Balanços reais de um ano de COVID-19

A 19 de abril abrimos de novo as portas ao ensino presencial na nossa casa. Passou-se um ano debaixo do manto da Covid. Um ano que parece ter demorado um século. Um ano longo, dorido, que nos permitiu aprender muito. Do ponto de vista pessoal, familiar e profissional.

Apesar da pandemia ter começado insidiosamente num país longínquo, e depois, Portugal ter sido dos últimos países europeus a ser atingido, num percurso leste-oeste que já tinha sido feito por outras epidemias europeias ao longo dos últimos séculos, esta infeção desconhecida pareceu inicialmente ser benigna e ter pouco a ver com o estado nutricional das populações.

Esta perceção inicial durou pouco. Não só porque a doença se alastrou rapidamente a todo o país e cresceu exponencialmente, como se foram acumulando provas de que o estado nutricional poderia ser determinante no curso da doença. No primeiro texto escrito sobre a pandemia no Pensar Nutrição a 16 de março de 2020 escrevíamos: “Após contacto com o vírus, a maioria das pessoas desenvolve doença ligeira, sendo a probabilidade de complicações graves mais comum em pessoas de grupos etários mais velhos, na presença de outras doenças crónicas (por ex. diabetes) ou em casos de imunidade reduzida.” E acrescentamos: “O papel dos nutricionistas é pois o de comunicar mensagens simples. E ajudar a preservar a cadeia de abastecimento, informando sobre a necessidade de não se comprar mal e em demasia. O de promover uma alimentação equilibrada nas muitas crianças que vão reduzir a sua atividade física, de forma que a obesidade infantil não cresça nestas semanas. E ajudar a recuperar os que estão debilitados e hospitalizados, contribuindo para um adequado suporte nutricional, caso a caso. Esperamos que na área alimentar o bom senso prevaleça. E que os nutricionistas contribuam com o seu conhecimento científico para decisões informadas por parte dos cidadãos nestes momentos de preocupação e intranquilidade.” Estávamos em março de 2020 e ainda pensávamos que a epidemia duraria apenas algumas semanas e tínhamos muitas incertezas. A 10 de abril de 2020 o Prof. Alejandro Santos escreve um texto, hoje de referência, onde relaciona de forma fundamentada e inequívoca a relação entre a alimentação, obesidade e a COVID-19. Dizia ele a terminar o artigo: “Além de todas as medidas propostas para a mitigação da COVID-19, a adoção de um estilo de vida saudável com alimentação equilibrada e atividade física, promovendo perda ponderal quando necessário, pode ser a diferença entre sofrer um quadro de COVID-19 ultrapassável ou fatal. Ainda existe muito por conhecer nesta nova relação entre a obesidade e a COVID-19, mas uma coisa é certa, a forma como iremos ver a obesidade no futuro, agora que se perspetivam novas e sucessivas vagas infeciosas, por SARS-CoV-2 ou outra variante qualquer, vai transformar o trabalho dos profissionais de saúde, e muito em particular dos nutricionistas.” Seguiram-se outros textos da comunidade científica sobre este assunto. No “Pensar nutrição” refletimos bastante sobre o impacto da doença na prática profissional e em particular sobre a necessidade de os nutricionistas não ficarem em casa durante a pandemia e assumirem-se como agentes ativos e não passivos no sistema de saúde face à doença. No ensaio “O mundo pós-COVID e o novo papel dos Nutricionistas” publicado há precisamente um ano atrás, a 19 de abril de 2020, terminávamos o texto assim: “A solução volta a estar nas nossas mãos. E a nossa ação profissional será agora mais decisiva do que nunca. De facto, os nutricionistas não podem “ficar em casa” nestes tempos, sob o risco de se tornarem irrelevantes.”

Entretanto passou um ano. Na nossa profissão ficamos com o sentimento de uma oportunidade perdida para a nossa classe. No meio desta enorme crise de saúde pública, onde os mais atingidos foram claramente os cidadãos mais “desregulados nutricionalmente”, permitam-nos o simplismo. Não foi visível o ganho que poderíamos ter tido em colocar os nutricionistas na linha da frente ou o ganho daqueles que estiveram efetivamente. Por exemplo, a melhoria da regulação energética, o controlo salino ou a regulação glicémica, objetivos concretizáveis, na maior parte das vezes através de intervenção alimentar, poderia ter sido um contributo essencial dos nutricionistas para mitigar esta crise, tanto mais quanto assim se conseguiria reduzir concomitantemente dias de internamento e obter melhores prognósticos nos doentes internados por COVID-19. A intervenção nutricional nos cuidados intensivos ou nos cuidados pós-alta hospitalar mereceriam também muitas páginas de reflexão. E muito mais poderíamos ter feito se estivéssemos estado mais presentes ou mais visíveis.

