A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença. O ato de comer tem implicações nestas diferentes dimensões da saúde e a alimentação inadequada é um determinante central da nossa saúde e no risco de desenvolvimento de doença. Por estas razões, tem vindo a ser dada uma atenção crescente ao ato de comer, não apenas na forma de integrar nutrientes necessários ao bom funcionamento do organismo, mas também ao conhecimento técnico necessário para relacionar alimentos e processos físicos e químicos de maneira a tornar o ato de comer sensorialmente apelativo e promotor de sociabilidade. Sem estas vertentes integradas, dificilmente o cidadão muda o seu comportamento ou a promoção da alimentação saudável ganha adeptos.

Mais recentemente, diversos autores têm vindo a alertar para a necessidade de capacitar os profissionais de saúde que trabalham no contexto da prevenção e gestão das doenças crónicas para um maior conhecimento na área das artes culinárias, e também que a formação académica na área das ciências da nutrição passe a integrar mais competências nesta área. O mesmo se aplica no sentido inverso, ou seja, trazendo os profissionais das artes culinárias para as áreas de conhecimento das ciências da nutrição.

Para que esta discussão, sobre as afinidades entre a gastronomia e as ciências da saúde e da nutrição, poderemos convocar Brillat-Savarin que em dezembro de 1825 com o seu Physiologie du goût editado em Portugal pela Relógio D´Água em 2010, inaugura a discussão aprofundada do que é a gastronomia e suas relações com a saúde. Sobre a definição de gastronomia Brillat-Savarin, na sua Meditação XI no capítulo intitulado Da gastronomia diz o seguinte: “Confundem continuamente os termos gastronomia propriamente dita com os de gula e de voracidade…esqueceram, perderam completamente a memória da gastronomia social que, reunindo a elegância ateniense, o luxo romano e a delicadeza francesa, prepara com finura, manda executar com sabedoria, saboreia com energia e ajuíza com profundidade.” “A gastronomia é a preferência apaixonada, racional e habitual por todos os objetos que agradam ao paladar. A gastronomia é inimiga do excesso; qualquer homem, que tenha uma indigestão ou que se embebede, corre o risco de ser excluído da classe dos gastrónomos. Do ponto de vista físico, é o resultado e a prova do estado saudável e perfeito dos órgãos destinados à nutrição. Do ponto de vista moral, representa uma cedência implícita às ordens do Criador que, tendo-nos mandado comer para viver, nos convida a fazê-lo pelo apetite, nos mantém pelo sabor e nos recompensa pelo prazer” Ainda segundo Brillat-Savarin “A gastronomia é um dos principais elementos de união da sociedade. É ela que alarga gradualmente esse espírito de convívio que reúne, todos os dias, as diversas classes, as funde num único todo, anima a conversa e esbate os contornos da desigualdade convencional.” E por fim “Quando a gastronomia se transforma em gula, voracidade, devassidão, então perde o direito ao seu nome a à sua superioridade, escapa às nossas atribuições e passa a fazer parte da área dos moralistas, que a combaterão através dos conselhos, ou do médico que a procurará curar com remédios”.

Destes lúcidos textos, embora característicos de uma época, percebe-se as possibilidades de evolução e afinidades entre as ciências da nutrição, que no início do Séc. XX começam a compreender a relação entre os nutrientes presentes nos alimentos e a saúde, e as artes culinárias e a gastronomia que tentam trabalhar o sabor e por consequência o gosto individual e coletivo. Os seres humanos fazem cada vez mais as suas escolhas baseadas no conhecimento e na racionalidade de uma procura pela saúde e bem-estar, sustentadas pelo desenvolvimento das ciências da nutrição. As escolhas alimentares também têm por base o prazer primitivo que os alimentos estabelecem com o nosso organismo e com os centros de prazer e saciedade, com a disponibilidade dos alimentos e, por fim, o relacionamento social, cultural, económico e histórico que configura o ato de comer numa determinada influência hierárquica das nossas escolhas diárias. É neste equilíbrio de difícil definição que se pode inserir o relacionamento destas duas ciências que se podem ajudar mutuamente na procura do sabor e da saúde influenciando gostos e preferências que hoje se desejam saudáveis para todos os seres humanos, sem exceção, e também para a saúde do planeta.

Isto significa que o conhecimento culinário e a gastronomia podem ajudar a recuperar formas de produzir e sabores tradicionais incluindo os da “saudade” ou ajudar na implementação de refeições saudáveis e sustentáveis, necessitando para tal do conhecimento das culturas alimentares locais e do conhecimento científico na área dos alimentos ao longo do processamento e até mesmo na biodisponibilidade dos nutrientes. Um tipo de conhecimento de base popular, passado dos mais velhos para os mais novos, integrando o conhecimento da disponibilidade sazonal de alimentos nas paisagens produtivas locais, as necessidades biológicas das populações e integrando também a capacidade de acesso e troca das comunidades, ou seja, a sua relação com o meio e os outros seres humanos, mais próximos ou afastados. Isto significa também, uma maior ligação entre o conhecimento culinário e o conhecimento das ciências da nutrição e da saúde, que o novo Mestrado em Ciências Gastronómicas da FCNAUP pretende incentivar e trabalhar.

Como exemplos práticos desta possibilidade de interligação entre as ciências da nutrição e a gastronomia poderemos situar a tradicional formação dos profissionais envolvidos na produção de refeições. Contudo, existe um potencial por explorar que vai mais além desta situação. Citamos alguns exemplos.

A redução de sal, de açúcar, de gordura saturada e do valor energético dos alimentos à venda e das refeições disponibilizadas é hoje uma das áreas de intervenção em saúde pública a nível nacional e também um objetivo também da OMS e da Comissão Europeia. Nesse sentido, a indústria alimentar nacional iniciou na última década um trabalho de reformulação da oferta alimentar que ganhou força em Portugal com os acordos firmados recentemente. Contudo, na área da restauração, tem sido mais difícil de serem atingidos estes objetivos pela dificuldade em conciliar a produção de refeições que tem ainda por base um conhecimento técnico ancestral que privilegia o uso de sal e açúcar em excesso, bem como de uma proporção elevada de alimentos com proteína e gordura de origem animal. No setor da restauração a intervenção tem sido também dificultada pela enorme dispersão dos muitos estabelecimentos comerciais e da necessidade de ter baixos custos de produção. Este é um dos desafios da aliança entre a gastronomia e a saúde, inovando para manter a qualidade sensorial, a genuinidade dos produtos de origem, ao mesmo tempo que se modifica e melhora a qualidade nutricional da oferta na restauração e hotelaria.

Outra área de trabalho é o desenvolvimento de técnicas culinárias ou de conservação dos alimentos que permitam manter ou até aumentar a presença de alguns nutrientes ou a sua biodisponibilidade. Por exemplo através da revitalização da fermentação de produtos hortícolas de forma natural, usando as culturas indígenas. Esta metodologia é histórica, sobrevivendo de geração em geração entre famílias e países. Hoje em dia, essas fermentações podem ser controladas usando culturas de arranque adequadas aos objetivos pretendidos obtendo efeitos benéficos para a saúde e bem-estar. A fermentação é um processo lento de decomposição de substâncias orgânicas induzida por microrganismos ou enzimas que essencialmente convertem hidratos de carbono em álcoois ou ácidos orgânicos. Quando aplicada a hortícolas e, escolhendo a cultura de arranque adequada, parece ser um processo promissor, para os enriquecer em micronutrientes.

Muitas outras possibilidades abrem-se também com a necessidade de explorar e valorizar gastronomicamente plantas e animais, que embora comestíveis e de grande valor nutricional possuem menor valor comercial no território nacional. Esta área integra também a preservação das espécies locais numa lógica de sustentabilidade social e ambiental que hoje tem de estar presente no desenvolvimento dos produtos e serviços inovadores na área da alimentação.

Este é um futuro risonho para esta nova relação técnica e científica que esperamos fazer no Mestrado em Ciências Gastronómicas, que iniciamos este ano na Universidade e no Politécnico do Porto.

Escrito por

Professora Catedrática da FCNAUP. Diretora do Mestrado em Ciências Gastronómicas.

Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

Pedro Graça Diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto