Da perspetiva de estudante até à de “responsável” do processo
No já longínquo verão de 1990 fui colocado na licenciatura em Ciências da Nutrição e Alimentação do então designado Instituto Superior de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (ISCNAUP). O primeiro contacto com as instalações da faculdade foi um choque, tal como o foi para os meus colegas de fortuna.
A FCNAUP no Hospital de São João
O “edifício” era um exíguo pavilhão pré-fabricado de madeira, com teto de placas de fibrocimento, contendo estas amianto como à época se usava e localizado no lado nascente-sul dos terrenos do Hospital de São João (HSJ). A dimensão de espaços interiores como a biblioteca era mais próxima do mundo do autocaravanismo do que de uma instituição de ensino superior. A envolvência externa destas instalações dentro da cerca do HSJ, nomeadamente os acessos rodoviários ao edifício, tinham semelhanças relevantes com a superfície lunar, com a exceção dos dias de chuva que transformavam o local numa sequência continua de mil lagos e charcas. Nesses dias, uma simples deslocação à cantina, ou a outras instalações da Universidade do Porto (UP) onde tínhamos aulas, poderia remeter o nosso imaginário jovem para uma travessia de espelhos de água nalgum destino exótico, quiçá numa tentativa vã de fugir à realidade degradada do local.
Foi nesse período que pela primeira vez comecei a ouvir a discussão do problema das novas instalações da instituição, que em 1996 passaria a unidade orgânica da UP, com a designação de Faculdade Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (FCNAUP). Naturalmente, acredito que a discussão sobre melhores instalações terá começado muito antes, diria mesmo quando da criação do Curso de Nutricionismo da Universidade do Porto, em 1976.
Em novembro de 1996, comecei formalmente a lecionar na FCNAUP como monitor, em dezembro de 2000 passei a assistente convidado e em março de 2006 fui contratado como Professor auxiliar após defender a minha tese de doutoramento num anfiteatro das antigas instalações da Faculdade de Medicina Dentária que a FCNAUP tinha “herdado”. Estas “novas” instalações eram pavilhões de madeira semelhantes ao bloco original da FCNAUP, mas representaram um importante aumento de área disponível para as atividades de uma instituição em crescimento. Recordo que ao longo deste período, de cada vez que celebrávamos o dia da faculdade, o(a) representante do Reitor presente na cerimónia alimentava a esperança de se obterem instalações adequadas que infelizmente nunca se concretizavam.
A FCNAUP na FEUP
A construção das novas instalações do Centro de Investigação Médica da Faculdade de Medicina do Porto (CIM-FMUP) obrigou à demolição dos “nossos pavilhões” que com carinho apelidávamos de o “barraco” e, paradoxalmente ou não, deixaram saudades em quem neles trabalhou e estudou. Nesta fase, ocorreu a mudança “temporária”, porque tudo nesta vida o é, para instalações da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) no ano letivo 2009-2010. A título de curiosidade o espaço ocupado pelos serviços académicos, órgãos de gestão e gabinetes dos docentes da FCNAUP na FEUP era o espaço ocupado anteriormente pela associação de estudantes desta faculdade, sendo que esta última mudou de instalações por considerar o espaço insuficiente! Além disso, foi construído um novo pavilhão em madeira nos terrenos da FEUP, mantendo-se viva a tradição do nosso bem-amado “barraco”, onde funcionavam a associação de estudantes, o “salão de alunos” e os laboratórios de gastrotecnia e biologia celular. Na FEUP fomos muito bem recebidos e tratados, mas uma solução temporária com a previsão de 3 anos de duração prolongou-se por mais de uma década penalizando as duas instituições.
Nesta fase de transição e estadia na FEUP continuaram a ser discutidas “soluções” que não se concretizavam como:
- a construção de um edifício de raiz na rua Dr. Plácido da Costa, em frente à galeria comercial Campus São João, que chegou a ter um projeto completo e cuja maqueta “desapareceu” do corredor da FCNAUP na FEUP (na altura a chacota foi tal que se dizia que a FCNAUP nem em maqueta tinha direito a instalações próprias);
- a mudança para o edifício antigo do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, que também teve um complexo e completo projeto de adaptação do edifício;
- ou a mudança para uma parte do edifício do CIM_FMUP.
Não consigo quantificar o custo em horas de trabalho e capital investido em todas estas “soluções”, mas deve ser impressionante.