Salvaram-se os colegas que tiveram a oportunidade de mostrar esta relevância nos seus locais de trabalho, do Minho ao Algarve, salvou-se a DGS pela qualidade técnica dos materiais que colocou cá fora desde a primeira hora, mas o que ficou e o que se tornou visível para a sociedade ao longo de 2020 foi muito pouco. Não existe hoje, em Portugal, a perceção pública da importância dos nutricionistas nesta crise que nos abalou. Não existiu essa perceção por parte dos cidadãos durante 2020. E muito menos na comunidade política que toma decisões.

Entretanto, o desemprego ou o emprego de má qualidade parece ter galopado, principalmente entre os mais novos, como o revelam dados recolhidos pela Ordem dos Nutricionistas no Relatório “COVID-19 | Impactos na Atividade Profissional dos Nutricionistas”, de setembro de 2020, que indiciam dados preocupantes sobre a nossa profissão e sobre o percurso profissional atual de muitos dos nossos licenciados, em particular dos mais jovens aos quais é impossível ficarmos indiferentes. Não apenas como resultado da COVID-19, mas também e principalmente, decorrente da situação anterior à COVID de multiemprego, precariedade laboral, fragilidade financeira, incapacidade negocial, e até de liderança no emprego, que em tempos de COVID se revelaram com mais intensidade.

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Fonte: Ordem dos Nutricionistas

Estamos em crer que o diagnóstico apresentado reflete o estado da nossa profissão, o modelo precário de emprego atual (extensível a outras profissões) e os percursos profissionais dos nutricionistas bem antes da COVID-19. Isto para além da oferta excessiva de profissionais em determinadas áreas e até da má qualidade formativa da qual não nos podemos excluir de discutir como parte interessada no sistema de ensino superior.

A grave crise económica que se instalou e que se agravará proximamente irá afetar sobretudo os mais jovens na profissão. Os mais jovens que são a geração mais qualificada, os nutricionistas mais capazes e mais bem preparados de sempre. E bem acima da média europeia em termos de qualidade formativa. Creio que temos o dever de os apoiar nesta luta. A FCNAUP como instituição líder no ensino da nutrição em Portugal, irá certamente fazê-lo. Num momento em que o Ministério da Saúde contratou, desde o início da pandemia, mais de 5000 profissionais de saúde, parece-nos justificável que muitos destes possam ser nutricionistas.

Apesar desta situação atual, acreditamos muito no futuro. Existe um enorme espaço para a continuada afirmação da profissão.

Na prevenção da doença, combatendo a alimentação inadequada que é o determinante central dos dias passados com doença crónica por parte dos adultos portugueses. E investindo na melhoria da prestação de cuidados que pode significar muitos dias a menos de internamento nos serviços de saúde. Estima-se que o excesso de peso seja responsável por 70% da despesa com o tratamento da diabetes; 23% da despesa com tratamentos de doenças cardiovasculares e 9% da despesa com o tratamento das doenças oncológicas. Em Portugal, a pré-obesidade e a obesidade afetam mais de 6,1 milhões de portugueses adultos. Ainda por cima, esta doença tende a ser mais frequente nos grupos da população mais desfavorecidos. E agora que a doença infeciosa irá persistir nas nossas sociedades, atingindo principalmente estes grupos da população, ainda mais sentido fará a presença do nutricionista na prevenção, no apoio ao tratamento domiciliário, na intervenção hospitalar e no seguimento pós-alta dos doentes infetados. Economicamente, a presença dos nutricionistas nestes serviços é rentável numa pura lógica de custo-benefício muito apetecível para os economistas da saúde e também para contrariar as desigualdades em saúde que são umas das principais ameaças à nossa democracia.

A presença do nutricionista pode contribuir para combater as desigualdades em saúde, mas também pode ser um profissional determinante na redução das assimetrias regionais no que diz respeito aos cuidados em saúde. No aumento da capacidade das nossas comunidades, tanto do litoral como do interior, para utilizarem melhor os seus recursos alimentares a favor da promoção da saúde e bem-estar das populações e na melhoria ambiental dos locais onde residem, contribuindo para a coesão territorial do nosso país. Este foi aliás o nosso contributo para o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) onde propusemos a inclusão de nutricionistas em todas as autarquias portuguesas, ou seja, nos seus 308 municípios, 278 no Continente, 11 na Madeira e 19 nos Açores. A promoção da saúde e de estilos de vida saudável e a prevenção da doença faz-se em grande parte fora dos serviços de saúde (embora em articulação com estes) e no contexto dos territórios onde as pessoas habitam e trabalham, através de intervenções intersectoriais, descentralizadas e de proximidade que só são possíveis via poder local.

