Para além de valorizar os alimentos e os nutrientes que constituem este padrão alimentar saudável, é necessário refletir sobre as características não alimentares que definem a dieta mediterrânica. Na sua salvaguarda, pode estar a resposta para evitar o desaparecimento deste modo de comer milenar.
O padrão alimentar mediterrânico que engloba múltiplas variações locais, construído de forma lenta e feito de adições sucessivas de plantas e animais, permitidas pelo clima do mediterrâneo e aceleradas pela facilidade de navegar no mar mediterrâneo (do latim mare mediterraneus que significado «o mar que está entre terras») teve início há cerca de 8000 anos, quando a orla costeira se definiu e permitiu o assentamento definitivo do homem nas ilhas e zonas continentais.
No seio deste modelo de relacionamento entre o homem e o meio ambiente, facilitado pela aceleração espácio-temporal que um mar híper transitável estimulou e tornou cosmopolita, desenvolveu-se um padrão alimentar que adicionou sucessivamente a cultura alimentar egípcia, fenícia, grega, romana, árabe e também as regras alimentares das grandes religiões monoteístas, e mais tarde, as vagas sucessivas de globalização alimentar trazidas pelos navegadores e comerciantes portugueses, espanhóis, venezianos e ingleses que nos permitiram descobrir, sucessivamente, milhares de plantas e animais que se adaptaram a este ecossistema. Um ecossistema feito de uma enorme variedade humana, biodiversidade, conhecimento técnico e cultura de base popular que o tornaram património cultural da humanidade.
Características alimentares da Dieta Mediterrânica
Apesar desta enorme diversidade cultural, são significativas algumas características comuns que dão corpo e fazem a síntese desta forma de comer, que nos anos 50-60 do Sec. XX foi classificada de uma forma simplificada por Ancel Keys e colaboradores como “Dieta Mediterrânica” tendo por base a sua relação com o bem-estar e melhoria do estado de saúde das populações que a consomem regularmente. Como o comprovam inúmeros estudos científicos e que fazem deste padrão alimentar o mais estudado em todo o mundo.
Muita da observação do padrão alimentar mediterrânico consiste na enumeração e quantificação dos alimentos presentes ou ausentes neste modelo de consumo, em particular, o azeite, o pão e os cereais, o vinho e os hortícolas. Em 1993, na International Conference on Diets of the Mediterranean, foram estabelecidas as principais características deste modo tradicional de alimentação: Consumo abundante de alimentos de origem vegetal (produtos hortícolas, fruta, cereais pouco refinados, leguminosas secas e frescas, frutos secos e oleaginosos); Consumo de produtos frescos da região, pouco processados e sazonais; Consumo de azeite como principal fonte de gordura; Consumo baixo a moderado de lacticínios, e de preferência sob a forma de queijo e iogurte; Consumo baixo e pouco frequente de carnes vermelhas; Consumo frequente de pescado; Consumo baixo a moderado de vinho, de preferência às refeições. Com mais ou menos variações, este modelo tem sido repetido e estudado, caracterizando este modo de comer.
Neste texto, pretendemos valorizar algumas características para além das estritamente alimentares, que permitam uma discussão mais ampla dos determinantes da adesão a este padrão alimentar e das formas de intervenção pública que permitam salvaguardar este modelo de consumo saudável. Infelizmente, e apesar dos esforços de promoção do seu consumo nas escolas nacionais e da divulgação sobre as suas vantagens, diversos estudos têm vindo a sugerir que este modelo de consumo está a ter cada vez menos adeptos em Portugal, em particular nas populações menos escolarizadas, mais pobres e mais doentes. Precisamente as que mais deveriam adotar um padrão alimentar protetor da sua saúde.
Estas características da dieta mediterrânica que agora identificamos, sobre as quais urge refletir e, eventualmente preservar, são a frugalidade; a base vegetal e a procura constante de produtos de origem animal para a enriquecer; a sazonalidade e adaptação à mudança climática; o conhecimento culinário e, por fim a convivialidade.
Frugalidade
Para entendermos este modo mediterrânico de nos relacionarmos com os alimentos, com as refeições à mesa e com tudo o que rodeia o ato de comer, teremos de olhar para as condições climáticas e dificuldade em ter colheitas produtivas ou regulares na bacia do mediterrânico. E para o trabalho braçal violento que significava cultivar nestas terras onde a água era pouco frequente e os terrenos de qualidade pouco profundos. Nesta relação entre o alimento escasso, de produção irregular e o desgaste físico intenso, reside uma ideia de frugalidade e de equilíbrio constante entre o que se ingere e o que se gasta, e de temor persistente com a carestia alimentar. Equilíbrio energético forçado e ingestão energética adaptada às necessidades ou até abaixo delas que hoje sabemos ser uma pista importante para se compreender a longevidade e eventualmente até a ausência de certos tipos de doença. A palavra frugal, que se escreve praticamente da mesma forma em português, espanhol, francês, italiano, inglês ou até alemão é uma forma de definir quem consome dentro das suas necessidades, de forma parcimoniosa e sem desperdício, um conceito muito atual, mas que define muito bem o modelo de consumo mediterrânico. Atualmente, a adesão ao padrão alimentar mediterrânico é menor nas populações com menor capacidade económica e consequentemente é nestas populações que se identificam piores situações de saúde. São também as populações mediterrânicas, em particular as suas crianças, as que experimentam consumos menos frugais e maiores taxas de obesidade. Um desafio enorme para quem quer salvaguardar este modo de consumo.
Um padrão alimentar de base vegetal e a procura constante de produtos de origem animal para o enriquecer
Decorrente da dificuldade em ter acesso à proteína animal, que necessita de muita água (habitualmente ausente) e pasto para ser produzida, em particular os grandes ruminantes como o gado bovino, e da sua utilização para auxiliar o trabalho braçal, surge outra característica muito marcadora dos padrões mediterrânicos. A utilização massiva das plantas como fonte de energia. Em particular, os cereais e a gordura proveniente da azeitona, mas também leguminosas (grão, lentilhas, ervilhas…) que combinam bem com os cereais para fornecer proteína vegetal. E ainda uma multiplicidade de ervas silvestres (tomilho, orégãos, acelgas selvagens, beldroegas…) e hortícolas que acabam por cobrir muitas das necessidades de vitaminas e minerais, bem como de outras substâncias com características funcionais necessárias no nosso organismo. O que não invalida o desenvolvimento de uma prodigiosa tecnologia de preservação da escassa proteína animal no mediterrâneo, desde o peixe salgado até à enorme variedade de carnes preservadas pelo fumo e sal ou o queijo de cabra e ovelha, que são alimentos centrais pela sua escassez e consequentemente valor simbólico e ritual. Basta reparar no nosso fumeiro tradicional ou no bacalhau. A dieta mediterrânica é, pois, uma dieta de base vegetariana, perfumada ocasionalmente com carne e peixe, e por isso também um modelo ambientalmente sustentável.
Sazonalidade, adaptação à mudança climática e conhecimento culinário
A adaptação ao passar das estações do ano e à oscilação climática é, talvez, outro grande traço distintivo das dietas mediterrânicas que permite elaborar refeições diferentes ao longo do ano, em função do que se encontra e do que a terra dá. Esta capacidade de recolher local e sazonalmente quase tudo o que é fresco e de cozinhar quase tudo o que é possível, utilizando uma culinária altamente elaborada e sofisticada (embora rotulada como simples) para originar pratos saborosos e diversificados, adaptados a uma agricultura incerta e à recoleção permanente é outra capacidade deste padrão alimentar. Talvez nenhum outro padrão alimentar dependa tanto do conhecimento botânico e do conhecimento culinário como este. Aliás, esta perda de conhecimento prático é um dos fatores que o está a condenar rapidamente, à medida que as mulheres, as tradicionais detentoras desse conhecimento envelhecem e se perde muito deste saber fazer oral e ancestral. Uma cartografia urgente onde a antropologia, a sociologia e a nutrição podem colaborar mutuamente.
Convivialidade
Por fim a convivialidade à volta da mesa, o que significa tempo para mastigar, para apreciar e para aprender os sabores e as metodologias de como juntar alimentos. Uma área ainda pouco explorada nas ciências da nutrição, esta da relação e sinergia entre os alimentos e de como a cozedura ou outras técnicas culinárias afetam a disponibilidade de nutrientes ou, ainda, como no decurso de uma refeição, a junção de diferentes alimentos, de forma ordenada, potenciam ou anulam determinados impactos fisiológicos. Ou seja, de como uma refeição com sopa de hortícolas, uma jardineira de carne e fruta fresca, por esta ordem, pode ter um impacto metabólico diferente de uma outra refeição com igual composição alimentar e até nutricional, mas que não esteja assim ordenada, e onde não se utilizem os mesmo processos culinários e tempos de consumo e convívio à mesa. Muito deste conhecimento que agora começa a ser validado cientificamente é identificado em práticas ancestrais de consumo no mundo mediterrânico. Muito provavelmente não pensadas intencionalmente com objetivos de saúde e até ambientais (cozinhar em grupo é amigo do ambiente), mas que se encontram na matriz deste padrão alimentar.
Conclusão
A salvaguarda da dieta mediterrânica necessita de estar associada à salvaguarda de modelos de produção que permitam a proximidade e a sazonalidade da sua base de vegetais frescos a baixo custo, à manutenção do conhecimentos e utilização de técnicas culinárias de raiz mediterrânica e, ao tempo necessário ao consumo convivial. Condições ausentes, por estes dias, numa larga faixa da população portuguesa e que nos afastam cada vez mais da dieta mediterrânica. Ou seja, de conhecimento, acesso a baixo custo e de tempo disponível. Uma área a explorar, tanto na investigação como na intervenção pública e política destinada a preservar este padrão alimentar saudável.
Escrito por
Pedro Graça Diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto