Sobre epidemias e alimentação

Desde tempos imemoriais que o ser humano tem necessidade de transmitir aos seus mais próximos um conjunto de informações sobre o que comer e quando comer. Por uma questão de sobrevivência. Uma fonte de água contaminada ou um cogumelo fora do seu sítio podiam dizimar parte do grupo e colocar em causa a vida de todos. Esta informação passou depois a ser escrita e quem a detinha possuía um poder alargado. Conhecimento que se transpôs rapidamente para cânones que permitiram o domínio social, económico e religioso. Basta recordar o Antigo Testamento ou Bíblia hebraica no livro de Levítico, onde é feita uma longa descrição dos animais puros e impuros e de um grande conjunto de regras sobre como e quem pode lidar com estas categorias de alimentos. Regras alimentares que ainda hoje perduram nas principais religiões monoteístas. A ideia de identificar perigos alimentares, contaminantes e outros riscos para a existência e eventual hegemonia dos grupos, tornou-se norma nestes últimos milhares de anos. Segundo especialistas como Samuel Paul Veissiere, os humanos têm esse viés de negatividade e “tendem a ser obcecados com qualquer coisa que transmita informações sobre ameaças potenciais por razões óbvias de sobrevivência”. Segundo ele, “a cognição humana funciona dessa maneira, as pessoas prestam mais atenção às informações negativas, lembram-se mais, sentem-se mais motivadas a transmiti-las aos outros. E vemos muito disso na Internet agora que as pessoas estão interconectadas o tempo todo. Então esse é o tipo geral de estrutura evolutiva”.

Este modelo de comunicação, com influências seguras do “viés de negatividade”, apurou-se ao longo de séculos de epidemias, particularmente quando os aglomerados humanos aumentaram de dimensão na idade média e surgiram as pestes mais mortíferas. A Peste Negra no século XIV é um exemplo deste evento que provocou grande impacto na população (estima-se que tenha vitimado pelo menos um-terço da população europeia, particularmente entre os anos de 1346 e 1353) e que ainda hoje influencia o nosso pensamento e ação. Mais tarde, a Grande Peste de Lisboa em 1569 terá matado 600 pessoas por dia, ao todo 60 000 habitantes da cidade terão sucumbido.
Em todos estes casos, as plantas e os hábitos alimentares tiveram grande significado para as populações. As medidas profiláticas recomendadas pela Faculdade de Paris, em 1348, compreendiam a fumigação dos domicílios com incenso de flores de camomila bem como as praças e lugares públicos. As pessoas deveriam abster-se de comer galinha ou carnes gordas e azeite. Os banhos eram considerados perigosos e as relações sexuais fatais. Faziam-se recomendações do que não se podia fazer ou comer, baseadas em crenças e sem conhecimento credível, divulgando-se informações muitas vezes erradas e que contribuíam, em muitos casos, para piorar a situação sanitária.

Hoje, em pleno Séc. XXI a circulação de informação de má qualidade continua a ser um fator decisivo no desenrolar das epidemias modernas. Quer sejam víricas quer sejam pelo consumo excessivo de certos alimentos. Por isso, podemos afirmar que existe uma relação entre esta crise de saúde pública provocada pelo SARS-CoV-2 e as questões de saúde pública relacionadas com a alimentação e nutrição. Não tanto porque a alimentação possa prevenir ou curar esta nova doença, mas mais pelas semelhanças entre quem analisa e discorre sobre o assunto.
Quem trabalha na área das ciências da nutrição há algum tempo constata a proliferação quase exponencial de conteúdos sobre nutrição nos meios de comunicação social e, mais tarde, nas redes sociais. As razões são múltiplas, desde o crescimento da ciência publicada até ao interesse dos cidadãos, cada vez mais preocupados com esta associação entre saúde e alimentação. Por outro lado, apesar do conhecimento nutricional merecer o mesmo rigor de outros domínios científicos, as interações diárias com as práticas alimentares (todos comemos) e os aspetos culturais associados à nossa alimentação (todos somos expostos) parecem levar a crenças nutricionais generalizadas baseadas em estudos científicos ocasionais e intuição popular, mais do que na ciência sólida. E ao aparecimento dos mais variados comentadores e pseudo especialistas em nutrição que a cada dia sustentam as mais variadas teorias e soluções para os problemas na área. Chegou agora a hora da virologia. No atual momento e pelo facto de todos termos acesso a alguma informação e de experimentarmos o problema de muito perto, surgem também em grande profusão os especialistas em epidemias. Nestas alturas de crise parece que é necessário falar. Quase por necessidade natural. Como diz o filósofo José Gil no seu recente ensaio sobre o medo “Comunicar com os outros e com a comunidade é furar a bolha, alargar os limites do espaço e do tempo, tomar consciência de que o nosso mundo se estende muito para além dos quartos a que estamos confinados”. Infelizmente, e tal como acontece nas Ciências da Nutrição, a solução para a maior parte dos problemas reside no bom senso, conhecimento, consciência e tomada de decisão individual e não em soluções fáceis, rápidas e que os outros possam tomar por nós.

Na relação entre o SARS-CoV-2 e a alimentação também não existem soluções mágicas e quem o disser, no estado atual do conhecimento científico, pode não estar a guiar-se pela melhor evidência científica. Após contacto com o vírus, a maioria das pessoas desenvolve doença ligeira, sendo a probabilidade de complicações graves mais comum em pessoas de grupos etários mais velhos, na presença de outras doenças crónicas (por ex. diabetes) ou em casos de imunidade reduzida. A evidência científica é escassa no que diz respeito à relação entre alimentação e o reforço do nosso sistema imunitário. Sabemos que, no geral, um estado nutricional e de hidratação adequados contribuem para um sistema imunitário otimizado. Assim, e apesar de, provavelmente, não existir um só alimento, nutriente ou suplemento capaz de modificar o curso da doença, no seu todo, uma alimentação que siga as regras da Roda dos Alimentos e que permita manter um bom estado nutricional poderá fazer a diferença face aos que não a seguem.

O papel dos nutricionistas é pois o de comunicar mensagens simples. E ajudar a preservar a cadeia de abastecimento, informando sobre a necessidade de não se comprar mal e em demasia. O de promover uma alimentação equilibrada nas muitas crianças que vão reduzir a sua atividade física, de forma a que a obesidade infantil não cresça nestas semanas. E ajudar a recuperar os que estão debilitados e hospitalizados, contribuindo para um adequado suporte nutricional, caso a caso. Esperamos que na área alimentar o bom senso prevaleça. E que os nutricionistas contribuam com o seu conhecimento científico para decisões informadas por parte dos cidadãos nestes momentos de preocupação e intranquilidade.

Nota 1 – A atual situação de saúde permite-nos ultrapassar algumas orientações editoriais comuns em outros textos do Pensar Nutrição.

Nota 2 – Os autores agradecem ao Prof. Doutor Nuno Borges e ao Prof. Doutor Alejandro Santos os contributos para a produção deste texto.

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Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça

Pedro Graça Diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto |Website

Maria João Gregório 1
Maria João Gregório
Nutricionista, Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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