Poderíamos ainda falar do nosso espaço nas questões ambientais e outras, agora que sabemos que o sistema alimentar é responsável por mais de 34 % da emissão dos gases com efeito de estufa e na necessidade de conseguir distribuir os alimentos de forma equitativa e justa para não criar desequilíbrios sociais que poderão destruir todo o nosso tecido social. Uma área onde os nutricionistas devem ser capazes de contribuir. Algo que para o qual as outras profissões da saúde não estão capacitadas e que nos dá um largo e risonho otimismo.

Infelizmente, o otimismo não é gerador de emprego ou dá resposta à necessidade de emprego de mais qualidade aos mais jovens. A criação de valor associado à profissão faz-se demonstrando a especificidade do know-how praticado pelos nutricionistas. A sua diferenciação face a outras profissões da saúde na resolução das mesmas patologias. E a avaliação quantitativa e qualitativa das nossas intervenções, essencialmente nos outcomes em saúde. Ou seja, produzindo documentação técnica de qualidade, criando guidelines de atuação clínica consensualizada nas várias áreas onde o nutricionista atua e avaliando regularmente a qualidade e quantidade das várias intervenções no terreno, em particular quanto ao aspeto económico e resultados em saúde. E por fim, valorizando para o interior do sistema de saúde, o trabalho de qualidade dos nutricionistas que estão no terreno (tantas vezes esquecidos e pouco apoiados) desde o Algarve aos Açores.

Este modelo de dentro para dentro do sistema de saúde necessita de ser mais valorizado em vez do modelo de dentro para fora que foi predominante nestes últimos anos. A nossa profissão faz pontes com facilidade. Com o ambiente, com a agricultura e até com o turismo. Esse são atributos da nossa profissão, pelos quais temos lutado ao longo de muitos anos. Conhecer estas áreas e articular com elas parece-nos central, mas estamos em crer que a defesa do emprego e dignidade desta profissão da área da saúde vai mais além do que piscar o olho a zonas de fronteira. Na academia cá estaremos para apresentar planos de estudo verdadeiramente interdisciplinares, formando nutricionistas para a colaboração e se necessário até, a liderança em áreas de fronteira. Mas investir excessivamente na promoção destas áreas charneira, sem antes dar robustez, qualidade e valorizar a intervenção do nutricionista na área core da profissão que é a saúde parece-nos estrategicamente pouco adequado para a criação de emprego qualificado.

Aliás, fora de Portugal, cresce a procura por nutricionistas e a perceção da sua importância nas equipas de saúde é cada mais visível. Nos Estados Unidos da América estima-se que na próxima década a procura de nutricionistas possa crescer 8% acima da média relativamente a outras profissões. O mesmo se passa em outros países como a Austrália ou o Canadá.

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Fonte: Bureau of Labor Statistics, U.S. Department of Labor, Occupational Outlook Handbook, Dietitians and Nutritionists (Visitado em 14/03/2021).

Estas são razões de esperança para os nutricionistas em plena pandemia, justificando a necessidade dos nossos serviços e demonstrando a nossa qualidade técnica perante os outros profissionais de saúde todos os dias. Com muito trabalho e estudo. Como sempre foi no passado da nossa profissão e que continuará a ser no futuro.

P.S Para todos os que possam estar desanimados por estes dias, vale sempre a pena recordar que somos a única profissão da área da saúde que trabalha ou faz a ponte com um dos gestos humanos que mais prazer nos dão e à volta do qual se produziu parte da cultura ocidental – o ato de comer e a cultura que se produziu à sua volta. Bem dizia George Steiner : “A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa, frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter­se-á um dos marcadores essenciais da ideia de Europa.” Esta visão da cultura europeia e da relação com os seus espaços e territórios alimentares, mais ou menos reais (veja-se o caso da Dieta Mediterrânica) fazem desta profissão uma permanente utopia que só os nutricionistas vivenciam.

Escrito por

prof pedro graça nutricionista
Pedro Graça
Nutricionista, Professor Associado na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website
Maria João Gregório 7
Maria João Gregório
Nutricionista, Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto | Website

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