Como é óbvio, o estudo de viabilidade de todas estas “soluções” obrigou sempre a envolver pessoas da FCNAUP com a função de acompanhar estes processos e foram muitas ao longo dos anos. Na qualidade de membro do Conselho Pedagógico, fui responsável por avaliar as necessidades de espaços letivos da FCNAUP quando se estudou a hipótese de mudar para o CIM-FMUP e, na qualidade de docente de carreira da FCNAUP em maio de 2015 fui nomeado, por despacho do Diretor, como membro da Comissão de Acompanhamento das novas instalações da FCNAUP. Curiosamente pouco tempo depois da minha nomeação percebi informalmente que a Comissão era “unipessoal” por saída dos restantes membros.
A FCNAUP no Campo Alegre – A Casa da Nutrição
De imediato comecei a acompanhar um novo projeto no polo da UP no Campo Alegre. O responsável do projeto foi o Arquitecto João Castro Ferreira. Este projeto previa a reabilitação e adaptação da parte mais recente do antigo edifício do IBMC. O histórico de permanência da FCNAUP no polo da Asprela, a ligação à FMUP e ao HSJ levantaram muitos receios e alguma resistência sobre uma eventual mudança para o polo do Campo Alegre. Curiosamente, ainda este projeto estava em estudo, foi efetuada uma intervenção nas áreas exteriores comuns da Faculdade de Ciências (FCUP) e à data das futuras instalações da FCNAUP. Nessa intervenção, custeada pelas duas instituições, foram colocadas junto à entrada do nº 823 da Rua do Campo Alegre duas placas, uma alusiva à FCUP e outra à FCNAUP e foi definido o número de lugares de estacionamento atribuído a cada instituição. Passariam anos até à FCNAUP mudar para o Campo Alegre, pelo que a presença da placa foi fonte frequente de mal-entendidos sobre a localização real da nossa faculdade!
Ao longo do ano 2016 e 2017 foram realizadas múltiplas reuniões entre a equipa projetista e todas as partes interessadas, dessa forma foram sendo promovidos sucessivos contactos com docentes, técnicos e estudantes. A preocupação da Direção em envolver os estudantes no processo levou a que tivesse de apresentar o mesmo numa Reunião Geral de Estudantes e manter várias reuniões com a AEFCNAUP. Estes contactos com os estudantes possibilitaram a incorporação detalhada das necessidades dos vários intervenientes no funcionamento da instituição nos projetos de arquitetura e de especialidade. Como coordenador deste processo de contacto entre os múltiplos intervenientes, posso testemunhar as centenas de horas investidas nesta fase de projeto pelos diversos intervenientes e os múltiplos stresses ao longo do processo.
Recordo um deles. Para efeitos de inserção na proposta de orçamento da FCNAUP, em julho de 2018 foi-me solicitado que apresentasse o valor previsível de aquisição do projeto de mobiliário e sinalética, assim como, da aquisição dos bens listados nesse projeto. Este pedido foi feito a uma terça-feira e os dados teriam de ser entregues até sexta-feira dessa mesma semana. Pedir valores de um orçamento desta dimensão com 3 dias úteis de prazo no final mês de julho foi uma tarefa desafiante. Depois de efetuar inúmeras tentativas infrutíferas de contacto com empresas, tive o apoio do Arquiteto João Ferreira e da única representante comercial de uma firma de mobiliário de laboratório que me respondeu, o que tornou possível obter um valor no último minuto, que curiosamente se desviou pouco do valor realmente executado 2 anos mais tarde! Que saudades dos tempos de estabilidade de preços!
O início da obra
No primeiro semestre de 2018, o Serviço de Instalações e Infraestruturas da Reitoria da UP na qualidade de responsável de obra desencadeou o concurso para execução dos trabalhos de remodelação e adaptação do edifício no Campo Alegre. A consignação e início da obra a cargo da empresa CCR Engenharia e Construção tiveram lugar no 4º trimestre de 2018.
A parte da remodelação estava em curso, mas por razões que nunca me foram explicadas, o projeto de remodelação do edifício não incluía o projeto de mobiliário e sinalética, nem se avançou com a sua aquisição no início das obras, apesar de nesta fase ter alertado repetidamente para essa necessidade. Esta programação atempada teria permitido o apetrechamento do edifício logo no final da remodelação e uma mudança antes do surgimento da pandemia da COVID-19. Acredito, face ao histórico do processo das instalações da FCNAUP, que existisse o receio na Direção da FCNAUP de que à última hora a “solução” deixasse de o ser e, por essa razão, só se avançaria com despesas de mobiliário e sinalética com o edifício na “mão”, mas isto é apenas an educated guess.
