Francisco Gonçalves Ferreira – Conhecer melhor um dos pais da nutrição em Portugal

Se hoje se reconhece a Emílio Peres a genialidade de ter conseguido ligar o conhecimento nutricional com o conhecimento do alimento e de nos ter inspirado a saber transmitir essa ligação da melhor forma ao cidadãos, é igualmente verdade que se deve a Francisco Gonçalves Ferreira, grande parte do conhecimento nutricional, onde assentam as bases das Ciências da Nutrição em Portugal. A ele se deve também, todo um pensamento (completamente inovador) de como nos organizarmos coletivamente para melhorar a alimentação dos portugueses, bem como alguns dos documentos mais importantes na área da nutrição. Um génio, um homem excecional e também uma das pessoas ligadas à fundação da FCNAUP que todos os nutricionistas deveriam conhecer melhor.

O início da investigação sobre nutrição em Portugal

Francisco António Gonçalves Ferreira nasceu em Aguiar da Beira a 24 de novembro de 1912, precisamente numa altura em que as Ciências da Nutrição iniciavam o seu processo fulgurante de desenvolvimento. No ano em que nasceu, em 1912, Kazimierz Funk, um cientista polaco a trabalhar em Inglaterra, publica um artigo intitulado “Vitamines” onde pela primeira vez se apresenta este conceito. Funk, que na altura estudava os aminoácidos e as suas “bases orgânicas”, alimentou pombos com uma dieta de arroz polido e descobriu que, em pouco tempo, os pássaros perdiam peso e ficavam doentes. Como as aves consumiam proteína e energia em quantidade suficiente, ele deduziu que o problema poderia não ser uma deficiência de proteína ou aminoácidos, mas muito provavelmente, uma deficiência no consumo de alguma substância presente na casca do arroz. Assim, Funk começou a sustentar que certas doenças poderiam ser evitadas, se garantíssemos que determinadas substâncias químicas estivessem presentes na nossa alimentação. Ele chamou a estas substâncias “vitaminas”, onde “vita” significava vitalidade e “aminas” significava composto químico que continha azoto. Curiosamente e em língua inglesa o “e” de vitamine foi eliminado na década de 1920, passando a chamar-se “vitamin”, quando se descobriu que as aminas ou compostos químicos orgânicos derivados do amoníaco nem sempre estavam presentes na composição química das vitaminas.
É neste ambiente, dos primórdios das Ciências da Nutrição em todo o mundo, que Francisco Gonçalves Ferreira se insere e se licencia em Medicina, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em 1936. Para concluir o curso dá explicações (a sua mãe morre a meio do curso e o pai não o ajuda mais a partir de essa altura). Em 1936, inicia um período fulgurante de investigação e publicação na área da nutrição que dura praticamente meio século. Durante mais de 50 anos, Francisco Gonçalves Ferreira trabalha a um ritmo extraordinário, quase frenético. Organizado, solitário e extremamente metódico, nunca se casou nem teve filhos e em 1942 publica a sua dissertação de licenciatura intitulada “O ácido ascórbico dos alimentos consumidos em Coimbra”. Inicia assim a investigação da composição nutricional dos alimentos, mas sempre com um olhar muito concreto sobre as realidades alimentares regionais e nacionais que não mais o abandona. Dois anos mais tarde, em 1944, publica “Vitamina B1 e alimentação”, e ainda no mesmo ano, “Vitaminas, química, metabolismo, carências”, um colossal manual de 338 páginas sobre este tema. Ainda no mesmo ano, publica a sua tese de doutoramento intitulada “Vitaminas hidrossolúveis e alimentação: contribuição para o estudo da alimentação dos portugueses”. Na sua tese encontramos já o interesse de estudar os alimentos, mas enquadrar a sua composição nutricional com a ingestão e com as necessidades da população numa lógica de saúde pública. Esta visão, inovadora à época, originará, décadas mais tarde, trabalhos tão importantes como a tabela de composição dos alimentos ou o primeiro inquérito alimentar nacional.

Imaginemos a capacidade produtiva e técnica deste homem da ciência, no Portugal da década de 40 do séc. XX, onde os meios laboratoriais eram tremendamente escassos e onde a cultura científica nesta área praticamente não existia. A par desta enorme produtividade científica, que se estenderá por mais de meio século, devemos sublinhar o seminal “Nutrição Humana”, com 1291 páginas e onde tudo se descreve e aprofunda. Desde um extraordinário dicionário sobre alimentação e nutrição, passando pela composição e metabolismo dos principais nutrientes, saúde pública, dietas hospitalares, história da alimentação, epidemiologia, legislação e política alimentar. Publicado em novembro de 1983 pela Fundação Calouste Gulbenkian este é talvez o mais importante livro da história da nutrição portuguesa). Francisco Gonçalves Ferreira é ainda um homem profundamente inclinado a debater políticas públicas e dotado de uma enorme ética social. Este contributo para a cidadania e justiça social inicia-se desde muito cedo.

O cidadão com sentido de serviço público e das políticas em saúde

Em 1946, e em pleno Estado Novo, publica “Problemas científicos e sociais da alimentação” na Biblioteca Cosmos (número 50) sob a direção de Bento de Jesus Caraça. Neste primeiro livro enumera, muito à frente do seu tempo, os fatores sociais que determinavam os grandes problemas sociais e a “política da alimentação científica”. Mais tarde, retomará este tema, já na década de 70, quando reflete, escreve e projeta uma proposta de política nutricional e alimentar, extraordinariamente bem concebida e muito avançada para a época. Quando em 1974, na Conferência conjunta OMS/FAO em Roma, é proposto pela primeira vez, por peritos Nórdicos, a necessidade de implementar políticas de alimentação e nutrição com o objetivo de prevenir doenças crónicas associadas a um consumo alimentar inadequado já existia um pensamento estruturado sobre assunto entre nós. Em 1978, Francisco Gonçalves Ferreira publica “Política Alimentar e de Nutrição em Portugal” onde definitivamente apresenta uma estratégia alimentar e nutricional para Portugal. E mais tarde publica outros documentos do género, entre 1979 e 1981. Embora ainda com escassez de informação epidemiológica e com uma base intuitiva forte, estão já nestes textos, alguns dos pressupostos de uma estratégia moderna para a área. Que infelizmente só se concretizará parcialmente em 2012, com a criação do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) pela Direção-Geral da Saúde.
Na área das políticas de saúde mais generalistas e da organização dos serviços de saúde, Francisco Gonçalves Ferreira inicia uma revolução na saúde pública. Entre outras medidas, contribui para uma profunda reformulação do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA). Diretor do INSA a partir de 1967, ele vai transformar o Instituto num “instrumento eficaz que servisse de apoio à tomada de decisão dos intervenientes políticos e à informação da população em geral, desenvolvendo competências técnicas e de autoridade para a identificação e avaliação das necessidades do País em todo o campo da Saúde Pública, em vez de ter apenas responsabilidades na área da Higiene, como até então acontecia.” No meio disto tudo, tem tempo ainda para criar e dirigir o Conselho de Alimentação e Nutrição (CAN) e o Centro de Estudos de Nutrição (CEN) a partir de 1976. Ou seja, Francisco Gonçalves Ferreira transforma o INSA num instituto de investigação pública moderno.
Mais tarde, contribui decisivamente para o embrião do Serviço Nacional de Saúde, três anos antes do 25 de abril de 1974, quando publica os Decretos-Lei nº 413/71 e 414/71, enquanto Secretário de Estado da Saúde e Assistência. Com a publicação destas leis, reorganizam-se os serviços do Ministério da Saúde e Assistência através do “desenvolvimento das atividades de saúde pública e de promoção social, criando condições mais favoráveis à sua realização, mediante a integração dos serviços públicos e a condenação das iniciativas e instituições particulares que devem assegurar a cobertura médico-social, sanitária e assistencial das populações.” Muito da moderna saúde pública portuguesa e da prevenção da doença já se encontra aqui.

Alguns marcos das Ciências da Nutrição em Portugal

Pelo caminho, ficam todos os documentos mais importantes da história da alimentação nacional no séc. XX que vão ter a sua mão. Entre eles, poderemos citar a “Tabela da composição dos Alimentos Portugueses” que elabora com a sua dedicada colega Maria Ernestina da Silva Graça em 1961 e que reedita em 1985. Um trabalho de anos, onde se descrevem nutricionalmente centenas de alimentos portugueses, a partir de centenas de amostras e que serão a espinha dorsal da investigação sobre nutrição em Portugal durante muitos anos.
Em 1972, publica aquele que será um precursor do Inquérito Alimentar Nacional, as “Notas sobre as disponibilidades e necessidades alimentares presentes no continente português”. Em 1976, inicia através do CEN, a preparação do grande Inquérito Alimentar Nacional que vai terminar em 1980 e que durante quase 40 anos será o único do género em Portugal. Trabalho completamente inovador com a pretensão de se fazer uma avaliação do consumo alimentar, uma avaliação clínica e antropométrica e ainda uma avaliação bioquímica do sangue e urina de uma amostra representativa da população nacional. Para esta tarefa, desenvolve um brilhante trabalho na área da construção de metodologia de inquirição, alimentar, clínica e laboratorial. Pelo meio, e em 1977, ficam os estudos sobre os custos de realizar uma alimentação saudável para as famílias portuguesas, através do padrão de consumo de alimentos em 100 famílias urbanas de Lisboa, que publica na Revista número 1, Volume I (pág 5-16) e número 3, Volume II (pág 3-24) do CEN um trabalho notável onde a sua consciência social e vontade de lutar contra as desigualdade sociais é sublinhada.

Francisco Gonçalves Ferreira e a Escola de Nutrição do Porto

Para além destas atividades, Francisco Gonçalves Ferreira desenvolve intenso trabalho na área do ensino e pedagogia. Participa na elaboração de novos cursos de formação médica e também colabora ativamente na construção do Curso de Nutricionismo da Universidade do Porto, na década de 70. Pelo meio, elabora sessões tipo de educação alimentar e participa ativamente na elaboração da primeira Roda dos Alimentos. Que mais tarde e em versões posteriores será desenvolvida por docentes da FCNAUP.
Apaixonado pelo Porto onde trabalhou muito anos, nas décadas de 50 e 60, Francisco Gonçalves Ferreira está intimamente ligado à constituição da escola de nutrição do Porto e do seu curso de nutricionismo na década de 70 na Universidade do Porto. No livro “40 anos do SNS”, a jornalista Maria Elisa Domingues cita o antigo ministro da saúde, Correia de Campos, que apelidava Gonçalves Ferreira como “Impoluto e impossível”. Como meu professor na Escola Nacional de Saúde Pública, acrescentaria o epíteto de “Perfeccionista e eticamente irrepreensível”. Recordo, enquanto aluno seu, ouvi-lo dizer vezes sem conta, depois de apreciar os nossos trabalhos: “Aqui está uma boa ideia, com futuro, mas para lá chegar precisamos ainda de a organizar melhor e de lhe dar mais horas de pensamento de qualidade”.

Obrigado Professor, de todos nós.

Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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