Introdução
Durante algum tempo, pensou-se que a capacidade técnica crescente dos profissionais de nutrição, a melhoria do conhecimento das relações entre o consumo alimentar e a doença, a melhoria da capacidade de tratar as doenças de base alimentar, o aumento do reconhecimento público dos nutricionistas e o progressivo aumento da produção alimentar seriam suficientes para resolver progressivamente os problemas alimentares no mundo e as doenças que têm como base um consumo alimentar desequilibrado. Infelizmente, a realidade afasta-se desta premissa.
Em 2023, 733 milhões de pessoas passavam fome no mundo, ou seja 1 em cada 11 pessoas e 1 em cada 5 pessoas em África. Mais 152 milhões do que em 2019. Tendo em conta as projeções para 2030, os números da fome mantêm-se proporcionalmente inalterados desde 2015, altura em que as Nações Unidas lançaram os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) onde erradicar a fome era um objetivo central para 2030. Em 2023, estima-se que mais de 2,3 mil milhões de pessoas sofram de insegurança alimentar moderada ou severa, sendo que em África esta situação afeta quase 60% da população. Depois de uma redução ligeira no número de pessoas com fome crónica durante a década 2010-2020, este número voltou a aumentar significativamente desde 2017. Este fracasso na irradicação da fome é ainda mais significativo quando o planeta tem capacidade para produzir alimentos para toda a população. Os dados sobre a produção alimentar no mundo, embora estejam longe de ter a qualidade desejada, sugerem que a insegurança alimentar não se relaciona diretamente com a escassez de alimentos, mas sim com questões estruturais de acesso ao alimento.
A incapacidade do acesso a “dietas saudáveis” ou padrões alimentares saudáveis afeta mais de um terço da população mundial. Estima-se que em 2022 mais de 2,8 mil milhões de pessoas não tenham condições económicas para ter uma “dieta saudável”. Esta disparidade é mais acentuada nos países de baixo rendimento, onde 71,5 por cento da população não pode pagar uma “dieta saudável”, em comparação com 6,3 por cento nos países de alto rendimento. A referência a “dieta saudável” das Nações Unidas inclui consumos de referência em termos energéticos para seis grupos de alimentos: alimentos ricos em amido; alimentos de origem animal; leguminosas, frutos gordos e sementes; hortícolas; fruta; e óleos e gorduras. Onze alimentos dos seis grupos alimentares recomendados fornecem um total de 2330 kcal por dia, o que representa as necessidades energéticas médias de uma mulher jovem e ativa. De um modo geral, o acesso a uma “dieta” saudável parece ser mais difícil em populações pobres, rurais e em mulheres, sugerindo um forte gradiente social como determinante da possibilidade de realizar uma alimentação saudável. Em Portugal, no que diz respeito à mortalidade, os hábitos alimentares inadequados foram o terceiro fator de risco que mais contribuiu para o total de mortes em Portugal em 2021 (8,3%). Para os fatores de risco alimentar, os dados do Global Burden of Disease mostram que, em Portugal, o elevado consumo de bebidas açucaradas (+37,13%), o elevado consumo de carne vermelha (+22,53%), o elevado consumo de carne processada (+21,59%) e o baixo consumo de hortícolas (+21,51%), foram os fatores de risco onde se verificou um maior aumento nos “anos de vida perdidos por morte ou incapacidade” entre 2000 e 2021.