Em dezembro de 2018 fui designado subdiretor da FCNAUP pelo Prof. Doutor Pedro Graça, à data recém-eleito. Nessa qualidade e continuando como responsável pelo acompanhamento do processo das novas instalações, em janeiro de 2019 considerei útil passar a participar nas reuniões de obra semanais. Nestas reuniões, testemunhei as múltiplas vicissitudes de trabalhos desta complexidade e, creio ter contribuído em vários momentos na defesa dos interesses da FCNAUP durante a execução da obra. As fortes limitações do orçamento disponível para a remodelação do edifício tiveram implicações no que poderia, ou não, ser feito. Por exemplo, chegou a ser ponderado não fazer pintura exterior, que acabou por ser realizada, mas não foi possível fazer um projeto e renovar uma intervenção acústica. O deficiente isolamento acústico que daqui resultou implicou que mais tarde a faculdade fizesse esse investimento. Ainda por causa das limitações orçamentais, o sistema de deteção e alarme de incêndio só foi modernizado parcialmente. Manteve-se uma central de deteção e alarme antiga para a rede de detetores por cabo e associou-se uma nova central de outra marca para os detetores sem fio. Como consequência, os sistemas revelaram em uso corrente alguma incompatibilidade, com inúmeros falsos alarmes, obrigando à substituição da central antiga no final da obra. A lição que tirei destes e de muitos outros episódios é que a poupança inicial fica sempre bastante dispendiosa! Outra das dificuldades da execução da obra residiu no facto de no edifício contíguo estar a funcionar uma empresa de biotecnologia a quem a Reitoria tinha arrendado esse espaço. Como existiam espaços e infraestruturas partilhadas, a execução da obra e a gestão desses espaços foi desafiante.
A 21 de fevereiro de 2019 é adjudicado o projeto de mobiliário e sinalética, mantendo como responsável de projeto o Arquitecto João Castro Ferreira. Nesse projeto foram definidas as características do mobiliário e sinalética e estabelecidos os mapas de quantidades e trabalhos que possibilitariam o lançamento do concurso de aquisição destes bens.
A 11 de outubro de 2019, a empresa CCR Engenharia e Construção entregou as chaves do edifício, assinalando o “final” da obra. Além das guias de entrega foi também preciso coordenar com a CCR formações relativas ao uso de equipamentos e infraestruturas com funcionários da FCNAUP. No entanto, a transferência formal da gestão do edifício para a FCNAUP ocorreria meses mais tarde e como sempre com vicissitudes curiosas. É ainda de salientar que o empreiteiro teve de efetuar inúmeras intervenções após esta data, algumas em garantia e outras como trabalhos adicionais. No inverno de 2019-2020 foram ainda muitas as infiltrações no edifício o que por vezes me fazia pensa que estava num naufrágio!
Com o apoio da Unidade de Compras da UP, a 4 de novembro de 2019 foi publicado em Diário da República e na plataforma acingov o Concurso Publico Internacional – NCC_FCNAUP_CPI/19A001_ AQUISIÇÃO DE MOBILIÁRIO E SINALÉTICA PARA AS NOVAS INSTALAÇÕES DA FCNAUP. Para melhorar a gestão do concurso, o projeto de mobiliário e sinalética foi dividido em catorze lotes. Como Presidente do Júri deste concurso tive de responder aos múltiplos pedidos de esclarecimento das dezasseis empresas concorrentes, participei na análise detalhada de todas as propostas, verificação do cumprimento de critérios de admissão e ordenação das propostas admitidas.
O edifício passa a ser “nosso”
A 8 de janeiro de 2020 o Conselho de Gestão da Universidade do Porto aprovou o auto de afetação 8-AI/2019, relativo à afetação da parcela de terreno e edifício do Ex-IBMC, assim como das obras efetuadas para adaptação do mesmo às novas instalações da FCNAUP, executadas pela Reitoria. Formalmente, a partir desta data a faculdade seria totalmente responsável pela gestão do edifício. Como é que descobri que isto tinha ocorrido? No mês de janeiro de 2020, no espaço de alguns dias comecei a receber sucessivos telefonemas dos vigilantes da FCUP, da empresa vizinha e de um condómino de um prédio vizinho, durante a noite e madrugada, indicando que o alarme de incêndio tinha disparado (relembro o problema da central de alarme e deteção de incêndio descrito acima). Surpreendido, questiono porque me ligam a mim, recebo como resposta que tinham recebido essa indicação do Serviço de Instalações e Infraestruturas Unidade Gestão de Projetos e Empreitadas da Reitoria. O meu número de telefone pessoal tinha sido fornecido, sem eu saber, como contacto de emergência de responsável do edifício. O que é espantoso é não termos sido avisados em tempo útil da decisão da afetação do edifício, nem da cessação da responsabilidade do Serviço de Instalações e Infraestruturas. Só soubemos dessa alteração por nossa iniciativa após esses simpáticos contactos noturnos me obrigarem a repetidas visitas fora de horas ao edifício.
