A procura de alimento foi sempre um ato pensado. Nunca foi inocente. Resultou de necessidades nutricionais, de segurança, de sustentabilidade, de prazer e bem-estar. Esta adaptação evolutiva na seleção e trato do alimento realizou-se na presença de um território que condicionou e obrigou a um determinado percurso construtivo de conhecimento alimentar e gastronómico nas comunidades onde foi feito.

É na relação umbilical entre o ser humano e o território, no cruzamento entre o que as comunidades encontram disponível e o modo como transformam esses mesmos recursos que nasce a cultura alimentar. O movimento de criação gastronómica utiliza o que o território oferece e opera as alterações necessárias aos produtos de modo a torná-los em alimentos comestíveis para além das suas caraterísticas físicas, químicas e organoléticas ou duração predestinada pelo ciclo do tempo de vida.

De certa forma, a gastronomia é uma interpretação cultural do conjunto de recursos disponibilizado pelo meio natural. Através da transformação de produtos e da construção de receituários, gerou-se um léxico alimentar representativo, não só das caraterísticas do território e das condições climáticas, mas também da interpretação que as populações fizeram do que foram encontrando. Nesta viagem de construção da linguagem alimentar, as simbologias sociais e culturais decorrentes da relação entre o ser humano e a família, a comunidade e a divindade desenharam a base da identidade alimentar promovendo modos e técnicas culinárias específicos.

Mistura entre a força do produto, simultaneamente, alimento e símbolo social e cultural, a expressão identitária foi sendo afirmada como raiz de muitas comunidades sob a forma de produtos e receituários com caraterísticas singulares. A diferenciação na utilização dos recursos e a criatividade culinária gerou a diferenciação de expressões gastronómicas consoante o território e a cultura, esta última entendida como o conjunto dos valores sociais, políticos, económicos, étnicos, estéticos.

Por estarem tão ligados à fundação social e cultural das comunidades e serem base de práticas agropecuárias, saberes-fazer, práticas culinárias, modos de vida, rituais, gosto, símbolos religiosos ou pagãos, os produtos gastronómicos e receituários foram sendo categorizados como tradição. Esta traduz uma interpretação dos recursos existentes tendo em conta o conjunto de valores culturais predominantes. É, por isso, não só suporte da identidade de uma comunidade, como expressão da mesma. Um produto ou uma receita pode comunicar a escolha política, económica, religiosa, estética, de uma comunidade. É, pois, nela que os membros de uma comunidade se apoiam quando querem afirmar a sua identidade e afirmar o que são. É nela que encontram o conforto e a segurança do que os define pelo que estão habituados.

Contudo, esta tradição não nasceu fechada e completa, mas foi sendo construída por camadas que incluem ajustamentos, alterações, equilíbrios, que traduzem as modificações pelas quais passaram as sociedades. Migrações, alterações climáticas, evolução biológica, inovação no conhecimento e no acesso a técnicas e produtos foram fatores que condicionaram a tradição e a fizeram evoluir num constante reajustamento entre necessidades e recursos.

A tradição gastronómica não se confunde com o mito. Ela tem uma história que exprime a caminhada evolutiva que produtos e receituário sofreram. Num diálogo contante entre o conjunto de regras comummente aceites ao longo do tempo e as transformações que a condição humana exige, dá-se, continuadamente, o equilíbrio entre a tradição e a inovação, entre o passado e o futuro.

A tradição gastronómica não é imutável, mas é permeável às mudanças que o tempo presente exige nos modos de vida. Ao longo do tempo, seja pelo acrescento, seja pela redução, as camadas das tradições gastronómicas vão sendo equilibradas entre o que faz sentido ou não para uma determinada comunidade. Tal passa despercebido, pois as mudanças são lentas e acontecem no tempo, não deixando perceber que a tradição apenas se mantém porque, de algum modo, se renova, se adapta, se transforma, evoluindo para servir os propósitos e as necessidades das comunidades presentes.

A história e cultura gastronómica demonstra a evolução a que produtos e receituário estiveram sujeitos, não sendo tal visível para as gerações que vivem o momento pois que se agarram à certeza do que sempre conheceram e lhes dá conforto.