As doenças de base alimentar continuam a aumentar em Portugal e em todo o mundo. As novas estimativas da obesidade adulta revelam um aumento constante ao longo da última década, de 12,1 por cento (2012) para 15,8 por cento (2022). As projeções indicam que, até 2030, o mundo terá mais de 1,2 mil milhões de adultos com obesidade. O duplo impacto da malnutrição – a coexistência da desnutrição com o excesso de peso – também aumentou globalmente em todos os grupos etários. Em Portugal, o excesso de peso, que inclui a pré-obesidade e a obesidade, atinge 67,6 % da população adulta portuguesa e a obesidade apresenta uma prevalência de 28,7 %. Também em crianças a prevalência do excesso de peso é elevada, sendo que em 2022, 31,9 % das crianças dos 6 aos 8 anos apresentava excesso de peso e 13,5 % vivia com obesidade. De acordo com as projeções da Organização Mundial da Saúde (OMS), Portugal, à semelhança dos outros países da região europeia da OMS, está a seguir uma trajetória de evolução que dificilmente irá permitir o cumprimento da meta relativa ao não crescimento do número de pessoas com excesso de peso e obesidade até 2025. Para além da obesidade, as outras doenças com forte influência alimentar como a diabetes ou a hipertensão parecem ter um forte gradiente social. Em Portugal, a prevalência de diabetes, hipertensão arterial e obesidade, variou em função da idade, escolaridade e situação perante o trabalho, sendo sistematicamente superior na população mais idosa, com o nível de escolaridade mais baixo e sem atividade profissional remunerada.
Para além da inadequação alimentar e doenças associadas com um forte gradiente social e que necessitam de ser compreendidas de uma forma mais ampla, enquadradas num sistema alimentar global desde a produção ao desperdício, a produção e o acesso aos alimentos começam a ser, cada vez mais, influenciadas pelas alterações climáticas. Tendo estas premissas por base, foi publicado em janeiro de 2019 pela Lancet Commission on Obesity liderada pelo Professor Swinburn o relatório “The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition and Climate Change”, que introduz o conceito de Sindemia Global.
Num ensaio anterior abordamos o conceito de Sindemia ou “epidemia sinérgica” para tentar explicar “a sinergia existente entre as epidemias da malnutrição (obesidade e desnutrição) e as alterações climáticas. Dois problemas à escala global, de natureza complexa, com causas e determinantes sociais comuns e com consequências para a saúde humana e do planeta.” De novo, parece-nos importante compreender a configuração dos sistemas alimentares para compreender o que molda as escolhas dos cidadãos. “Os sistemas alimentares, devido à sua configuração atual, em que se promove a agricultura intensiva, a produção de proteína animal ou o transporte maciço de alimentos através dos sistemas rodoviários, acabam por favorecer a existência de alimentos processados com elevada densidade energética e de baixo valor nutricional a baixo custo que impulsionam as pandemias de obesidade e desnutrição, mas também geram de 25-30% das emissões de gases do efeito estufa (GEEs). Se este modelo de produção, consumo e transporte alimentar acelera as mudanças climáticas, por sua vez, estas mudanças, a ocorreram, acabarão por aumentar o risco de desnutrição das populações mais vulneráveis e com menor capacidade de resiliência a eventos climáticos extremos como secas, cheias ou mudanças súbitas nos preços dos produtos alimentares básicos.”
O insucesso continuado no combate à fome, na promoção de uma alimentação saudável e sustentável e no combate às doenças de base alimentar como a obesidade devem obrigar os profissionais de nutrição a uma reflexão sobre o modelo de atuação que está generalizado e como se pode modificar pensamento e ação para uma maior efetividade. Esta reflexão é fundamental para os nutricionistas e para todos os profissionais de saúde que trabalham na área da alimentação, pois de certa forma são parte interessada nestes processos. É sobre isto que nos propomos refletir nos próximos passos.
A – Modelos de atuação do nutricionista – Intervenções de base individual
A atuação dos nutricionistas e da maioria das outras profissões da saúde para lidar com as doenças de base alimentar e com a alimentação inadequada tem sido centrado na promoção da alimentação saudável e na prevenção e tratamento da doença tanto sobre o consumidor como sobre o doente.
Os alimentos são assim considerados o principal agente da doença, particularmente os alimentos com elevada densidade energética. A par do consumo deste tipo de alimentos, a reduzida atividade física e outros fatores ambientais interagem com a suscetibilidade genética do hospedeiro para produzir um balanço energético positivo.
