Fact-checking – “Vegetarianos podem ter menos doenças cardíacas, mas maior risco de AVC”

Nota: Esta análise pode aplicar-se à generalidade das notícias sobre o estudo em questão, que foram publicadas nos diversos órgãos de comunicação social e não somente à notícia publicada na Revista Visão que aqui se apresenta a título de exemplo: http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/2019-09-05-Vegetarianos-podem-ter-menos-doencas-cardiacas-mas-maior-risco-de-AVC

1. Factos em análise?

Um estudo recente, publicado na prestigiada revista British Medical Journal (Tong et al., BMJ 2019;366:l4897), revela que os indivíduos que seguem o padrão alimentar vegetariano ou vegan apresentam risco mais baixo de ter um enfarte do miocárdio, mas um risco aumentado de ter um Acidente Vascular Cerebral (AVC).

A questão que se coloca é se o estudo permite efetivamente tirar essa conclusão, tal como foi publicada em diferentes órgãos de comunicação social.

2. Análise do(s) facto(s) tendo por base a evidência científica

Assistimos hoje a um fenómeno nas sociedades ocidentais em que um número crescente de indivíduos vai alterando o seu modelo alimentar tradicional por um tipo de alimentação progressivamente mais isento de produtos de origem animal. Esses indivíduos, cuja alimentação se designa por vegetariana ou vegan, consoante o grau de evicção dos produtos de origem animal, procuram com esta alteração, entre outras coisas, ter uma alimentação mais saudável.

Embora não seja esta a única razão para esta alteração dos hábitos alimentares, a comunidade científica tem procurado responder a esta questão, isto é, se e até que ponto é mais saudável este tipo de alimentação.

O artigo em causa, publicado no início do mês de setembro, procura responder a estas dúvidas, recorrendo a uma coorte de cerca de 48 000  indivíduos residentes no Reino Unido e que fazem parte de um estudo mais extenso, o estudo EPIC (European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition), que inclui o impressionante número de mais de meio milhão de indivíduos de dez países europeus, seguidos por mais de quinze anos.

Trata-se, pois, de um número muito significativo de indivíduos, que por si só permite desde já uma robustez das conclusões que dificilmente se obteria com amostras menores e com menor tempo de seguimento, como é mais frequente em estudos deste género.

As conclusões do estudo são claras e apontam para um menor risco de doença coronária nos indivíduos que seguiam dietas vegetarianas/vegan face aos indivíduos que consumiam carne, diferença esta que se manteve significativa (embora marginalmente) quando os resultados foram ajustados para variáveis confundidoras, como a pressão arterial, o índice de massa corporal (IMC), o colesterol plasmático ou a presença de diabetes (variáveis autorreportadas). Esta redução, de cerca de 20%, é consistente com estudos anteriores onde se demonstra o papel do colesterol LDL (ou não-HDL) no risco de enfarte do miocárdio, sendo que no presente trabalho se voltou a observar que os indivíduos que incluem carne no seu padrão alimentar apresentam valores de colesterol LDL mais elevados.

Por outro lado, foi também observado um aumento significativo de risco de AVC (de magnitude próxima também dos 20%) nos indivíduos com um padrão alimentar vegetariano/vegan. Este aumento foi observado sobretudo para o AVC hemorrágico, sendo o aumento de risco de AVC isquémico de menor magnitude e sem significado estatístico. Estes resultados sobre o AVC foram mais surpreendentes e menos consonantes com a literatura.

Assim sendo, o título da notícia parece factualmente correto e pouco sujeito a crítica. Importa, no entanto, perceber até que ponto podemos afirmar estes efeitos destas dietas recorrendo a um estudo deste tipo. Na realidade, um estudo de coorte, como este, não representa o grau de evidência mais elevado de que dispomos e do qual necessitamos para inferir consistentemente acerca de relações de causa-efeito entre fenómenos (podemos encontrar um bom texto sobre a hierarquia da evidência científica aqui). Neste caso, para podermos ter um bom grau de certeza de que os padrões alimentares vegetarianos reduzem a doença coronária ou aumentam o número de AVCs, teríamos de recorrer a ensaios clínicos aleatorizados e com dupla ocultação, o que, pelo menos neste caso, seriam quase impossíveis de realizar. Este é ao mesmo tempo o problema e o fascínio que as Ciências da Nutrição encerram, pois embora os estudos de natureza epidemiológica frequentemente nos apontem para determinadas respostas, carecemos quase sempre da prova definitiva por ensaio clínico.

O “sumo” que o engenho de tantos cientistas tem retirado dos estudos transversais ou de coorte tem sido fundamental para entender as muito complexas relações entre alimentação e saúde, mas tal não deve entusiasmar-nos em demasia nas conclusões que deles tiramos. Acrescenta-se que especial cuidado terá que ser tido na comunicação feita por meios generalistas e dirigidos ao grande público, cuja capacidade de interpretar estas “nuances” é certamente menor.

3. Veredicto final do “Pensar Nutrição”

Em conclusão, embora a notícia em causa seja fiel às conclusões do estudo, o grau de certeza (ou ausência de incerteza) com que os resultados são anunciados não é compatível com as limitações intrínsecas deste nem com o facto óbvio de se tratar de um estudo apenas. Considera-se, pois, que a notícia é “Imprecisa”.

Fact-checking – “Vegetarianos podem ter menos doenças cardíacas, mas maior risco de AVC” 3

 

Escrito por

nuno borges
Nuno Borges
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação, Universidade do Porto | Website

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