Nos últimos dias tem vindo a avolumar-se informação científica sobre a relação entre a pandemia por SARS-CoV-2 e a “pandemia” por obesidade. Duas doenças que se espalham pelo mundo sem fronteiras e de forma mais ou menos rápida. A obesidade triplicou desde 1975, atinge cidadãos de todos os países do mundo e embora não sendo uma doença infeciosa mas sim uma doença crónica (e, portanto, a sua globalização não pode ser chamada uma pandemia) tende a instalar-se sem grande sucesso de tratamento entre os seres humanos. Em muitos países a situação é crítica, Nos Estados Unidos da América em 2020 estima-se que mais de 40% da população adulta seja obesa e que na população afrodescendente estes valores se situem perto dos 50%. A questão que começa agora a preocupar os profissionais da saúde é se as pessoas obesas, com esta prevalência elevada em todo o mundo são mais suscetíveis de desenvolver problemas graves quando infetadas pelo SARS-CoV-2 e que mecanismos podem estar envolvidos neste aumento de suscetibilidade. Os dados disponíveis até ao momento permitem concluir que a diabetes mellitus, hipertensão e obesidade aumentam a suscetibilidade individual à infeção por SARS-CoV-2, assim como o risco de complicações graves e morte por COVID-19.
No caso português, o conhecimento das relações entre estas doenças crónicas, que poderão ser a obesidade, mas também a diabetes e a hipertensão com a Covid-19 são da maior importância. Porque são doenças muito prevalentes em Portugal, porque muitos cidadãos portugueses partilham mais do que uma destas doenças e, porque, a sua expressão na nossa sociedade é muito condicionada pelo gradiente social. Por exemplo, e tendo por base os resultados do Inquérito Nacional de Saúde com Exame Físico (INSEF) relativo ao estado de saúde da população adulta nacional em 2015, a prevalência da diabetes era de aproximadamente 10%, a prevalência de hipertensão arterial era de 36 % e a prevalência de obesidade de 29%. Mais grave do que estes números assustadores na ordem dos milhões é o facto da prevalência de diabetes, hipertensão arterial e obesidade, variar muito em função da idade, escolaridade e situação perante o trabalho, sendo sistematicamente superior na população mais idosa, com o nível de escolaridade mais baixo e sem atividade profissional remunerada. Ou seja, os mais idosos, os mais pobres e com menos escolaridade são aqueles onde estas doenças crónicas são bastante mais frequentes (por vezes mais do dobro). Num momento em que a pandemia da Covid-19 afeta já mais de uma dezena de milhar de portugueses, sabemos que são precisamente estes grupos da população que mais irão sofrer com esta doença infeciosa e que serão os primeiros a sofrer as suas consequências.
Esta relação obriga, de certa forma, a pensarmos de forma diferente os determinantes da doença infeciosa que no passado atacava principalmente os desnutridos, ou seja, os malnutridos por insuficiência e, hoje, afeta também os malnutridos por excesso que são os obesos. Ao contrário das anteriores e conhecidas catástrofes epidémicas da Idade Média, estas epidemias não se fazem acompanhar de períodos de fome, mas atingem igualmente os obesos, que são de certa maneira os malnutridos destes tempos. O facto de a doença ter aparecido primeiro na China e em alguns países limítrofes com populações mais jovens e com menores prevalências de obesidade e de doenças crónicas fez, na sua fase inicial, esquecer a obesidade. Contudo, esta relação e o seu conhecimento mudou radicalmente nas últimas semanas.
À medida que a infeção foi alastrando pelos países ocidentais, nomeadamente para a Europa e depois Estados Unidos, surgiu a necessidade de repensar o risco e a sua relação com a doença crónica, em particular com a obesidade. Reconhecendo a importância da obesidade para o curso da doença COVID-19, a ESPEN (European Society for Clinical Nutrition and Metabolism) no seu posicionamento sobre a intervenção nutricional no doente com COVID-19 alerta para dois lados da malnutrição como potenciais fatores de risco para as futuras pandemias.
A relação entre a obesidade e a COVID-19 foi dada a conhecer por estudos como aqueles que analisaram as características e os outcomes clínicos de 112 doentes com doença cardiovascular infetados com o SARS-CoV-2, mostrando que um IMC elevado estava frequentemente presente nos doentes críticos e naqueles que não sobreviveram à doença. Um outro estudo publicado com dados de 383 doentes com COVID-19, na China, sugere que os doentes com obesidade, em particular os do sexo masculino, têm um maior risco de desenvolver pneumonia grave.
Mais ainda, um artigo publicado no JAMA sugere que a maior prevalência da obesidade nos idosos Italianos, por comparação à China, pode explicar as diferenças encontradas na mortalidade entre os dois países.