O pressuposto mais recorrente tem sido o de que o consumo inadequado é uma questão de escolha e responsabilidade individual. Contudo, e face à continuação do crescimento das doenças de base alimentar, ao insucesso no combate à obesidade e à manutenção do consumo de alimentos considerados desadequados do ponto de vista nutricional, ou seja, face a incapacidade de mudar o atual paradigma alimentar e de doença, tem vindo a crescer a ideia (com alguma investigação associada) de que o ganho de peso e a resistência à perda de peso não residem nas dificuldades individuais conscientes mas estão dependentes de processos cerebrais que estão para além da experiência consciente. A regulação do apetite poderia assim ser modelada por fatores extrínsecos à vontade. Isto apesar da regulação da ingestão energética e do aumento da atividade física continuarem a ser ferramentas a utilizar com sucesso em algumas pessoas.
A perceção de que o tratamento da doença de base alimentar, como a obesidade, deve ser realizada utilizando uma intervenção individualizada que recomende a mudança do estilo de vida (melhor alimentação e mais exercício físico) associado à terapia farmacológica e à cirurgia, significa, para quem advoga esta narrativa, uma alternativa à anterior narrativa de culpabilização e avaliação moral, que era altamente promotora do estigma. Neste novo modelo, pretende-se que a “medicalização” da obesidade, como outra qualquer doença, por exemplo como a hipertensão, possa remove-la da esfera moral, reduzindo o estigma e a culpabilização do doente. De notar que “‘medicalização‘ descreve um processo pelo qual os problemas humanos passam a ser definidos e tratados como problemas médicos”. Portugal é um dos países que já reconheceu a obesidade como doença, embora a medicalização da doença seja ainda uma opção pouco discutida publicamente e conscientemente pouco aplicada.
Este modelo de intervenção sobre as doenças de base alimentar, em particular sobre a obesidade, parece poder ser importante para reduzir o estigma e a culpabilização do doente e abre novas perspetivas a uma intervenção personalizada e com sucesso em casos específicos. Esta nova narrativa, que tem vindo a ser fortemente promovida pela indústria farmacêutica e pelas classes profissionais associadas à saúde, nomeadamente a classe médica, levanta outras preocupações.
A primeira é a de que continua a concentrar a resposta a nível individual, embora de forma menos culpabilizante sobre o próprio, por eventuais falhanços. Neste modelo, a escolha continua a ser do próprio. Também a capacidade de tomar uma decisão face ao tratamento e, em última instância, o pagamento do tratamento e a capacidade para pagar o tratamento dependerá da capacidade económica individual. Tendo em conta o custo destas intervenções personalizadas, a capacidade individual para tomar decisões dependerá muito da capacidade económica do individuo ou do Estado, caso os cidadãos coletivamente (o Estado) queiram assumir este princípio de que estas doenças não são de responsabilidade individual.
De realçar que a alimentação inadequada e as doenças de base alimentar são hoje tão frequentes na sociedade (mais de 2 milhões de obesos e 1 milhão de diabéticos, por ex) que qualquer intervenção pública nesta área e abrangente para todos os necessitados terá custos muito elevados e praticamente incomportáveis e que poderão continuar, caso não se consiga resolver ou melhorar substancialmente a origem do problema.
Podemos sintetizar a dimensão do problema, apenas na versão farmacológica, com um exemplo recente que transformámos num Caso de Estudo – O tratamento da obesidade com terapêutica farmacológica.
