Frugalidade

Quando discutimos as melhores abordagens para promover a saúde através da alimentação surge uma crítica recorrente ao modelo de intervenção pública. Para os críticos deste modelo, o proibicionismo é ineficaz, as taxas impostas pelos Estados sobre produtos de má qualidade nutricional nunca resultaram e tentar regular o marketing alimentar dirigido a crianças é praticamente impossível neste mundo digital. Como solução para os “proibicionismos” surge a opção de educar os cidadãos para um consumo responsável e promover os produtos alimentares “ditos saudáveis”. Ou seja, em vez de uma “caça às bruxas”, até porque não existem alimentos maus, apenas alimentos que devem ser consumidos ocasionalmente, deveremos antes promover mais os alimentos adequados a uma vida saudável.

O assunto é complexo e merece certamente uma análise mais detalhada com a evidência científica que o suporta. Sobre este antagonismo, entre o proibir e o promover, atrevo-me a uma pequena reflexão.

Sim, necessitamos de promover modelos de consumo saudáveis. Necessitamos de capacitar os nossos cidadãos. E necessitamos de promover mais frequentemente determinados alimentos de grande valia nutricional. Até porque estes alimentos não têm quem os promova. A maior parte das vezes são alimentos não processados ou minimamente processados, cujos produtores por não terem marcas próprias necessitam ser apoiados. As diferentes variedades de alfaces ou de batatas, os limões, a água simples, o pão, os ovos, os tomates, os feijões, as laranjas necessitam de ser mais e melhor promovidos. São a base de uma alimentação saudável e protetora do nosso planeta. O Ministério da Saúde e a DGS já o fizeram recentemente numa campanha nacional de comunicação, mas (todos) temos de fazer mais. E, enquanto profissionais de saúde, temos a obrigação de escrever e divulgar as mais valias nutricionais destes alimentos. Até aqui estamos todos de acordo.

Mas por muito que possamos investir nestes alimentos, os orçamentos para promover comida (muita dela) de má qualidade nutricional é e será sempre infinitamente superior e terá a capacidade de pagar os melhores nutricionistas, psicólogos, influencers e marketeers. Porque, entre outros aspetos, tem a capacidade de gerar maiores margens de lucro e porque é concentrada em poucos “players” como agora se diz. É a economia a funcionar.

Onde discordo é na solução proposta. No meu entendimento, competir com esta indústria para consumir mais (mesmo que sejam produtos ditos saudáveis) como uma estratégia preferencial é um mau serviço ao planeta. E aos nossos frágeis recursos agora que a população mundial não para de crescer. Existe uma palavra que os nutricionistas necessitam de começar a utilizar mais e que a maioria dos economistas não aprecia tanto. Frugalidade. É uma palavra que começou por aparecer em alguns escritos gregos com mais de 2000 anos. Nos filósofos Epicuristas e nos Estoicos. Na escola epicurista buscava-se a simplicidade e a moderação na alimentação como forma de atingir uma determinada postura ética e até política na vida. Mais tarde, já nos anos 50 do séc. XX o termo é retomado por Ancel Keys nas definições iniciais da Dieta Mediterrânica. E quando a Comissão responsável pela candidatura da Dieta Mediterrânica a Património Cultural Imaterial da Humanidade/UNESCO, com o apoio da DGS, publica os 10 princípios da Dieta Mediterrânica em Portugal, a frugalidade é o primeiro princípio deste modelo saudável de consumo alimentar.

Retomando a atualidade, estima-se que em 2035, daqui a poucos anos, metade da população humana terá excesso de peso e a produção e o consumo alimentar serão um dos principais contribuintes para as alterações climáticas e para a extinção dos humanos que pode estar em curso. Em Portugal, o último Inquérito Alimentar Nacional (IAN-AF), considerando a quantidade total de alimentos e bebidas consumidos, identificou que 30% dos alimentos consumidos são perfeitamente dispensáveis para se atingir uma alimentação saudável. Ora é precisamente nestes alimentos e bebidas com quantidades elevadas de açúcar, de gordura e sal que se concentram os maiores investimentos promocionais, muitos deles dirigidos a crianças e jovens.

Reduzir este consumo, perfeitamente dispensável do ponto de vista das necessidades humanas, poluente e grande contribuinte para a doença devia ser central na estratégia das políticas públicas relacionadas com a saúde e o ambiente.

O tema é difícil. A experiência com a Covid19 onde muitas das nossas liberdades foram reduzidas torna difícil fazer atualmente qualquer discurso de redução do consumo alimentar. O direito dos mais desfavorecidos a padrões de consumo semelhantes a quem tem mais capacidade económica é um direito. A desconfiança dos cidadãos com o poder político e com a sua ética governativa menos ainda. E a linguagem populista atualmente em vigor ainda piora qualquer intervenção neste sentido.

Mas este ambiente social e político não deve impedir que os profissionais de saúde e em particular os nutricionistas continuem a lutar para que as escolhas saudáveis sejam mais as fáceis ou pelo menos possíveis (em particular para os mais desfavorecidos) e que o consumo de alimentos e bebidas desnecessárias para o nosso organismo seja reduzido ou eliminado. De novo a frugalidade. Isto significa, sermos intransigentes com quem promove alimentos e bebidas de má qualidade nutricional, com quem vende produtos de má qualidade nutricional nos espaços públicos ou em locais de ensino e instituições de saúde, ou com aqueles que os continuam a publicitar para crianças e jovens alimentos nutricionalmente desnecessários apesar da lei impedir esta atividade.

A sociedade civil não pode ficar de fora deste combate. Este é mesmo o combate do século, do ponto de vista ambiental e da saúde das populações. E os nutricionistas que não têm conflito de interesses nestas áreas têm uma palavras a dizer.

P.S – Uma nota final sobre o mito de não existirem alimentos maus ou bons, apenas existirem alimentos que podem ser consumidos ocasionalmente e outros mais frequentemente. Independentemente da nossa saúde mental e do prazer associado ao consumo esporádico de certos alimentos, devo dizer que existem alimentos que não adicionam valor nutricional à nossa alimentação e outros que o fazem. Ou sejam, existem de facto alimentos maus do ponto de vista nutricional e outros que são bons. Assim como existem hotéis de boa qualidade e outros de má qualidade. E que a qualidade desses hotéis não está relacionada com o número de horas que lá passamos.

Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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