25 anos de ensino de Política Nutricional em Portugal

O ensino de “Política Nutricional” iniciou-se na Universidade do Porto, no ano letivo de 1996/1997, no antigo Instituto Superior de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (ISCNAUP), atualmente FCNAUP. Uma aventura científica, pedagógica e intelectual que celebra agora 25 anos. Aproveitamos esta efeméride para revisitar o aparecimento desta área disciplinar e a sua evolução no contexto da formação de nutricionistas em Portugal.

Da necessidade da existência de políticas nutricionais à necessidade de ensinar política nutricional

Nos finais dos anos 90, ganhamos consciência, aqui na FCNAUP, da necessidade de aprofundarmos a discussão sobre políticas públicas na área da alimentação tendo por base princípios e objetivos nutricionais. Depois da conferência conjunta FAO/OMS de Roma em 1974 e depois de ao longo dos anos 80 e 90, a Organização Mundial da Saúde e outros organismos internacionais da área da saúde, publicarem múltiplos textos e tomadas de posição sobre a necessidade de se implementarem políticas públicas na área da alimentação com o objetivo de melhorar o estado nutricional das populações, era impossível fugir a esta discussão na formação académica de nutricionistas. Ou seja, ao longo desse tempo foi-se progressivamente assumindo que o atingir de objetivos nutricionais para toda a população devia ser um objetivo a perseguir pelas diferentes políticas nacionais no seu todo como alternativa à tradicional prática de deixar o assunto do estado nutricional das populações secundarizado e incluído exclusivamente nas políticas agrícolas (com evidentes conflitos de interesses), nas políticas sociais, económicas ou até nos negócios estrangeiros. Ou seja, começamos a olhar para as políticas alimentares numa perspetiva nutricional, com os olhos do nutricionista, um profissional de saúde com visão sistémica, daí termos assumido o termo “Política Nutricional” ou Políticas Públicas com objetivos nutricionais ao longo de grande parte deste ensaio.

Esta forma de olhar para a intervenção na sociedade, também foi moldada pelas conversas com mestres como Francisco Gonçalves Ferreira, Cayolla da Mota, José Luís Castanheira e Emílio Peres. Central neste pensamento político foi a obra do Professor Gonçalves Ferreira (1912-1994) que praticamente deste a entrada em funcionamento do Centro de Estudos de Nutrição (CEN) em 1976 até início dos anos 90, tentou interligar a composição dos alimentos portugueses, a análise das disponibilidades alimentares e a definição de uma política alimentar e nutricional para o nosso país. Em 1978, Francisco Gonçalves Ferreira publica “Política Alimentar e de Nutrição em Portugal” onde apresenta uma proposta de estratégia alimentar e nutricional para Portugal tendo em conta a informação disponível à data. Infelizmente, e por várias circunstâncias alheias à sua vontade, este seu objetivo nunca chegou a ser atingido.

Apesar da dimensão da política pública estar bastante presente na escrita de Gonçalves Ferreira e em numerosos artigos publicados nos anos 70 e 80 não foi revertida especificamente para nenhuma área disciplinar aquando da criação do Curso de Nutricionismo na Universidade do Porto onde participou ativamente. Um curso inovador e nas suas palavras “destinado a dotar o País de técnicos superiores de alimentação e nutrição, capazes de actuarem nos diversos sectores da Saúde, Assistência Médica, Indústria Transformadora Nacional e outras actividades ligadas ao consumo racional de alimentos, na base de programas de educação alimentar, de ensino da nutrição, de aplicações tecnológicas e de estudo, dirigidos para a promoção da saúde da nossa população.” (FA Gonçalves Ferreira. As perspectivas do curso de nutricionismo. Revista CEN, 12 (3) 1988).