Caso de Estudo – O tratamento da obesidade com terapêutica farmacológica
A GLP-1 é uma incretina secretada pelas células enteroendócrinas L nas mucosas do íleo e cólon, (1) foi identificada pelo seu papel em estimular a secreção de insulina, inibir a secreção de glucagon e a motilidade gástrica, ambos efeitos essenciais na regulação da homeostasia da glicose (2-4). De fato, estudos mostraram que a inibição da secreção do glucagon pelo GLP-1 é tão importante quanto o aumento da secreção de insulina no controle dos níveis de glicose na diabetes mellitus tipo 2 (DM2).(5) Além do seu papel no metabolismo da glicose, sabe-se que o GLP-1 possui efeitos cardio e neuroprotetores, reduz a apoptose celular e a inflamação, e modula o comportamento de recompensa e a palatabilidade (6,7). Além disso, o GLP-1 exerce um efeito significativo no peso corporal ao inibir a ingestão de alimentos através de mecanismos mediados centralmente. (6) Este último aspeto despertou um tremendo interesse no GLP-1 e, juntamente com o GIP, colocou ambos numa trajetória como candidatos promissores para o tratamento da obesidade. A ação fisiológica do eixo GLP-1/GIP, portanto, tornou estas hormonas intestinais alvos terapêuticos atraentes para tratar a DM2 e, subsequentemente, a obesidade. Em particular, o agonismo do recetor do GLP-1 (GLP-1R) não só emergiu como uma ferramenta poderosa no tratamento da DM2 e do excesso de adiposidade (8), mas também mostrou efeitos favoráveis no sistema cardiovascular (9) e nas doenças neurodegenerativas. (7) Isso destaca que os agonistas do GLP-1R têm um perfil de ação apreciável fora dos seus alvos originais no pâncreas. (7)
De acordo com a informação disponível no índice Nacional Terapêutico online (10) para o agonista do recetor GLP-1 semaglutido (disponível em Portugal com a marca Ozempic) a posologia orientativa, no tratamento de adultos com diabetes mellitus tipo 2 insuficientemente controlada, como adjuvante à dieta e exercício indica que após, pelo menos, 4 semanas com uma dose de 0,5 mg uma vez por semana, a dose pode ser aumentada para 1 mg uma vez por semana para melhorar o controlo glicémico. Assim, um doente necessitaria de 4 mg de semaglutido por mês. Se admitirmos que a apresentação de uma caneta pré-cheia 3 ml sol. inj. (1 mg/0.74 ml) é suficiente para um mês de tratamento, e que o preço unitário da mesma é de 106.87€ sem qualquer comparticipação estatal ou privada, (10) o custo anual do tratamento por doente será só para este medicamento de 1282,44 €Euros.
Em 2021, a Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) aprovou o semaglutido de administração semanal na dosagem de 2.4 mg para o tratamento da obesidade. Após 68 semanas de tratamento, o semaglutido reduziu de forma impressionante o peso corporal em doentes não diabéticos com obesidade em 14,9%, em comparação com 2,4% em controlos tratados com placebo. (11) Em contraste, o semaglutido foi menos eficaz em sujeitos com obesidade e DM2, com uma perda de peso corrigida pelo placebo de apenas 6,2% relatada após 68 semanas de tratamento. (12). Assim, para tratar obesidade seriam necessários 9,8 mg de semaglutido por mês, o que implicaria no nosso país uma apresentação com dosagem ajustada a estes valores. Contudo, se admitirmos o uso da apresentação atual disponível no nosso país seriam necessárias 2,5 canetas pré-cheias de 3 ml sol. inj. (1 mg/0.74 ml) para um mês de tratamento, e que o preço unitário da mesma é de 106.87€ sem qualquer comparticipação estatal ou privada, (10) o custo mensal do tratamento por doente será só para este medicamento de 267,18 € e o valor anual de 3206,16 €.
Se por hipótese 250 000 doentes com diabetes mellitus tipo 2 fossem tratados com semaglutido, 1 mg/semana, esta intervenção representaria, face aos valores acima apresentados, uma despesa de 320.610.000,00 €. Isto é equivalente a 13,07% da despesa total com medicamentos em ambulatório no ano 2023 em Portugal continental (ver tabela infra).
Se por hipótese 250 000 doentes com obesidade fossem tratados com semaglutido, 1 mg/semana representaria face aos valores acima apresentados uma despesa de 801.540.000,00 Euros. Isto é equivalente a 32,67 % da despesa total com medicamentos em ambulatório no ano 2023 em Portugal continental (ver tabela infra).
Face à prevalência da obesidade e DM2 no nosso país podemos argumentar que o número de doentes a tratar acima considerado não pecaria por excesso, mesmo assim teria um efeito enorme na despesa com medicamentos em ambulatório.
