento alimentar de muitos colegas.

A este propósito, e desde que Martinez Alier publicou a sua obra seminal “The Environmentalism of the Poor” em 2014, muita discussão tem sido feita sobre o facto das preocupações ambientais poderem aumentar o fosso entre os mais desfavorecidos, sem acesso a produtos alimentares produzidos de forma a melhor proteger a natureza. A crítica ao fosso que começa, aparentemente, a existir entre a possibilidade de acesso a alimentos que protegem os produtores e a produção local através de modelos de produção ambientalmente sustentável, por oposição aqueles que são a sua antítese, ou seja, alimentos largamente disponíveis a baixo custo, mas altamente processados e de produção industrial, deverá merecer um debate profundo nos nutricionistas com estas preocupações éticas e que podemos antecipar desde já. Estas práticas éticas não se poderão reduzir a argumentos sobre a pureza moral das escolhas. Ao reconhecer que existem várias possibilidades e conceitos de “consumo alternativo” por oposição ao alimento altamente processado, daremos às populações um sentimento de normalidade, que em muito beneficiará a perceção pública sobre os riscos e sua minimização.

Estas questões demonstram a complexidade da nossa área de trabalho e, ao mesmo tempo, um necessário debate por fazer. Este texto, assinala ainda uma data histórico para a FCNAUP e para todos os nutricionistas, pois a Comissão de Ética da FCNAUP iniciou funções esta semana. A FCNAUP será a primeira Faculdade de Nutrição a ter uma estrutura deste género, o que muito nos orgulha. A Comissão, presidido pela Prof. Doutora Sara Rodrigues, é constituída por um conjunto de personalidades de reconhecido mérito, que darão, nos próximos anos, um enorme contributo para sermos melhores e pensarmos melhor estes assuntos. Desejamos as maiores felicidades a toda a sua equipa.

(1) Pedro Graça, Bela Franchini, Alejandro Santos, Maria Palma Lopes, Sandra Lourenço, Princípios Orientadores para a Ética Profissional dos Nutricionistas: Associação Portuguesa dos Nutricionistas; 2008.

(2) George Steiner – Linguagem e Silêncio – Gradiva, 2014.

Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website
Maria João Gregório 1
Maria João Gregório
Nutricionista, Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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