Esta evidência levou o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), a incluir os indivíduos com obesidade mórbida na lista dos grupos de risco para desenvolverem doença grave por COVID-19.
Apesar da discussão sobre a relação entre a obesidade e a COVID-19 ser recente, desde a pandemia da “gripe espanhola” de 1918 que se sabe que a malnutrição (tanto por excesso como por defeito) se associa a um pior prognóstico deste tipo de infeções víricas. Nos surtos de “gripe asiática” de 1957 a 1960 e da “gripe de Hong-Kong” de 1968 foi possível confirmar que a obesidade e a diabetes conduziam a maior mortalidade e duração na doença, mesmo nos doentes sem outras comorbilidades que aumentam o risco de complicações associadas à infeção pelos vírus Influenza. No decurso da pandemia de 2009 causada pelo vírus Influenza H1N1, a obesidade associava-se a maior risco de doença grave, de hospitalização e morte.
De seguida fazemos referência a diferentes mecanismos que podem ajudar a explicar a relação entre obesidade e COVID-19.
Estado de inflamação crónica de baixo grau presente na obesidade, diabetes e síndrome metabólica
Diversos passos da resposta imune inata e adaptativa sofrem alterações decorrentes do estado de inflamação crónica de baixo grau presente na obesidade, diabetes e síndrome metabólica. Os indivíduos obesos apresentam elevação de adipocitocinas pró-inflamatórias (por exemplo: leptina, resistina e visfatina) e redução das adipocitocinas anti-inflamatórias (por exemplo: adiponectina e IL-10). Esta alteração do ambiente hormonal conduz a alterações da resposta imune contribuindo para a patogénese das complicações associadas à obesidade. Numa situação basal, os doentes obesos apresentam elevação de várias citocinas pró-inflamatórias (TNF-α, MCP-1 e IL-6) maioritariamente originárias do tecido adiposo visceral e subcutâneo que comprometem a resposta imune inata. Num quadro de inflamação crónica associado à obesidade, a apresentação de um antigénio leva a uma reduzida ativação de macrófagos e a uma atenuada produção de citocinas pró-inflamatórias por estas células . Esta reduzida ativação dos macrófagos após apresentação de um antigénio parece explicar a menor taxa de sucesso da vacinação contra o vírus Influenza em indivíduos obesos. Na obesidade e síndrome metabólica as respostas dos linfócitos B e T também estão diminuídas. Por esta razão, há maior suscetibilidade e aumento no tempo de resolução de infeções virais. A leptina tem um papel regulador no desenvolvimento, maturação e função dos linfócitos B, pelo que se acredita que a resistência à leptina, frequente na obesidade, possa ter tido um papel de relevo na pandemia pelo H1N1 de 2009. A obesidade diminui a resposta dos linfócitos T citotóxicos (CD8+ T) aos vírus Influenza, assim como, a produção de anticorpos após a administração da vacina da gripe sazonal. Este efeito, além da já descrita perturbação no funcionamento dos macrófagos, leva a uma baixa resposta à vacinação contra a gripe. Uma resposta pró-inflamatória exacerbada contribui para as severas lesões pulmonares que se observam durante pandemias gripais e na COVID-19.
Efeitos da obesidade na função pulmonar
A infeção pelo vírus Influenza H1N1 e agora pelo SARS-CoV-2 tem um impacto desproporcional nos doentes com obesidade. Este quadro não é surpreendente se considerarmos os efeitos da obesidade na função pulmonar e na libertação de citocinas pró-inflamatórias. O doente obeso apresenta menor volume de reserva expiratório, menor capacidade funcional e complacência do sistema respiratório. Adicionalmente, nos doentes com obesidade abdominal, quando em supino, há restrição de movimentos do diafragma dificultando a normal ventilação. Os casos mais severos de COVID-19 desenvolvem a síndrome de libertação de citocinas, também designada de “tempestade de citocinas”, desencadeando um quadro de hiperinflamação. Em doentes com COVID-19 a dispneia na admissão hospitalar, assim como, o aumento dos níveis de citocinas (IL-6, IL-10 e TNFα), linfopenia (de células T CD4+ e T CD8+ T), e menor expressão de IFNγ nas células T CD4+ estão associados a pior prognóstico. Devido ao papel destes fatores pró-inflamatórios há aumento da permeabilidade vascular, de fluido e células nos alveólos pulmonares resultando em dispneia e mesmo em falência respiratória. A via da IL-6 parece ter particular importância na síndrome de libertação de citocinas em doentes COVID-19, estando o bloqueio do recetor da IL-6 em estudo como parte da intervenção terapêutica da COVID-19 grave.