Despesa com Medicamentos no Ambulatório em Euros
Período | Ano 2023 |
Região | Portugal continental |
Encargos SNS (Ambulatório) | 1.593.847.981,50 |
Encargos Utentes (Ambulatório) | 859.633.237,07 |
Total | 2.453.481.218,57 |
É importante ainda considerar que de acordo com a European Medicines Agency (EMA), os agonistas do receptor GLP-1 Bydureon, Byetta, Lyxumia, Ozempic, Rybelsus, Trulicity e Victoza são indicados apenas para diabetes, enquanto Saxenda e Wegovy são indicados para gestão de peso corporal como um complemento à dieta e exercício físico em pessoas que têm obesidade ou, sobrepeso com problemas de saúde relacionados ao peso. O Mounjaro é autorizado pela EMA, tanto para diabetes como para gestão de peso sob certas condições. Qualquer outro uso representa um uso não aprovado que irá piorar a já existente escassez destes medicamentos no mercado. Os agonistas do recetor GLP-1 não são aprovados para, e não devem ser usados para perda de peso cosmética, ou seja, para perda de peso em pessoas sem obesidade ou pessoas com sobrepeso que não têm problemas de saúde relacionados ao peso. Os profissionais de saúde devem considerar oferecer a essas pessoas conselhos sobre estilo de vida em alternativa a estas terapêuticas (13).
Sendo a obesidade considerada como uma doença crónica complexa, o uso de medicamentos inovadores no seu tratamento, como os agonistas dos recetores GLP-1, teria de ser encarado como terapêutica de longo prazo ou mesmo para toda a vida. Além do enorme custo associado, infelizmente ainda não se sabe ao certo se existem efeitos colaterais ou complicações que se manifestem apenas com o uso prolongado, especialmente quando esses medicamentos são utilizados para redução de peso corporal que implicam habitualmente dosagens mais elevadas do que as usadas no tratamento da DM2. Assim, mesmo em casos de sucesso na promoção da perda peso, se não houver uma simultânea e relevante alteração de fatores de estilo de vida, um número indeterminado de doentes poderá não conseguir manter o tratamento farmacológico (por efeitos adversos, custo, etc.) e sofrerá a consequente recuperação de adiposidade corporal e agravamento das patologias associadas à obesidade.
De sublinhar ainda que a alimentação inadequada e as doenças de base alimentar são mais frequentes nas classes sociais mais baixas, precisamente as com menos capacidade de pagar este modelo de nutrição personalizada. Ou seja, toda e qualquer intervenção utilizando este modelo teria de ser bem pensada para não aumentar as desigualdades já existentes na saúde e na alimentação.
Estes são alguns obstáculos a este modelo de intervenção personalizada que poderá ser adotado, em particular nas situações em que o custo-benefício para o doente seja evidente, mas que ainda assim, não resolverá o problema da obesidade nem o que a determina. E muito menos mudará o curso da adoção modelos de consumo alimentar que conduzem a estas doenças.
Vale a pena retornar à obesidade e passar em revista uma análise feita recentemente sobre os determinantes da obesidade na América Latina, mas que poderemos estender com facilidade a outras partes do mundo. Segundo os autores, os determinantes da obesidade têm uma causa maioritariamente sistémica que vai para além da escolha ou características individuais. Nestes oito determinantes poderemos incluir: O ambiente físico, a exposição aos alimentos, os interesses políticos e económicos, as desigualdades sociais, o acesso limitado ao conhecimento de base científica, a cultura, o contexto comportamental e os fatores genéticos.