Esta transferência não coordenada impediu-nos de contratar em tempo útil, valências necessárias ao funcionamento do edifício, nomeadamente vigilância, manutenção, limpeza, controlo de pragas, certificação de elevadores, etc. Todos estes processos de aquisição tiveram de ser desencadeados posteriormente com o total apoio da Unidade de Compras da Reitoria, mas demoraram meses. Assim, durante os primeiros sete meses de 2020, em plena pandemia de COVID-19, exerci funções de vigilante, técnico de manutenção, funcionário de limpeza, gestor de todos os contratos de cada um dos catorze lotes do concurso de mobiliário e sinalética, presidente do júri e gestor de contrato de todos os concursos essenciais ao funcionamento do edifício (vigilância, manutenção, equipamento audiovisual, equipamento informático, limpeza, água, eletricidade, gás, etc.) mantendo atividade docente plena. Ao mesmo tempo, começaram as entregas dos bens adquiridos no concurso de mobiliário e sinalética que acompanhei desde o primeiro ao último minuto.
A nossa calendarização previa a mudança no mês de julho de 2020 e o início das atividades letivas em setembro desse ano. No final de julho de 2020, o estado do processo não me permitia garantir ter condições para iniciar as aulas no Campo Alegre, não sendo já possível continuar na FEUP. As sucessivas falhas de prazos associadas aos confinamentos, a entrega de materiais não conformes com as especificações e o recurso a subterfúgios para “vender” serviços adicionais eram uma realidade dura e diária. Por exemplo, um determinado tipo de mesa com estrutura metálica foi descarregado do camião e por mim devolvido 3 vezes porque as pernas dessas mesas não respeitavam esquadria (estavam tão tortas que mesas que deveriam ficar com “pés” juntos e alinhados tinham separações de 3 a 5 centímetros). Imaginem as conversas com os transportadores e com a firma fornecedora. Só a meados de agosto de 2020 tive o conforto de acreditar que a as aulas poderiam iniciar-se aqui em setembro de 2020.
Estas linhas pecam largamente por defeito na descrição dos mais variados problemas que tivemos de resolver no processo das novas instalações da FCNAUP.
Como a comunidade em geral se encontrava em pânico pandémico, durante largos meses só se encontravam diariamente no novo edifício da faculdade os funcionários das empresas fornecedoras, os vigilantes ao serviço da empresa vizinha – FairJourney, o Professor Pedro Graça e o Sr. João Lopes. Uma das poucas vantagens de ter estado envolvido neste processo foi a de não ter feito um único dia de confinamento! Por outro lado, trabalhei frequentemente sem equipamento de proteção individual adequado. Isto foi mais uma fonte de angústia, pois em mais do que uma ocasião, tivemos pessoas infetadas pelo SARS-CoV-2 nas equipas das empresas que trabalharam no edifício. Pelo meio, no dia 10 de abril de 2020 (sexta-feira santa) ligaram-me da empresa FairJourney, nossa vizinha, às 10:30 da noite informando que havia uma fuga numa conduta de água, que a empresa tinha um milhão e meio de euros em equipamentos e consumíveis em risco e que eu poderia ser responsabilizado se algo acontecesse. Estupidamente acreditei que um professor auxiliar da UP seria responsabilizável pelos danos causados a um inquilino da Reitoria. O resultado foi um fim de semana de Páscoa a fazer a monitorização de uma fuga de água, mais uma pesada despesa para a FCNAUP e mais uma razão para ter passado um ano a dormir poucas horas por noite (experiência que não recomendo).
Reflexões finais
Se chegou até este ponto do texto e, percebendo perfeitamente que já o tivesse abandonado previamente, compreenderá que a minha relação com as novas instalações da FCNAUP oscila entre o amor e o ódio. Amor, porque após 44 anos de existência a instituição teve uma casa com condições compatíveis com o que se espera a este nível; ódio, porque foram tantos anos de arrelias, de dores de cabeça, de angústias, de desalento e de não poder fazer o que de facto é valorizado na carreira docente, que ainda hoje, cinco anos após a mudança, tenho dúvidas sobre qual o sentimento que prevalece.
Se a sorte é o cruzamento da oportunidade com a mente preparada, concluo que não tive grande sorte, pois a minha mente não estava preparada para o que aqui vivi. Tenho como consolo o facto da maioria da comunidade envolvida parecer sentir-se bem aqui, neste espaço que espero contribua para muitos sucessos pessoais e institucionais agora que a FCNAUP se aproxima do meio-século!
Resta-me agradecer a quem tanto me ajudou ao longo dos anos nesta grande aventura.

