Tripas: Património cultural imaterial

Comemorar a gastronomia e estar atento às tradições alimentares locais é importante para beneficiar da identidade e coesão das populações, do seu património histórico e cultural, e do prazer da alimentação. Ao mesmo tempo, contraria-se a superabundância de alimentos ultra-processados, e a diminuição da dimensão social da alimentação, com o consequente aumento de refeições desestruturadas e sem horários, e com famílias menos reunidas em torno da refeição. Aliás, é na ausência de regras sobre o que se come (gastroanomia (1)) que prolifera boa parte das pressões múltiplas e contraditórias que se exercem sobre o consumidor.

O momento é de renascimento da gastronomia portuguesa, e nas suas múltiplas dimensões, esse movimento mantém viva a nossa identidade e contraria a visão antiga de alguns que ainda pudessem olhar para a tradição culinária portuguesa à volta de empanzinantes banquetes (2), adaptando o receituário português à vida contemporânea para que a comida tradicional ajude a promover o saber, a humanização, e o nosso quotidiano saudável.

As Tripas fazem parte da cultura, tradição e do sentimento do Porto há mais de 600 anos, como a FCNAUP fez questão de assinalar na cidade do Porto, promovendo a comemoração multi-institucional do VI Centenário das Tripas, envolvendo milhares de pessoas (incluindo as que frequentaram Cantinas da UP e das EB1 públicas do Porto, que serviram milhares de refeições de Tripas ao almoço – nas Escolas, com receitas naturalmente adaptadas, dispensando carne processada, o que não comprometeu a essência gastronómica do “prato” de tripas e feijão), e é esse contexto que nos dá legitimidade para justamente reconhecer que pudessem constituir uma candidatura a Património cultural imaterial da humanidade. Há semanas atrás, para a mesma distinção, o Ministério da Cultura francês pensou na sua baguette.

Sabemos que o que comemos está muito longe – felizmente! – de ser apenas para satisfazer necessidades nutricionais; e que muito do que escolhemos não escapa a críticas de imperfeições nutricionais (só o leite materno chega a ser perfeito e apenas nos primeiros seis meses de vida). Mas na construção das nossas preferências impõe-se a nossa cultura alimentar (i.e., a rede de valores, atitudes e convicções que alicerçam a forma como nos relacionamos através da alimentação) que acrescenta sabedoria preciosa ao comer saudável, e uma teia de comunicação para a construção empírica do que é edível ou saboroso (às vezes, com inevitáveis conflitos biológicos, de escolha, de sustentabilidade e de outras ordens).

No caso das Tripas, esse caldo cultural dotou naturalmente os habitantes do Porto, de capacidade para preservar uma tradição, em respeito à sua ancestralidade, com base numa lenda cuja narrativa remonta a 1415, e constituiu as Tripas como uma unidade gastronómica – paradigma de partilha e solidariedade – de razoabilidade de exposição (no Porto, “é” às 5as!) e aproveitamento de alimentos. E desde 1415, os portuenses são conhecidos por “tripeiros” por, de acordo com a lenda, terem cedido todas as carnes da cidade, com exceção das tripas, à armada do Infante D. Henrique que partiu nesse ano do Porto à conquista de Ceuta.

As Tripas que analisámos em laboratório de bromatologia (FCNAUP/FFUP), e comemos – 320g (300g de Tripas e 20g de arroz), 772 kcal (VET: 26% de gordura; 36% de hidratos de carbono; e 38% de proteínas), excelentes, provenientes de um importante restaurante do Porto, incluíram, para além de feijão, tripas, cenoura e cebola, quantidades parcimoniosas de galinha, orelheira e mão de vaca, e traços de salpicão do lombo, pimenta e cominhos (o que menorizou o sal); não tinham: chouriços, presunto, toucinho, cabeça de porco, além de orelha, nem banha de porco. A sensatez deste equilíbrio de ingredientes que recebemos, protege as Tripas de exageros que, se acontecessem, não as promoveriam para a amplitude de oportunidades de consumo que lhe são legítimas, na receita que nos foi apresentada.

[se os omnívoros aumentassem a ingestão de órgãos dos animais que habitualmente consomem, ajudando assim a diminuir em 50% o seu desperdício nos sistemas alimentares e, consequentemente, precisando de comer (produzir) menos carne muscular, poderiam contribuir para que as emissões de gases com efeitos de estufa, no exemplo de países populosos como a Alemanha, baixassem até 14% (3)]

No elogio ao Homem:
⁃ generalista (ou seja, não especialista no comer, omnívoro) que, por essa organização biológica e alimentar, conseguiu (sobre)viver nos sítios mais extremos (do gelo do Ártico aos desertos, enfrentando longas viagens marítimas, sem frescos, para as conquistas e Descobrimentos portugueses, ou fechado meses a fio, em estações espaciais para a exploração do Universo);
⁃ com liberdade (também nutricional) para escolher padrões de alimentação com os quais mais se identifica, onde entrem todos/só alguns/ou nenhum dos alimentos de origem animal; e simultaneamente
⁃ solidário, capaz de manter viva a tradição de um “Prato” que une os portuenses há mais de 600 anos;
⁃ fica a sugestão de candidatar as Tripas a esta merecida distinção, que traria vantagem adicional ao movimento de defesa da comida, capaz de contrariar a ditadura do “Faz mal”, típica da perda de cultura

 

Bibliografia:
1 – Poulain, J.P. Sociologias da alimentação. Editora da UFSA, Florianopolis, 2004.

2 – As nossas boas ementas: gastronomia sadia do Concelho de Loures / Câmara Municipal de Loures; coord. científica Emílio Peres, Pedro Moreira, Loures: C.M., D.L. 1994

3 – Xue L, Prass N, Gollnow S, Davis J, Scherhaufer S, Östergren K, Cheng S, Liu G. Efficiency and Carbon Footprint of the German Meat Supply Chain. Environ Sci Technol 2019;53(9):5133-5142.

Escrito por

Pedro Moreira 1
Pedro Moreira
Nutricionista, Professor Catedrático na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website
Patrícia Padrão 3
Patrícia Padrão
Nutricionista, Professora Auxiliar da Faculdade de Ciências da Nutrição e da Alimentação da Universidade do Porto.

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