Neste período de consolidação da profissão e da formação inicial de nutricionistas o objetivo era formar técnicos superiores de base sólida e multidisciplinar capazes de intervir com qualidade na prevenção da doença, nomeadamente através da educação alimentar, e no tratamento das principais doenças de base alimentar. Apesar da definição de políticas públicas ser assunto de debate na sociedade portuguesa depois de 1974, no contexto formativo biomédico conservador onde se inseria o jovem Curso de Nutricionismo, esta discussão conceptual nunca ganhou massa crítica e visibilidade apesar de uma forte consciência social e de diversas intervenções no terreno, nomeadamente através de campanhas de educação popular e do combate à ignorância alimentar e nutricional que caracterizam a Escola de Nutrição do Porto. Esta situação foi diferente em alguns países (poucos), por exemplo no Brasil, onde as ciências da nutrição estiveram no seu início associadas ao pensamento de personalidades como o argentino Pedro Escudero ou Josué de Castro com uma maior presença doutrinária e também com maior perceção da necessidade e urgência de políticas públicas para resolver problemas nutricionais.

Tal como a formação de nutricionistas e médicos dentistas surge na Universidade do Porto por um acaso e oportunidade relacionada com o número excessivo de estudantes a frequentar os cursos de medicina depois do 25 de abril, o aparecimento de uma área disciplinar especificamente dedicada à “Política Nutricional” e com regência de nutricionistas também aparece por uma oportunidade ocasional relacionada com a saída do responsável, um economista que então lecionava “Política e Economia Alimentar” e que, ao ser substituído, vai permitir a reformulação da disciplina para se passar a chamar “Política Nutricional”. Neste processo é central o apoio do então diretor do curso Prof. Norberto Teixeira Santos e mais tarde da sua sucessora Prof. Maria Daniel Vaz de Almeida.

Apesar da área disciplinar de “Política Nutricional” criada no ano letivo 1996/1997, marcar o início do ensino das “políticas alimentares modernas”, importa destacar que desde o início do Curso de Nutricionismo que as políticas públicas relacionadas com a área da alimentação foram consideradas em áreas disciplinares relativamente independentes, nomeadamente através das disciplinas de “Estatística e Economia Alimentar” e “Política e Economia Alimentar”. O Curso de Nutricionismo inovou ao atribuir desde o início do seu funcionamento uma determinada importância às questões da Economia Alimentar. A primeira disciplina nesta área do plano disciplinar vai chamar-se “Estatística e Economia Alimentar”. O objetivo será o de ensinar princípios base de economia que ajudassem a compreender a procura e a oferta alimentar, a regulação dos preços, bem como princípios básicos de gestão que poderiam ser úteis na compra de alimentos e na gestão de stocks em compras de maior dimensão. Estes princípios advinham da perceção de conceder uma formação multidisciplinar capaz de dotar os futuros nutricionistas de um conhecimento básico sobre macroeconomia, sobre as forças do mercado e sobre os cidadãos enquanto consumidores, mas também (provavelmente) de uma longa tradição dos tempos da formação em dietética onde a área disciplinar de “Home Economics” tinha uma forte presença no mundo anglo saxónico.

O “programa experimental” (assim chamado) de “Estatística e Economia Alimentar” do ano letivo de 1977/78 tinha, e nas palavras do seu primeiro regente, dois objetivos básicos: – evidenciar que os problemas alimentares são também, em grande medida, problemas económicos e; – habituar os alunos à resolução de certos problemas concretos de economia alimentar. Para atingir estes objetivos delineou-se um programa com “Noções fundamentais de economia”; “Economia alimentar” e; “Exercício práticos de economia alimentar”. Desde o início, as questões da política aparecem associadas à avaliação da situação alimentar e às propostas de melhoria alimentar inscritas no Ministério do Plano e Coordenação Económica através do Plano de Médio Prazo 77/80. A novidade e experimentação na área era elevada pois não era comum ensinar economia a futuros nutricionistas, uma profissão ainda em construção. Neste sentido, é interessante transcrever as notas do regente desta nova disciplina no seu primeiro relatório para a direção do Curso onde a certa altura se pode ler: Material de Estudo – Pelas razões já apontadas (experiência nova) não existe qualquer manual que contenha o programa dado nem há possibilidade de se elaborarem apontamentos adequados para o presente ano letivo. Mais tarde e já nos finais de 80, meados de 90, a disciplina muda de nome passando a chamar-se “Política e Economia Alimentar” acentuando as questões da microeconomia e até da fiscalidade. As noções de política alimentar centravam-se em torno das balanças comerciais, da Política Agrícola Comum (PAC) e do Fundo Europeu de Orientação e Garantia Agrícola (FEOGA) com o objetivo de orientar e melhorar as condições de produção e comercialização dos produtos agrícolas. As questões nutricionais e o seu enquadramento nas questões económicas e políticas eram na altura residuais sendo as questões alimentares e das políticas agrícolas preponderantes.

Os primeiros anos de construção e consolidação conceptual (1996-2004)

Na altura, de forma quase intuitiva, a nossa intenção foi a de alterar estes conteúdos situando a nova disciplina no arco da necessidade de uma intervenção sobre a sociedade para se conseguirem melhorias mais amplas e significativas no estado nutricional das populações onde os nutricionistas pudessem liderar estes processos.

A aquisição destas competências implicava um corpo conceptual que ia mais além do que a deteção de problemas de saúde e respetivo planeamento e implementação de intervenções como era tradição da saúde pública. Implicava um amplo conhecimento do sistema alimentar e das ferramentas capazes de gerarem mudança nutricional, ou seja, uma mudança no paradigma de intervenção que se começou a desenhar desde então, mas que até hoje ainda se mantém muito inacabado. Na altura, a perceção da necessidade de existir ação nesta área, para além da educação, era muito reduzido ou até inexistente. Pensava-se que a intervenção dos nutricionistas deveria estar concentrada no ensino e educação da alimentação racional aos cidadãos. A palavra política era (ainda é, em parte) maldita para estudantes e profissionais de saúde, na já habitual confusão entre políticos, política e políticas públicas. Foi neste ambiente completamente experimental, intuitivo, que se iniciou a construção desta área de conhecimento na FCNAUP.

Desde o início da construção desta nova área disciplinar, era claro para nós que o nutricionista, apesar de estar incluído na esfera dos profissionais de saúde, tinha que ter competências específicas para organizar a sua intervenção num sistema alimentar onde o ser humano e a natureza dialogam constantemente. Ou seja, ao escolher que alimentos comer, o ser humano faz uma escolha que influenciará a sua saúde a médio prazo, mas também escolhe um produtor e um modo de produzir, um modo de organizar a distribuição alimentar, de consumir e até um modo de reciclar, estabelecendo com a sociedade e com o sistema alimentar (de forma mais ou menos consciente) uma relação. O consumidor paga um preço pelo alimento e recebe um benefício (nutricional, entre outros) mas em paralelo, o mesmo consumidor estabelece automaticamente um pacto com a natureza. Do mesmo modo, o nutricionista ao aconselhar e influenciar consumos alimentares, está a fazer muito mais do que a moldar a ingestão de nutrientes. Está a influenciar todo o sistema alimentar, o mesmo sistema que já tinha influenciado anteriormente as escolhas alimentares dos consumidores.

Esta ligação, entre os sistemas produtivos e as escolhas alimentares já tinha sido objeto de reflexão ao longo do séc. XX. Por exemplo e desde os anos 70 do Séc XX, o ensaísta e filósofo norte-americano Wendell Berry tinha simplificado parte desta equação do seguinte modo “the industrial eater is, in fact, one who does not know that eating is an agricultural act, who no longer knows or imagines the connections between eating and the land, and who is therefore necessarily passive and uncritical — in short, a victim. When food, in the minds of eaters, is no longer associated with farming and with the land, then the eaters are suffering a kind of cultural amnesia that is misleading and dangerous”. Wendell Berry dá voz a uma corrente de académicos e ativistas que foram precursores de um modelo de consumo mais simples e próximo da produção, ligados à proteção da natureza, como foi o caso de Joan Dye Gussow, uma das precursoras da política alimentar e nutricional nos EUA (The Pleasures of Eating” from WHAT ARE PEOPLE FOR? by Wendell Berry. Copyright © 1990 by Wendell Berry). A outro nível, o ato alimentar e em particular a compra ou o boicote como forma de participação política e crítica de determinados regimes ou ações políticas também tem sido discutido abundantemente na literatura (International Political Science Review (2005), Vol 26, No. 3, 245–269) e, mais recentemente, o estudo do consumerismo político foi alargado ao estudo não apenas individual, mas também coletivo.