Obesidade e resposta imune atenuada por via do défice de interferão
Estudos em modelos animais de obesidade infetados com vírus Influenza mostram maior severidade da doença, maior número de infeções bacterianas secundárias assim como uma reduzida eficácia da vacina. Nestes modelos animais de obesidade ocorre uma resposta imune atenuada, possivelmente resultante de uma redução nos níveis de interferão, da resposta celular adaptativa e da reposta mediada por anticorpos. A exposição ao vírus H1N1 em modelos animais de obesidade (induzida pela dieta ou genética) resulta numa maior virulência e morbilidade. O défice de interferão parece favorecer o surgimento de mutações que potenciam a maior virulência do vírus Influenza. Estes resultados não se limitam a modelos animais. Em células epiteliais obtidas a partir de brônquios de doentes obesos já se observou diminuição da resposta mediada pelo interferão, assim como, uma maior replicação do vírus Influenza.
A obesidade e os baixos níveis de atividade física
A reduzida atividade física é outra questão relevante associada à obesidade. A baixa atividade física isoladamente ou em associação com a resistência à ação da insulina limita a resposta imune contra agentes infeciosos, nomeadamente na ativação macrofágica e na inibição de citocinas pró-inflamatórias. A atividade física e exercício apresentam benefícios na patologia metabólica (obesidade, diabetes, síndrome metabólica) e saúde imunológica (ativação imune, eficácia vacinal e imunosenescência). Estudos de intervenção com atividade física em mulheres idosas demonstraram potencial redutor de risco de complicações pelo efeito modulador na inflamação, melhoria da resposta imune e da resposta vacinal.
Vários são os mecanismos que podem explicar uma maior gravidade da doença COVID-19 em doentes obesos. Mas será que os indivíduos obesos têm também um maior risco de contrair a doença?
O vírus SARS-CoV 2 parece utilizar como “porta de entrada nas células” a enzima de conversão da angiotensina 2 (ECA2). O doente obeso apresenta frequentemente comorbilidades que necessitam de terapêutica medicamentosa modificadora da expressão da ECA2. Assim, um ponto ainda por esclarecer é o do impacto no risco de contrair COVID-19 e na sua evolução ao utilizar fármacos que aumentam a expressão da ECA2. Sabemos que a expressão da ECA2 está aumentada na diabetes, mas também é aumentada por fármacos usados no seu tratamento como agonistas GLP-1 (liraglutide) e tiazolidinedionas (pioglitazona). Antihipertensores inibidores da ECA e hipocolesterolemiantes como as estatinas também aumentam a expressão da ECA2.
Por último, alguns trabalhos recentes levantam a hipótese de a obesidade poder aumentar o grau de contágio das infeções respiratórias virais. Há vários fatores que podem sustentar a ideia da maior capacidade de contágio: os indivíduos obesos com gripe transmitem o vírus por um período de tempo até 104% superior ao de indivíduos normoponderais; como já acima descrito, a produção tardia e em menor escala de interferão favorece o aparecimento de estirpes virais mais virulentas; o atraso na produção de interferão em contraste com a rápida replicação do ARN viral aumenta a probabilidade do aparecimento de estirpes novas com maior virulência; adicionalmente, há uma correlação positiva entre o índice de massa corporal com a carga viral exalada. Todos estes fatores podem levantar a hipótese da quarentena aplicada no contexto da COVID-19 ter de ser mais longa nos indivíduos obesos, com todos os riscos que esta “estigmatização adicional” acarretaria.
Ser obeso aumenta o risco de infeção e das suas complicações a nível individual. No entanto, os dados acima expostos, apesar de serem, muitos deles, baseados noutras infeções respiratórias virais, sugerem que numa população com elevada prevalência de obesidade, há maior probabilidade do surgimento de estirpes virais com maior virulência, alargamento do período de transmissão a toda a população e eventualmente maior mortalidade no contexto de uma pandemia. Além de todas as medidas propostas para a mitigação da COVID-19, a adoção de um estilo de vida saudável com alimentação equilibrada e atividade física, promovendo perda ponderal quando necessário, pode ser a diferença entre sofrer um quadro de COVID-19 ultrapassável ou fatal.
Ainda existe muito por conhecer nesta nova relação entre a obesidade e a COVID-19 mas uma coisa é certa, a forma como iremos ver a obesidade no futuro, agora que se perspetivam novas e sucessivas vagas infeciosas, por SARS-CoV-2 ou outra variante qualquer, vai transformar o trabalho dos profissionais de saúde, e muito em particular dos nutricionistas.