Rotulagem nutricional simplificada e a necessária reflexão

Imagine que certo dia a União Europeia tomava a decisão de atribuir um rótulo simplificado aos livros que compramos. Uma cor verde para os livros absolutamente a ler. Uma cor amarela para os livros medianamente interessantes e uma cor vermelha para os livros com fraca qualidade literária. A atribuição destas cores teria como base critérios previamente definidos por um conjunto de peritos em literatura e divulgados publicamente. A utilização deste algoritmo e a menção a este rótulo e respetiva cor não seria obrigatória, mas as editoras ou os autores que quisessem poderiam mencioná-lo. A grande vantagem da utilização desta nomenclatura seria facilitar a escolha no momento da compra evitando que muitos livros de má qualidade fossem comprados (Na verdade, compramos muitos livros pela estética da capa, por o que nos diz um crítico literário cujo “algoritmo” desconhecemos ou pela menção a um qualquer prémio cujo critério também desconhecemos). Em média, as nossas estantes ficariam recheadas de livros de maior qualidade e os livros assinalados a vermelho teriam tendência a reduzir as suas vendas, até porque livrarias que se prezassem não os colocariam à venda. Por outro lado, as editoras e os escritores, teriam a tentação de identificar o que faz um livro ser considerado digno de ostentar uma cor verde e tentariam criar obras que seguissem o algoritmo estabelecido, realinhando a sua produção em função dos critérios publicitados previamente para a construção do algoritmo como, por exemplo, a criatividade/imaginação/inovação ou a coerência e coesão do texto ou ainda a obediência às características do género em questão. Neste sentido, as obras novas ou antigas deveriam incluir estes ingredientes nas doses adequadas para que o livro, submetido à prova algorítmica, pudesse ostentar a menção de “absolutamente a ler” e ter a sua pintinha verde na capa. A longo prazo, a maioria dos livros à venda teria a menção verde ou então, pura e simplesmente, não teriam símbolo nenhum, pois alguns autores ou editores não iriam aderir a este esquema voluntário de melhoria da “qualidade literária”.

Saímos agora do mundo fantasiado da literatura (onde a leitura de um livro mau não causa, em princípio, problemas sérios de saúde) para o mundo real da “comida no supermercado”, onde chegam a estar empilhados 18 000 produtos alimentares para serem escolhidos e comprados a um qualquer fim de semana, num curto intervalo de tempo que vai de uma a duas horas. A alimentação inadequada ou as escolhas inadequadas a cada fim de semana são os principais determinantes dos anos de vida saudável perdidos pelos portugueses. Nesta curtíssima fração de tempo, decide-se a qualidade de vida que queremos ter a médio prazo. O excesso de sal, açúcar e gordura saturada, a escassez de fibra alimentar ou a ausência de fruta, leguminosas ou hortícolas são exemplos de consumos que nos podem “matar precocemente” ou, pelo contrário, nos podem dar mais anos de vida saudável ou maior resiliência à doença.

E como escolhemos? Como tomamos a decisão de comprar o produto alimentar nutricionalmente mais adequado? A leitura de rótulos tem sido unanimemente apontada pelos especialistas como uma boa forma dos cidadãos se informarem da composição dos alimentos e fazerem escolhas mais informadas (sabemos, contudo, que o fator preço, conveniência, sabor… também devem ser colocados nesta equação que condiciona as escolhas alimentares). Apesar da importância da leitura dos rótulos, ao analisarmos a declaração nutricional, obrigatória a nível europeu e atualmente presente em todos os alimentos embalados, concluímos facilmente que é de muito difícil leitura e compreensão pelo cidadão médio que compra grandes quantidades de alimentos em pouco tempo. Além disso, exige uma grande literacia matemática para converter, por exemplo, quantidades de sal por 100g de alimento para o peso da dose que se compra e para o limite diário individual de 5 g. Este cálculo é quase irrealizável no momento da compra e, mais ainda, é um fator que contribui para as desigualdades em saúde. De facto, a maioria da população portuguesa com mais idade e com menores níveis de escolaridade, apresenta maiores dificuldades na compreensão e utilização desta informação. Ou seja, a população que já tem maior dificuldade no acesso aos cuidados de saúde, que apresenta geralmente uma maior proporção de doença crónica, que tem de gastar proporcionalmente mais com a doença e com a alimentação, é também aquela com maior dificuldade em compreender informação central para prevenir a doença ou impedir a sua progressão.

Para ultrapassar esta dificuldade e criar um sistema simplificado de rotulagem nutricional, que todos percebam facilmente, independentemente da sua condição social, foi proposto e já está a ser utilizado em diversos países como a França, a Bélgica e mais recentemente a Espanha um algoritmo nutricional que quando aplicado aos produtos alimentares embalados permite atribuir uma cor que varia entre o verde (produto alimentar considerado muito interessante nutricionalmente) e o vermelho (para produtos alimentares considerados não interessantes nutricionalmente). Na realidade trata-se de um logótipo retangular a ser colocado na parte frontal da embalagem, dividido em cinco cores (verde, verde-claro, amarelo, laranja e vermelho), ligadas, por sua vez, às letras A a E. Com esta escala, pretende-se descrever sumariamente a qualidade nutricional dos alimentos e, ao mesmo tempo, incentivar uma interpretação fácil e rápida por parte dos consumidores. Empresas multinacionais como a Nestlé, a Danone, a Auschan, Leclerc, Intermarché, Bonduelle ou a McCain apoiam este modelo de informação e já estão a rotular e publicitar os alimentos que produzem com estes símbolos. Segundo os responsáveis, a médio prazo, a maioria dos produtos alimentares vendidos por estas empresas irá ser reformulado e irá apresentar melhorias nutricionais significativas. Desde bolachas a cereais de pequeno almoço e mesmo produtos achocolatados. Muitos produtos alimentares embalados poderão vir a ter uma menção de cor verde ou perto disso. Uma grande parte dos produtos processados vendidos por estas multinacionais serão facilmente reformulados – basta retirar ou adicionar parcimoniosamente 3 ou 4 nutrientes e ostentarão um rótulo que não será vermelho, certamente. As outras empresas ou produtores que não quiserem aderir, até porque podem vender produtos frescos e sem direito a rótulo ou outros que tenham reduzida capacidade de reformulação não deverão querer aderir a este esquema voluntário de melhoria da qualidade nutricional através destas boas práticas de “literacia alimentar”.

O processo está em curso e num futuro já próximo, as prateleiras dos supermercados poderão ter, cada vez mais, produtos alimentares embalados com rotulagem colorida, tornando mais simples as escolhas dos consumidores no dia a dia, independentemente do seu estatuto social. Este será um dos ganhos deste modelo de informação. Muito provavelmente, aumentará a disponibilidade de alimentos embalados com quantidades inferiores de sal e de açúcar e com mais fibra e proteína. Contudo, se não existir um acompanhamento cuidado destes processos, poderá ser dada luz verde ao consumo de muitos produtos alimentares que não se enquadram no modelo de perfil nutricional recomendado pelos nutricionistas, como iremos ver de seguida:

1. A atual rotulagem nutricional, que nos últimos anos tem sido intensamente estudada na população portuguesa muito graças ao esforço da Direção-Geral da Saúde e do PNPAS parece não cumprir o papel de ajudar os consumidores a tomar decisões acertadas. Nesse sentido, os estudos realizados sugerem a necessidade da adoção de sistemas simplificados de rotulagem nutricional como os já adotados na Austrália, no Chile e em outros países. Os trabalhos realizados para a população portuguesa não destacam nenhum esquema de rotulagem simplificado. Todos os modelos estudados parecem ter um bom desempenho face ao existente atualmente.

2. No caso do Nutriscore que aqui analisamos em maior detalhe por ser o modelo sugerido para ser adotado na União Europeia, a atribuição de uma posição de A (verde) a E (vermelho) a um alimento depende de um algoritmo, ou seja, de um cálculo matemático, onde a presença ou ausência de certos nutrientes têm implicações na cor final a atribuir. Desta forma, adicionando fibra e retirando gordura é possível valorizar um alimento, mesmo que ele contenha quantidades consideráveis de açúcar. Isto verifica-se, por exemplo, nos iogurtes e nos cereais de pequeno-almoço. O mesmo pode acontecer com o sal ou outros nutrientes. Neste contexto, uma das questões a ponderar é se teremos atualmente evidência suficiente para definir modelos de perfil nutricional complexos que permitem classificar globalmente um alimento, sem incorrer grandes riscos. Teremos evidência científica que suporte que um produto alimentar com 29g de açúcar e 7g de fibra por 100g classificado com letra C (amarelo) possa passar a ser classificado com a letra B (verde) depois de lhe ser retirado 4g de açúcar e aumentado 1g de fibra, por 100g? Este aspeto merece, certamente, reflexão dos profissionais.

3. Outra questão que está intimamente relacionada com o ponto anterior relaciona-se com o impacto deste modelo de rotulagem na perceção do consumidor, independentemente das eventuais campanhas de educação alimentar que possam ser feitas. Ou seja, o processo irá melhorar a qualidade geral de muitos produtos embalados, mas pode dar uma indicação enganadora, uma vez que um alimento classificado com uma cor verde vai ser percecionado pelos consumidores como um alimento saudável, incentivando o seu consumo. Por exemplo, para algumas categorias de produtos alimentares, a linha que separa um produto C (amarelo) de um B (verde) pode ser uma linha muito ténue relativamente à qualidade nutricional do produto, enquanto que o impacto ao nível da perceção do consumidor poderá ser seguramente significativo. A este respeito seria interessante fazer uma análise “risco-benefício”.

4. Infelizmente, estas imperfeições identificadas no algoritmo do Nutriscore são mais comuns nas categorias dos iogurtes e cereais de pequeno-almoço. Categorias que se destinam maioritariamente a crianças e que apresentam frequentemente os seus alimentos rotulados e publicitados com alegações nutricionais. A evidência tem-nos mostrado que os pais de crianças pequenas são particularmente suscetíveis às alegações nutricionais presentes nos rótulos ou na publicidade dos alimentos, uma vez que são pessoas geralmente motivados em assegurar uma alimentação saudável aos seus filhos.

5. Importará também refletir sobre os motivos que têm levado as grandes empresas produtoras de alimentos a adotar este modelo, após alguma resistência inicial. Certamente por uma questão de responsabilidade social, modificando a composição para melhor de muitos alimentos, o que é ótimo. Por outro lado, o processo vai permitir, com pequenas modificações na composição de 3 ou 4 ingredientes, reescrever a história nutricional do alimento e a perceção pública deste, transformando produtos anteriormente percecionados como pouco interessantes nutricionalmente em produtos nutricionalmente interessantes. Este é um assunto que deve merecer a atenção dos Nutricionistas. Iremos ter cereais minimamente processados como flocos de aveia com a mesma classificação de cereais altamente trabalhados industrialmente com manipulação intensa nos seus ingredientes e porventura com um perfil nutricional em nada semelhante (com cerca de 24x mais açúcar por exemplo) para que fiquem com um resultado igualmente positivo. Ou seja, cereais com sabor a chocolate com a mesma classificação de flocos de aveia. Cria-se aqui de facto uma oportunidade grande para as estratégias de marketing destas empresas. A experiência da Austrália e da Nova Zelândia, que já implementaram modelos de rotulagem nutricional simplificada que têm algumas semelhanças com o Nutriscore, têm mostrado precisamente isso. Estes modelos têm colocado frequentemente em causa as recomendações alimentares e podem promover o marketing indiscriminado de alimentos que podem não se enquadrar num padrão alimentar saudável. E com isso surgirá mais um grande desafio para quem faz educação alimentar e para os educadores no geral e que deve merecer atenção.

6. Uma análise realizada por nós a 17 de dezembro de 2020, referente a uma amostra de 91 produtos alimentares disponíveis no mercado português já rotulados com o Nutriscore, mostra que 57% são classificados com letra A ou B (“verdes”). Se olharmos em concreto para as duas categorias mais críticas, onde consideramos que o Nutriscore um bom desempenho menos eficiente, este valor sobe para 80% e 87%, para os iogurtes e para os cereais de pequeno-almoço, respetivamente. Para os cereais de pequeno-almoço, os produtos alimentares rotulados com A ou B apresentam em média um teor de açúcar de 17,3g (min=9g e max=27g). E para os iogurtes, os produtos rotulados com A e B apresentam em média um teor de açúcar de 7,1g (min=0,7g e max=13g).

7. Estas reflexões tornam-se ainda mais relevantes se considerarmos que em paralelo à discussão sobre a adoção do Nutriscore no seio da EU, se discute também a possibilidade de instituir um perfil nutricional comum para a regulação da publicidade alimentar dirigida a crianças. Um modelo de perfil nutricional baseado no algoritmo do Nutriscore poderia deixar a descoberto muitos produtos alimentares, cuja publicidade se encontra hoje proibida seguindo os critérios de perfil nutricional da Organização Mundial da Saúde.

A rotulagem nutricional simplificada é uma medida de saúde pública que pode representar ganhos muito importantes para a literacia e saúde das populações, sendo que nos temos posicionado sempre favoravelmente a sua implementação em Portugal (incluindo a opção Nutriscore). Contudo, estas ferramentas necessitam de aperfeiçoamentos no algoritmo e constante reflexão por parte dos nutricionistas, para que se possa garantir, desde logo, um dos princípios básicos da implementação de qualquer medida de saúde pública – “first do no harm”. O nosso valor como profissionais depende também da capacidade de contribuir para uma discussão aprofundada e baseada em evidência científica de qualidade, nestes e noutros temas.

P.S.  Os autores declaram não ter conflito de interesses neste tema. Maria João Gregório é Diretora e Pedro Graça consultor do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável da Direção-Geral da Saúde.

Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website
Maria João Gregório 1
Maria João Gregório
Nutricionista, Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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