O ato alimentar é um ato profundamente influenciador de toda a sociedade, de toda a pólis e por isso profundamente político e só com esta tomada de consciência o nutricionista poderá ser um ator capaz de fazer a diferença no sistema alimentar utilizando as ferramentas adequadas para tal. Enquanto o cidadão – consumidor, pode influenciar o sistema alimentar através das suas escolhas alimentares, o nutricionista necessita de ir mais além, conhecendo e sendo capaz de agir sobre as diferentes forças que condicionam o mercado, ou seja, advogando causas, fazendo pressão sobre a regulação e produtores de legislação, identificando espaços de ligação entre eleitores e decisores, criando e apoiando evidência científica útil para a tomada de decisão ou influenciando a opinião pública, apenas para citar alguns exemplos. Infelizmente, a formação existente até então, tantos nos cursos de base biomédica como na formação de dietistas/nutricionistas na Europa não continha estas premissas, trabalhando essencialmente a intervenção na comunidade a partir da educação/informação e na capacitação dos cidadãos para escolhas alimentares saudáveis e menos nas modificações ambientais. É esta inovação que a disciplina de Política Nutricional pretendia trazer para a formação de nutricionistas e que se vai iniciar, ainda de forma incipiente, nos primeiros anos.

O programa teórico da disciplina de Política Nutricional nos primeiros anos é muito centrado na demonstração da necessidade de existirem políticas na área da alimentação e nutrição e em exemplos concretos da sua efetivação. O caso da Noruega que implementa uma política nutricional em 1974, os fundamentos económicos das politicas públicas (matéria ainda herdada da disciplina anterior), os objetivos nutricionais e alimentares a atingir na políticas nutricionais, as questões da equidade, as questões éticas, a defesa das identidades regionais, as atividades que influenciam a disponibilidade alimentar, desde a produção à distribuição, e por fim, os sistemas de informação e monitorização confundem-se num programa muito diversificado e ainda à procura de uma estabilização e enquadramento conceptual. De referir que à data eram poucos os países europeus com estratégias e políticas alimentares e nutricionais implementadas sendo a maior parte das propostas de estudo da disciplina baseadas numa aproximação a uma realidade construída experimentalmente. Ainda no final da década de 90, depois de 98/99 introduzem-se as questões ambientais – “A preservação dos ecossistemas e política alimentar” ou as questões da proteção territorial lançando estes debates na nossa comunidade académica ainda de forma incipiente, mas muito antes do seu tempo.

Em paralelo e nestes anos iniciais começa-se desde cedo a trabalhar nas aulas práticas em modelos de casos de estudo com problemas por resolver, uma metodologia que não abandonaremos e que nos parece adequada para esta área formativa. Por exemplo, no ano letivo de 97/98 trabalhamos 4 grandes áreas com problemas por resolver em cada uma delas: – “A Política Nutricional e as Grandes Questões Políticas”; “Mudança Social e Política Nutricional”; Mudança Demográfica e Política Nutricional” e “Economia e Política Nutricional”. Também será dado um enfase grande à avaliação pedagógica dos nossos estudantes que será determinante para que existam afinações praticamente semestrais a cada ano e que se mantém também como componente central deste modo de ensinar. Tornar este tema relevante para os nossos estudantes e reter o interesse deles por esta área obriga a uma auscultação continuada do nosso público. Que mantemos desde o primeiro dia.

A partir de 1998, com a revisão do Tratado de Maastrich em Amsterdão declara-se no Artigo 152 que ” a protecção da saúde deve ser assegurada na elaboração e implementação de todas as políticas e actividades comunitárias”. A possibilidade de existir uma Política Alimentar Comum, com uma participação ativa de nutricionistas ganha algum peso nos anos seguintes e em abril de 2001 falamos sobre este assunto no artigo “Os Nutricionistas e a Política Alimentar Nacional”. Neste texto, já com 20 anos, terminávamos assim: “Por todos estes motivos a integração de nutricionistas nas futuras estruturas responsáveis pela implementação de Políticas Alimentares será um passo necessário e irá acontecer na maioria dos países Europeus. Espera-se que em Portugal, devido à situação excepcional de recursos humanos que vivemos, não se fuja à regra, e até se vá mais longe. O momento que vivemos actualmente é pois de forte esperança para todos aqueles que têm lutado para uma sociedade mais saudável e mais atenta aos problemas nutricionais.” O texto seria premonitório, mas esta situação só aconteceria daí a 11 anos em 2012 como iremos ver.

Consolidação científica e pedagógica (2004- 2012)

A meio da década e de forma progressiva as questões da hígio-sanidade, que estavam no centro do debate alimentar na Europa desde a crise da BSE em 1996 o que deu origem à publicação do Livro Branco da Segurança Alimentar em 2000 pela Comissão Europeia e criação da EFSA dão lugar às preocupações com os impactes e dimensão das doenças crónicas, sendo aqui central a questão da obesidade. Em 2006, é adotada a Carta Europeia de Luta Contra a Obesidade, que Portugal assina em Istambul e que mais tarde irá originar em Portugal a Divisão da Plataforma contra a Obesidade no seio da Direção-Geral da Saúde. Entre outros objetivos presentes na Carta, Portugal comprometia-se a mobilizar diferentes setores da sociedade para criar ambientes menos obesogénicos – “High-level political will and leadership and whole-government commitment are required to achieve mobilization and synergies across different sectors.” Esta mobilização da sociedade em torno do combate à obesidade em Portugal vai permitir ensaiar diversas boas práticas e estimular o estudo das estratégias públicas para melhorar o estado nutricional das populações. Para isso também muito contribuirá a Declaração de Adelaide sobre a Saúde em Todas as Políticas (2010) um documento emblemático da OMS que marca a “necessidade de desenvolver ações governamentais coordenadas que considerem a saúde como um dos seus componentes centrais” e que será também uma inspiração para o ensino da Política Nutricional na FCNAUP. Este aumento da recetividade às políticas públicas para lidar com a doença crónica vai traduzir-se na consolidação científica desta área e será fundamental para a construção de uma política pública na área da alimentação e nutrição que verá a luz do dia a 13 de janeiro de 2012, quando é criado, pelo Despacho n.º 404/2012, o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) um programa de saúde prioritário gerido pela Direção-Geral da Saúde e integrado no Plano Nacional de Saúde.

Infelizmente, num processo de reflexão deste tipo, não é possível identificar as áreas chave que ajudamos a construir ou a consolidar, para além do óbvio da formação técnica, científica e humana dos nossos estudantes. Contudo, gostaríamos de sublinhar que durante este período inicia-se uma forte discussão sobre a “Definição de competências do Nutricionista e harmonização de conteúdos programáticos das Licenciaturas em Ciências da Nutrição (2006)”; sobre a necessidade de existirem “Princípios orientadores para uma ética profissional na área das Ciências da Nutrição” em parceria com a Associação Portuguesa dos Nutricionistas (2008) e da “Necessidade de uma Estratégia e Política Alimentar para Portugal (2004-2009)”. Discussões estas e modelos de ensaio, feitas no seio da FCNAUP e também noutros fóruns, onde participamos, que viriam a evoluir posteriormente e a originar diversos códigos reguladores e políticas nacionais na área.

Entretanto a nível pedagógico este é um período de muita experimentação. Em 2005/2006, é criada uma página Web da disciplina de Política Nutricional. Para além dos conteúdos programáticos, foram introduzidos dois novos conceitos nesta página. As “Informações” e o “PNmultimédia Café”. O espaço “Informações” é um quadro de notícias inicial no site. Funciona como um quadro de parede e permite dar informações julgadas úteis. O “PNmultimédia Café” é um local de informação extracurricular onde são afixadas questões, notícias relacionadas com a política internacional, de cultura ou de lazer. Posteriormente, e ao longo de 2005-2006 melhoram-se as ferramentas e os estudantes passam a ter uma conta personalizada de email, um Chat e um Fórum para discussão de trabalhos e acesso a questionários resolvidos.

A partir de 2005/2006 aumenta-se a ligação a outras Unidades Curriculares do Curso, nomeadamente às UC’s básicas, oferecidas nos primeiros anos, como é o caso da Bioestatística. No âmbito desta colaboração, desenvolveu-se uma base de dados e uma “plataforma web” chamada “Alvoroço” que apresentava um país virtual com indicadores sociais, demográficos e nutricionais, e ainda outras informações úteis e materiais bibliográficos, sobre os quais os estudantes construíam uma proposta de política alimentar e nutricional, que era apresentada publicamente no final do ano letivo. A construção desta comunidade utópica a que chamamos “Alvoroço ” e mais tarde “Nutopia” não era mais do que uma comunidade experimental e visionária com dados de consumos das nossas balanças da FAO para simular um Portugal mais perto da realidade quando os Inquéritos alimentares dos anos 80 pouco nos serviam para discutir a realidade alimentar nacional do séc. XXI e fazer propostas de mudança. Foi neste ambiente utópico que ensinamos gerações de nutricionistas.

Em 2005/2006 e até 2008/09 inicia-se a gravação em formato de vídeo digital das apresentações finais das aulas práticas de Política Nutricional. Deste material foi editado um CD com estes conteúdos que aumentaram o arquivo histórico da UC e permitiram fornecer aos estudantes dos anos seguintes um exemplo de boas práticas. O material estava à disposição dos estudantes.

A partir da matéria base lecionada na UC de Política Nutricional fez-se uma adaptação para a melhoria do módulo de Food and Nutrition Policy dado no âmbito do Mestrado Europeu em Nutrição e Saúde Pública, liderado pelo Karolinska Institut em que a FCNAUP participava.

Ao longo deste período, este tema transformou-se numa área disciplinar inserida em praticamente todos os planos curriculares das licenciaturas em Ciências da Nutrição em Portugal e mais tarde será considerada uma área de referência na formação académica dos nutricionistas.

Mas mais importante para nós, enquanto Escola de Nutrição do Porto, é podermos ter fomentado na nossa comunidade académica o interesse pelas políticas públicas promotoras de uma alimentação saudável e pela cidadania envolvida, comprometida, nos bens comuns. É nosso entendimento que este corpo disciplinar incentiva a refletir sobre as grandes questões relativas ao tipo de sociedade em que nos queremos tornar e à forma como devemos alcançar essa sociedade. Nas últimas décadas tem vindo a ser descrito o aparente abandono da participação democrática cidadãos. Em particular, por parte dos mais jovens, cujos níveis de envolvimento eleitoral e partidário tende a ser inferior à da população em geral (Henn M and Foard N (2012b) Young people, political participation and trust in Britain. Parliamentary Affairs 65: 47–67), e mesmo das gerações anteriores de jovens. No entanto, estudos revelaram também que, apesar da sua aparente falta de interesse em atividades políticas formais, os jovens são atraídos e envolvem-se em modos e estilos informais de participação na vida política (O’Toole T (2015) Beyond crisis narratives: changing modes and repertoires of political participation among young people. In: Kallio K, Mills S and Skelton T (eds) Politics, Citizenship and Rights. Singapore: Springer, 1–15). Esta participação cívica, através de atividades como “dar dinheiro ou recolher fundos para uma atividade social, cívica ou política, comprar ou boicotar certos produtos por razões políticas ou para favorecer o meio-ambiente ou assinar petições” — parecem ser mais utilizadas pelos jovens portugueses assim como a “participação online” —em fóruns ou grupo de discussão na internet e nas redes sociais. Diferentes trabalhos em Portugal sugerem que os mais jovens possuem maiores níveis de “autoeficácia política” e “eficácia política externa”, ou seja, têm uma maior perceção de serem capazes de influenciar os processos políticos e para os ouvir. Na área alimentar é possível identificar um interesse crescente dos nossos estudantes universitários pelos temas alimentares inseridos nas problemáticas ambientais, nos direitos dos animais ou na ajuda humanitária. Estes interesses pessoais são estímulos para desafiar os nossos estudantes que vêm das ciências da vida (habitualmente através de um percurso académico muito exigente, mas também muito individualista e autocentrado) a considerarem-se membros de uma mesma comunidade, inserida num vasto sistema alimentar, valorizando e partilhando valores comuns da democracia através de propostas de educação cívica.

O ensino baseado na experiência (2012-2022)

Entretanto, depois de muito anos de espera, em janeiro de 2012, a Política Nutricional em Portugal tornou-se realidade através da criação do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS), um programa prioritário de saúde gerido pela Direção-Geral da Saúde e instituído por Despacho pelo Ministério da Saúde. A existência de uma estratégia nacional para a promoção da alimentação saudável conduzida pela DGS a nível nacional, permitiu começar a utilizar exemplos de uma realidade próxima e deixar de ter exemplos produzidos artificialmente em simuladores ou em outros países. Foi neste contexto que se evoluiu para um ensino baseado na experimentação social, legislativa e de intervenção na sociedade portuguesa produzida pelo PNPAS durantes os últimos 10 anos.

Esta experimentação no domínio das políticas públicas em Portugal, apesar de ter sido totalmente inovadora em muitas áreas, nomeadamente no domínio legislativo, permitiu acumular diversas lições que foram fontes de partilha e inspiração para a pedagogia na academia e também para ajudar a construir uma network de interessados nacionais e internacionais nas políticas públicas nesta área. O ensino baseado na experiência e a liderança que aqui obtivemos tinha também a obrigação ética da partilha. E foi precisamente com o intuito de alargarmos a nossa experiência na Política Nutricional a outras instituições de ensino superior nacionais que formavam nutricionistas, que publicamos em 2013, em parceria com outros colegas e professores com afinidades a esta área, o artigo “Consenso sobre Aspectos Técnicos, Pedagógicos e Éticos da Formação na Área da Política Nutricional para as Ciências da Nutrição em Portugal”. O diálogo alargado sobre aspetos técnicos, pedagógicos e éticos da área disciplinar da Política Nutricional iniciou-se a 17 de maio de 2013 sob os auspícios da Associação Portuguesa dos Nutricionistas (APN). Na altura foram convidados todos os responsáveis por esta área disciplinar nas diferentes instituições de ensino público e privado. Tal como afirmamos na altura… “A credibilidade numa área disciplinar tão recente e de crescimento tão rápido, necessita de consensos permanentes e alargados entre os profissionais que nela operam”. Neste texto, identificamos um conjunto de premissas ou aspetos-chave para a consolidação da formação nesta área disciplinar que se mantêm válidos, ainda hoje.

Entendemos na altura ser importante que esta área curricular:

“- Seja leccionada de forma autónoma de outras áreas curriculares, mas com a colaboração de áreas afins, nomeadamente das áreas agrícola, ambiental, social, económica, de saúde e da ciência política;
– Seja idealmente leccionada no último ano da formação pré-graduada integrando conhecimentos adquiridos em anos anteriores e capaz de potenciar a capacidade de intervenção do futuro Nutricionista na sociedade;
– Apresente a designação da UC uniformizada, por ex.: Política nutricional ou Política alimentar e nutricional;
– Apresente propostas pedagógicas em articulação com as propostas técnicas ou políticas nacionais e internacionais para este sector, que permitam ao estudante compreender como intervir e participar publicamente;
– Tenha em atenção a consciencialização do estudante para a ética política associada aos deveres éticos e deontológicos da profissão e para a política como dever de cidadania;
– Apresente ao estudante um conjunto de apoios bibliográficos de base consolidados, embora não restringindo a total liberdade e autonomia do docente e instituição na escolha definitiva dos materiais e métodos de apoio pedagógico ao estudante.”

O crescimento de massa crítica nesta área e sua progressiva diferenciação é um nosso objetivo. Apesar das políticas públicas com objetivos nutricionais serem por vezes coincidentes com a área disciplinar da saúde pública, fomos ao longo desta última década tomando consciência da sua diferenciação e autonomia. O ensino da ciência política remete para um determinado corpus teórico, uma metodologia analítica e linguagem das políticas públicas que necessitam de ser ensinadas com alguma profundidade para depois incorporarem as ciências da nutrição e o pensamento das políticas públicas com objetivos nutricionais. As políticas públicas são desenhadas em contextos institucionais com determinadas características facilmente tipificadas, onde os atores políticos comportam-se de uma determinada maneira, muitas vezes semelhante, e os conteúdos das políticas públicas podem ser analiticamente reduzidos a determinadas categorias gerais. Neste contexto a análise de políticas públicas, obriga a um conhecimento do “(i) o ator de política pública (se governamental ou não governamental), suas decisões e não decisões; (ii) os objetivos das políticas públicas e os meios institucionais para alcançá-los; (iii) os problemas que chamam a atenção do ator decisor e se transformam – e como o fazem – em tema de políticas públicas; (iv) os processos de implementação e de avaliação da política para o seu aprimoramento.” Este processo de análise da construção das agendas, da formulação das propostas de intervenção, do processo decisório, implementação e avaliação obriga a uma metodologia própria. Na análise das políticas públicas é dado um relevo central aos processos através dos quais os atores, instituições e o sistema alimentar interagem, o que reflete uma complexidade própria e a necessidade de um conhecimento disciplinar muito distinto da saúde pública. Esta constatação tem permitido ao corpo docente da FCNAUP um investimento nesta área e a incorporação crescente de alguns princípios das políticas públicas que são essenciais ao desenvolvimento e autonomia deste novo corpo disciplinar.

Para além destas questões conceptuais e pedagógicas, iniciamos nesta última década diversos processos de avaliação do sucesso das políticas e estratégias implementadas em Portugal. A investigação nesta área é fundamental para a consolidação da área disciplinar da política nutricional, mas também para a ligação com o ensino pós-graduado onde as políticas públicas têm vindo a assumir um espaço de crescimento importante na formação dos nutricionistas. A investigação na área das políticas públicas ganha assim relevo e nesse sentido criámos recentemente no seio da Unidade de Investigação Epidemiológica e do Laboratório para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR), do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) o Food Policy Lab com o objetivo de fazer a ligação à investigação num centro de investigação de excelência.

Notas finais

Neste ano comemoramos os 10 anos de uma Política Nutricional em Portugal e 25 anos do seu ensino. Existem agora condições para que se ensine Política Nutricional com mais qualidade e os nutricionistas portugueses com esta formação ganhem também e progressivamente consciência da sua capacidade transformativa. Esta é talvez a grande conquista destes anos, a formação de profissionais de saúde com maior consciência coletiva, com maior capacidade de intervir no sistema alimentar e perceção da ação coletiva necessária para a melhoria do estado nutricional das populações. Estamos em crer que se cumpre assim um dos objetivos dos pais fundadores da Escola de Nutrição do Porto. Em todo o caso, a missão está ainda muito longe de estar cumprida e as políticas públicas com objetivos de melhoria do estado nutricional das populações estão sujeitas a fortes pressões impedindo a sua plena consolidação. Um desafio enorme para as gerações futuras de nutricionistas.

Pedro Graça é desde o ano letivo 1996/1997 regente da Unidade Curricular de Política Nutricional na FCNAUP.

Maria João Gregório é desde 2011 docente da Unidade Curricular de Política Nutricional na FCNAUP.

Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website
Maria João Gregório 1
Maria João Gregório
Nutricionista, Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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