Fig. 1 Determinantes da obesidade na América Latina
Este texto publicado recentemente pela Prof.Sandra Ferreira da Universidade de São Paulo e colegas na Nature Metabolism remete para o ambiente obesogénico uma parte substancial da responsabilidade pelo aparecimento e desenvolvimento da doença. Outros autores como Meijers P e colaboradores e Nicolaidis S têm relacionado o ambiente construído (o planeamento urbano, os transportes, a facilidade de deslocações a pé, o sedentarismo que promove o excesso de tempo em frente aos ecrãs) e os fatores agroalimentares como a disponibilidade local de certos alimentos e a sua promoção como centrais na génese da obesidade. Para além do exame analítico dos fatores promotores de um “ambiente obesogénico”, é de referir o efeito cumulativo que tende a coexistir na mesma população, ampliando assim as suas consequências patogénicas. Além disso, é habitual encontrarmos mais do que um determinante da obesidade na mesma população porque é a expressão de outra causa comum subjacente – a pobreza;
Dada a complexidade e inter-relação entre estes fatores, aparentemente externos ao indivíduo, vale a pena olhar para o sistema alimentar como um todo, que é o principal determinante da nossa forma de comer. E tentar perceber como podemos atuar sobre este sistema considerado habitualmente como algo afastado do nosso raio de ação.
Modelos de atuação do nutricionista – Intervenções de base coletiva
Para se trabalhar sobre os determinantes sistémicos do nosso padrão alimentar, teremos de compreender o sistema alimentar. Podemos definir os sistemas alimentares como o conjunto de pessoas, instituições, locais e atividades que desempenham um papel relevante na produção, transformação, transporte, venda, comercialização e, em última análise, no consumo de alimentos. Os sistemas alimentares influenciam os padrões alimentares, determinando os tipos de alimentos que são produzidos, os alimentos que são acessíveis, tanto física como economicamente, e as preferências alimentares das pessoas. São também fundamentais para garantir a segurança alimentar e nutricional, os meios de subsistência das pessoas e a sustentabilidade ambiental.
Por exemplo, a decisão de plantar uma vinha e produzir vinho pode ser estimulada por dinheiros públicos e pela vontade política de apoio à produção e, em última instância, quase no final do sistema alimentar, a disponibilidade e promoção de bebidas alcoólicas pode estar dependente de regras de regulação que são iniciativas do Estado onde o cidadão também pode ter um papel mais ou menos ativo. Outros exemplos poderão ser dados onde a participação do cidadão pode ajudar a moldar o sistema alimentar, embora tal nem sempre seja visível ou até possível. Em muitas situações, o sistema alimentar responde a estímulos económicos e ultimamente a alterações climáticas onde a capacidade de intervenção do cidadão pode ser menor.
Em Portugal e ao longo das últimas décadas, ocorreram diversas intervenções sobre o sistema alimentar que tiveram impacto na produção, na disponibilidade, no acesso e nas preferências dos cidadãos. Por exemplo, as ajudas à produção de azeite que tornaram Portugal um grande produtor e exportador de azeite, embora não se tenha conseguido reduzir o custo ao consumidor nos últimos anos. O aumento da oferta por parte da distribuição e o alargamento dos horários dos estabelecimentos comerciais que facilitaram o acesso aos alimentos. A aprovação da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro que criou o “Imposto Especial de Consumo de Bebidas adicionadas de Açúcar ou Edulcorantes” que permitiu uma diminuição de 36% da proporção de bebidas enquadradas no escalão mais elevado do imposto (teor de açúcar igual ou superior a 8 g/100 mL) e o aumento de 54% nas bebidas que se enquadravam no escalão mais reduzido (teor de açúcar inferior a 2,5 g/100 mL), sugerindo assim que as bebidas refrigerantes atualmente mais consumidas pelos portugueses apresentam atualmente um teor de açúcar significativamente menor. A aprovação da Lei nº30/2019, de 23 de abril, que introduziu restrições à publicidade alimentar dirigida a menores de 16 anos, ou ainda, a implementação de medidas que incentivaram a reformulação de produtos alimentares. Os resultados do processo de reformulação dos produtos alimentares em Portugal, entre 2018 e 2021, permitiram uma redução global de 11,5% e de 11,1% no teor médio de sal e de açúcar (100 g), respetivamente, nos produtos abrangidos por este compromisso (batatas fritas e outros snacks, cereais de pequeno-almoço e pizzas (sal) e cereais de pequeno-almoço, iogurtes e leites fermentados, leite achocolatado, refrigerantes e néctares (açúcar)). No global, estima-se que, no referido período, tenha existido uma redução de cerca de 25,6 toneladas de sal e 6256,1 toneladas de açúcar nos alimentos abrangidos.
Apesar do sucesso de muitas destas medidas, elas são ainda escassas e incentivadas maioritariamente por instituições públicas, com mandatos para intervirem na área da promoção da alimentação saudável, como é o caso da Direção-Geral da Saúde. Estas iniciativas são ainda uma pequena amostra do que poderia ser feito se existisse uma maior capacidade e interesse por parte dos profissionais de saúde, nomeadamente dos nutricionistas e também de organizações da sociedade civil para uma intervenção mais continuada, eficiente e organizada sobre o sistema alimentar que deveria complementar as intervenções de base individual que são essenciais também.
A frágil participação dos cidadãos portugueses e dos próprios profissionais de saúde nas políticas públicas e nos sistemas que influenciam a sua saúde e seu bem-estar (como é o caso do sistema alimentar) está ainda pouco documentada.
Podemos entender a participação política como as ações voluntárias levadas a cabo pelo público para influenciar as políticas públicas, quer diretamente, quer indiretamente através da seleção dos decisores políticos. Estas ações podem incluir atividades como votar, fazer campanha, doar, contactar políticos, apresentar petições, protestar e colaborar com outros em várias questões.
Umas das explicações para a frágil participação ou ação dos profissionais de saúde sobre os processos políticos e sobre as questões sistémicas que determinam o consumo alimentar pode prender-se com os formatos de representação e expressão das classes profissionais, através de ordens profissionais, sindicatos e até de sociedades científicas que privilegiam maioritariamente as respostas aos problemas individuais e mais prementes dos seus membros, relacionados com o seu estatuto profissional, com a progressão na carreira, com o emprego, com a qualificação do trabalho e remuneração, com a proteção do cidadão enquanto consumidor de produtos de saúde ou ainda com as intervenções centradas no doente e nas doenças de base alimentar, aliás de grande expressão na sociedade. A concentração de esforços nestas áreas deixa pouco espaço para uma atuação sobre o sistema alimentar e sobre os determinantes da alimentação de má qualidade nutricional, nomeadamente os determinantes comerciais, que estão na base do problema.
Modelos de atuação do nutricionista – Intervenções tendo por base a nutrição comprometida
Entendemos a “nutrição comprometida” como um modelo de ação sobre as questões da alimentação e nutrição que integre os determinantes da ingestão alimentar inadequada num quadro sistémico para além das questões individuais e que tenha a capacidade de fazer propostas pragmáticas de ação e mobilização coletiva sobre estes determinantes, tanto a nível local como global, envolvendo a sociedade civil, as partes interessadas, as forças políticas e a academia. Este modelo de ação privilegia ainda a participação transparente e livre de conflito de interesses.
Este modelo pressupõe a necessidade de uma formação adequada dos profissionais de saúde neste domínio, nomeadamente dos nutricionistas, um conhecimento dos processos de acompanhamento e participação nas políticas públicas, em particular nas áreas que modelam o consumo alimentar e uma maior intervenção ao longo de todo o sistema alimentar, em particular nas áreas mais sensíveis e influenciadoras da ingestão inadequada por parte dos grupos mais vulneráveis da população como são a produção, comercialização e promoção dos bens alimentares.
As intervenções tendo por base o conceito de “nutrição comprometida” envolvem preferencialmente a participação dos cidadãos e a sua mobilização. Na definição de “nutrição comprometida”, os cidadãos são vistos como participantes ativos dos processos, capacitados para pensar criticamente sobre os sistemas alimentares e que sabem como podem participar nesta mudança. Esta questão é central quando sabemos que os cidadãos que menos participam nos processos políticos e nas tomadas de decisão, são precisamente aqueles que mais são afetados pela inadequação alimentar e pelas doenças de base alimentar. A capacitação na área da alimentação deve ainda dar resposta a “quem capacitar”, “como” fazê-lo, “onde” e “com que finalidade”, num formato que deve ser adaptado caso a caso.
Desde os anos 60 que os movimentos na área da justiça alimentar (food justice) têm vindo a chamar a atenção para desigualdades socioeconómicas, ambientais e culturais que afetam o acesso ao alimento e que são em parte construídas ao longo do sistema alimentar. E que ainda podem aumentar mais pelo efeito atual dos discursos nacionalistas e em torno da soberania alimentar. Uma das críticas a estes movimentos é que para além de chamarem de atenção para os problemas, eles eram pouco eficientes em concretizar propostas de mudança em larga escala.
A experiência produzida ao longo dos últimos anos nas instituições públicas e nos trabalhos que pontualmente vão sendo publicados por colegas que interagem com o sistema alimentar nas suas comunidades, nomeadamente as experiências ao nível do poder local e autarquias, permite identificar intervenções que se assemelham aos modelos preconizados pelo conceito de “nutrição comprometida”. Em particular, quando se conseguem transformar problemas de base alimentar, sentidos pela comunidade ou pelos profissionais, em assuntos de interesse público que por sua vez levam a uma ação política para a sua resolução.
Exemplos recentes em Portugal foram o reconhecimento do consumo excessivo de açúcar proveniente de bebidas açucaradas, detetado inicialmente pelos profissionais de saúde e que posteriormente originou um debate público e a tomada de decisão política para a sua regulação, reduzindo a disponibilidade de bebidas açucaradas no mercado. Ou o apoio alimentar a famílias carenciadas (PO AMC) através do Fundo de Auxílio Europeu às Pessoas Mais Carenciadas que modificou sucessivamente a oferta alimentar de determinados alimentos em função dos problemas detetados por nutricionistas e pelos técnicos e comunidades envolvidas. A nível municipal poderemos dar exemplos de autarquias, como Benavente, que em colaboração com os seus nutricionistas mobilizaram a comunidade e os produtores locais para o consumo saudável nos seus estabelecimentos de ensino a partir de três centros de confeção própria em projetos participativos com a comunidade na construção de soluções e em modelos de partilha de experiências como é o caso do “Refeitório Aberto” que visa promover o contacto dos encarregados de educação com os refeitórios/refeições escolares. Ou ainda de ONG´s como a “In Loco” que no Algarve tem apoiado diversas iniciativas para a capacitação e organização das pessoas e entidades regionais na promoção da alimentação mediterrânica em parceria e numa lógica de integração com as aspirações e necessidades das comunidades e que depois são alargadas a nível nacional.
Estes modelos tendem a contrariar a reduzida intervenção dos decisores políticos nos sistemas alimentares por receio de poder afetar os direitos dos consumidores e a sua autonomia e liberdade de escolha. Esta ideia de “des-politização” dos temas alimentares é também reforçada pela tendência para aceitar uma narrativa excessivamente centrada na responsabilidade individual ou, mais recentemente, na resolução individualizada e personalizada dos problemas de base alimentar com apoio farmacológico ou cirúrgico, como vimos trás. O conceito de “nutrição comprometida” remete para profissionais de saúde e cidadãos ativos e capacitados para fazerem decisões individuais baseados na melhor ciência disponível, mas ao mesmo tempo insere a necessidade de melhorar a qualidade da participação pública na transformação dos sistemas alimentares.
É necessário que estes modos de atuação possam ser alargados a outros contextos, em experiências de aprendizagem, de discussão das experiências e de capacitação para transformar o sistema alimentar e promover a equidade no acesso a uma alimentação saudável, sustentável e equilibrada. As soluções a testar, no âmbito da “nutrição comprometida” e sobre o sistema alimentar, devem considerar simultaneamente a justiça social, a sustentabilidade ambiental, a melhoria do estado nutricional de todos e a participação ativa da comunidade nas tomadas de decisão. Esperemos em breve poder descrever mais trabalhos utilizando estes modelos de atuação.
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