Respeitar a tradição deve passar por respeitar as comunidades que lhe estão subjacentes. Se, por um lado, há que não perder o fio do que identifica e carateriza cada grupo, também importa deixar respirar as práticas alimentares de forma que elas sirvam o propósito humano, ou seja, serem uma oportunidade de energia, prazer, saúde e bem-estar.
Neste processo evolutivo e de adaptação constante ao longo de milhares de anos no território da bacia do mediterrânico de pendente atlântica, como é o caso de Portugal, ponto de cruzamento alimentar entre as culturas do oriente e a expansão a oeste e ao sul, vale a pena refletir mudanças ocorridas nos últimos 75 anos.

A primeira e mais significativa é a desmaterialização da noção de território associada ao local onde a “comida” é produzida e consumida. Nestas últimas décadas, as populações envelheceram ou reduziram progressivamente a sua presença nos territórios onde os alimentos são produzidos e vivem agora maioritariamente em territórios ausentes de produção alimentar. A evolução do modo de consumir ou o conceito gastronómico inerente e suas tendências faz-se, maioritariamente nos grandes centros urbanos, longe do conhecimento gerado outrora nos locais produtivos, o que acontece a esta escala pela primeira vez entre nós.

A velocidade da mudança demográfica com o rápido desaparecimento dos detentores do saber gastronómico de base popular, associa-se também ao crescimento rápido da presença da tecnologia na produção, escolha e preparação dos alimentos. Os modelos de conservação, com milhares de anos, como a salga ou o fumo possuem hoje equivalentes mais eficientes e saudáveis como a refrigeração ou a congelação. E a velocidade, automatismos e eficiência energética da preparação ganhou preponderância na confeção onde a tecnologia facilitou a generalização do micro-ondas ou dos robôs de cozinha, por ex.
A velocidade da mudança demográfica também tem de ser associada a mudanças sociais, com alterações substanciais na dimensão das famílias e com o papel da mulher mais presente na vida profissional. Diminui assim o tempo para uma relação próxima e prolongada com o alimento, desde a produção à confeção, e também para a passagem direta do conhecimento alimentar e de práticas culinárias ancestrais e até de iniciação presencial ao consumo alimentar, comum entre pais e filhos.

A velocidade das alterações climáticas também cresceu nestas últimas décadas. Estas alterações estão a fazer aumentar as incertezas na produção (volume e preço) de determinados produtos alimentares, nomeadamente frescos e produtos que tradicionalmente eram acessíveis e estão a deixar de o ser. A velocidade da mudança climática também reformulou a perceção do consumidor face a determinados alimentos cuja produção ou transporte tem implicações nas emissões de gases com efeitos de estufa ou na utilização de água, por exemplo.

Por fim, as questões de saúde e a relação “comportamento alimentar – resultados em saúde”, que se constituiu de forma cientificamente robusta neste último século, com o aparecimento das Ciências da Nutrição, que obrigaram a olhar para o alimento de forma diferente. A procura da longevidade e de mais anos sem doença, tornaram incontornável este determinante da saúde, em particular quando a esperança média de vida passou dos 50 anos para os 85 anos em poucas décadas. Ficámos a saber que muitas doenças mais prevalentes nestes últimos anos de vida são modeladas pelo que se come. Isto significa que doenças que pouco se exprimiam ou ouvíamos falar no início do século XX, como a diabetes, as doenças cardiovasculares ou o cancro, com forte influência alimentar, são hoje as principais causas de morte na nossa sociedade envelhecida.

Todas estas alterações na sociedade e no planeta estão a impor mudanças nos modelos alimentares a uma velocidade sem procedentes. Trata-se de evolução e adaptação alimentar e gastronómica como sempre existiu, mas agora com pressupostos algo diferentes e acima de tudo com velocidades muito distintas. A evolução e adaptação lenta que existiu até meados do Sec. XX foi substituída por uma evolução cada vez mais acelerada no Sec. XXI. A evolução lenta era operada maioritariamente pelos detentores do conhecimento alimentar ancestral, em muitos casos os habitantes dos territórios onde os alimentos cresciam e se preparavam. A evolução rápida poderá (muito provavelmente) já não ser realizada por quem detêm o conhecimento gastronómico de base popular e de proximidade geográfica, perdendo-se muito deste valor. Em particular, se os processos e produtos resultante de uma longa tradição ficarem numa redoma de proteção sem poderem ser alterados e se não forem incentivados a uma adaptação pensada para um novo modelo de consumo e relacionamento com a sociedade.

Neste contexto, surge a necessidade de perceber como lidar com estas mudanças aceleradas e qual o impacto que terão na nossa capacidade adaptativa que é historicamente mais lenta. O que fazer para não perder o conhecimento acumulado que nos valoriza e protege, mas não perder de vista a inovação que igualmente nos pode valorizar e proteger? Tal exige um equilíbrio entre o que se considera como tradição e o que pode ser incluído nessa prática tradicional evolutiva. É neste contexto que o desafio se torna maior pois que exige ponderação, conhecimento e bom senso nunca perdendo de vista as linhas mestras da tradição e a eventual mais valia da evolução.

Neste sentido, produzimos este Manifesto. Manifesto significa “um texto de natureza dissertativa e persuasiva, uma declaração pública de princípios e intenções, que objetiva alertar um problema ou fazer a denúncia pública de um problema que está a ocorrer. O manifesto destina-se a declarar um ponto de vista, denunciar um problema ou convocar uma comunidade para uma determinada ação.” Assim, o Manifesto pela criatividade na tradição gastronómica, pretende convocar a comunidade para a necessidade de valorizar a cultura alimentar como parte da central da sua identidade e da sua relação com a natureza (e deste ponto de vista protetora da sua saúde e bem-estar); para a necessidade de mapear esse conhecimento e práticas; identificar o que constitui o núcleo central e distintivo de uma cultura alimentar e gastronómica; perceber que sendo este um processo evolutivo em relação constante e acelerada com a sociedade e com a tecnologia é necessário identificar formatos de preservar essa identidade cultural em construção permanente sem fechar a tradição numa redoma; e, e ao mesmo tempo, permitir a adaptação da tradição ao seu tempo tentando, incorporando as novas realidades sem perder o que a define.

o que entendemos por cultura alimentar, gastronomia e tradição

// A cultura alimentar resulta da interpretação que os grupos humanos fizeram dos recursos existentes no território e do modo como os transformaram em alimento para obter segurança alimentar e nutricional, sustentabilidade, prazer e bem-estar. Apesar de toda a mudança na nossa sociedade e no sistema alimentar os seres humanos continuam a procurar esses atributos num alimento.

// A utilização do conhecimento e da criatividade para a adaptação ao que o território oferecia e condicionava (inclusive do ponto de vista social e económico) incentivou a modificação química, física e organolética dos recursos de forma a estes serem úteis ao ser humano ao longo do tempo. Esse conhecimento adaptativo continua a evoluir e necessita de continuar a desempenhar o seu papel.

// A gastronomia assume-se como uma interpretação cultural do conjunto de recursos disponibilizado pelo meio natural nos diversos locais, exprimindo-se a partir de produtos gastronómicos e receituários. Sendo que a repetição destas práticas dá origem ao que podemos chamar de tradição – acabando por representar os valores simbólicos dos grupos que habitam num território.

// A criatividade e a inovação contra a escassez promoveu um modelo alimentar ao longo do mediterrâneo, e em Portugal também, que é bio diverso, sazonal e de base vegetal incluindo uma diversidade de ingredientes, conhecimentos e práticas culinárias singulares que devem ser preservadas.

// Na prática gastronómica portuguesa (tal como noutras culturas alimentares) a tradição é reflexo da existência de economias circulares prevenindo a desigualdade, promovendo a otimização dos recursos e evitando o desperdício.

// Muita da tradição gastronómica foi produto da criatividade e inovação contra a escassez, numa lógica de sobrevivência, sustentabilidade e num enquadramento histórico, que do ponto de vista ambiental e tecnológico pode ser difícil de sustentar atualmente pelo esgotamento ou sobre exploração de recursos e pela modificação tecnológica, científica e social.

a tradição como evolução e a coexistência com a inovação

// A tradição gastronómica não é imutável, mas é permeável às mudanças que o tempo presente exige nos modos de vida. A tradição apenas se mantém porque, de algum modo, se renova, se adapta, se transforma, evoluindo para servir os propósitos e as necessidades das comunidades presentes.

// Enquanto prática que serve as necessidades biológicas e culturais dos grupos humanos, a tradição pode ter de ser adaptada de acordo com os objetivos de saúde de modo a proporcionar bem-estar sustentável às
comunidades.

A preservação da tradição gastronómica tem um valor patrimonial e histórico por si só, mas este valor pode não significar ou permitir a sobrevivência dessa mesma tradição.

Em determinadas circunstâncias pode valer a pena manter a tradição em paralelo com a inovação e coexistir com os novos produtos pois sem o conhecimento do que é a tradição dificilmente se consegue criar ou inovar, ou seja, adaptar o que se reconhece como próximo das comunidades atualizando e legitimando a sua função alimentar e gastronómica.

A introdução da inovação justificada por necessidades tecnológicas, sociais, de saúde, ambientais ou culturais pode ser promovida através da experiência e saber popular ou do desenvolvimento do conhecimento científico mais atualizado.

A inovação pode ser garante da tradição ao utilizar o conhecimento científico e tecnológico para promover melhorias nos recursos existentes e para aumentar a qualidade e a quantidade promovendo a sustentabilidade ambiental, social e económica.

que orientações para os agentes no terreno? como agir para manter a tradição sem inibir a necessária evolução e criatividade?

// A patrimonialização dos produtos e receituários com o reconhecimento do seu caráter imaterial poderá evitar a fragmentação ou até perda do conhecimento, daí ser tão importante reconhecer e registar documentalmente este aspeto da cultura popular.

// A preservação de uma cultura alimentar obriga a que o seu núcleo se mantenha, pois as comunidades humanas respondem ao que lhe é familiar. Assim, a introdução de mudanças deve ser sempre precedida de um mapeamento, no tempo e no espaço, das caraterísticas desse núcleo percebendo-se as linhas mestras que o suportam.

// A linguagem de uma tradição, ou o conjunto de características nucleares (produtos, técnicas) que é possível conhecer, dominar e utilizar para evoluir na continuidade é um exercício importante que pode variar de produto para produto ou de território para território e que deve ser discutido e registado.

// Inovação não é fazer o novo. É saber e fazer repetidamente o mesmo e depois fazer o mesmo de outra forma.

// A introdução de novos elementos, atualmente como no passado, deverá sempre ser legitimada pelas comunidades e pelo uso que estas fazem da cultura alimentar.

// A disseminação do conhecimento associado a produtos gastronómicos e receitas fez-se pela certeza de que a tradição não obedece a uma lógica de propriedade, é património coletivo, podendo seguir derivações de vária ordem, no tempo e no espaço.

// A autenticidade e genuinidade dos produtos e receituário ocorre pela singularidade dos contextos de produção e pela sua integração cultural, sendo que estes também evoluem. A fixação de regras pode ter um efeito perverso na limitação da criatividade.

// A manutenção da tradição gastronómica ou a sua inovação (quando permitem atingir objetivos de saúde, sustentabilidade ambiental ou económica) deve proporcionar a acessibilidade a todos, a inclusão e o combate à desigualdade social.

// A cultura alimentar de uma região é como o ar que respiramos, deve aprender-se desde muito cedo essencialmente pela boca, no contato com os produtos, e continuar ao longo da vida através da existência de um meio ambiente que permita e facilite a ação e ao mesmo tempo do conhecimento que valorize esta interação.

// O respeito pelo contexto da tradição (ingredientes, métodos de produção e conservação, ambiente geográfico) irá permitir que as práticas alimentares (produtos e receituário) não percam a ligação ao espaço e tempo de origem, permitindo que as mesmas cumpram os objetivos da sua existência.

Santa Maria da Feira, 4 de Abril de 2025

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Escrito por

Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

Pedro Graça Diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto